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Uso e abuso da Justiça gratuita ante o princípio constitucional do amplo acesso

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7. Algumas nuances do direito comparado

Em qualificado estudo, Costa Neto (2011, p. 133/135) revela que, em 1999, o modelo de assistência jurídica adotado na Inglaterra passou a ser regido pelo Access to Justice Act, que instituiu a Legal Services Comission (LSC), respectivo órgão gestor, e criou o Funding Code, que é o conjunto de regras que norteia a concessão da assistência, estabelecendo os critérios e requisitos que qualificam o postulante como potencial beneficiário, mediante prova adequada de sua condição financeira, pela apresentação de extratos bancários e documentos assemelhados. E completa que “[...] de acordo com as condições financeiras, podem os pretendentes até mesmo ser compelidos ao pagamento de uma contribuição”.

Segundo a The Economist (1996, p. 47), a título de informação, para disputas abaixo de £ 31.000 na Terra da Rainha, os custos dos litígios geralmente superam o valor dos ganhos de compensação.

Há mais de três anos, com o objetivo de reduzir o número de ações injustificadas e o custo para o contribuinte, a gratuidade da Justiça do Trabalho britânica deixou de ser universal, ficando assegurado o direito de pleitear a gratuidade apenas por meio da comprovação da hipossuficiência.8

Já nos Estados Unidos da América, o parágrafo n° 2996f do Legal Services Corporation Act estabelece os requisitos e limitações para subvenções e contratos:

“Entre outras coisas, a disposição em questão observa que a Corporação, após consulta ao Director of the Office of Management and Budget e aos Governadores de diversos Estados, deve estabelecer o limite máximo de receita para que indivíduos se tornem aptos a receberem o serviço de assistência provido pela Corporação. Ainda a entidade deve estabelecer as linhas mestras para assegurar que na fixação destes limites sejam anotados fatores como o patrimônio líquido e nível de receita do cliente; débitos fixos, despesas médicas e outros fatores que afetem a disponibilidade de pagamento do cliente; o custo de vida da localidade e outros elementos relacionados à situação financeira do potencial beneficiário, inclusive observando-se se a falta de receitas decorre de recusa ou falta de disposição voluntária ao trabalho” (COSTA NETO, 2011, p. 138/139).

Basicamente, na Alemanha, Costa Neto (2011, p. 143/146) aponta dois requisitos para o gozo do benefício Armenrecht (assistência legal), um chamado intrínseco, perspectiva de êxito da causa (fumus boni juris), e outro extrínseco, a carência econômica do cidadão a impedir que sem prejuízo do próprio sustento faça frente as despesas relacionadas à causa.

Por fim, na Itália, que influenciou drasticamente o direito processual brasileiro, o regime legal da assistência ao necessitado está contido no Decreto régio n° 3.282 de dezembro de 1923, que foi classificado por Cappelletti como um “decreto lei fascista”, por ser herança do antigo Estado adepto dessa ideologia radical de triste lembrança. Para se ter uma ligeira ideia do quão é embaraçoso obter o benefício no berço do Direito Romano, as estatísticas apresentadas por Cappelletti há mais de trinta anos já refletiam os nefastos efeitos do arcaico sistema:

“Enquanto na Inglaterra, França e Alemanha o patrocínio gratuito foi responsável por percentuais variantes de 20% a 30% das causas, conforme períodos apurados na década de sessenta, na Itália este percentual era de 1% em 1960, 0,61% em 1964 e 0,54% em 1965. Estes dados levam o autor em questão a concluir: 'La violación del precepto constitucional expresado en el art. 24 y sintetizado en la fórmula del ‘Estado social de derecho’ no podría ser más macroscópica'.

Outro problema verificado é que os necessitados acabam defendidos por advogados mais jovens e inexperientes, ou mesmo 'abogados fracasados', de modo que ao carente até mesmo o nível qualitativo da defesa de sua causa seria inferior, perpetuando-se ao longo de todo o trâmite do processo aquela desigualdade que já se verifica no procedimento preliminar destinado à obtenção da assistência.

A rigor o Estado parece renunciar à prestação do serviço jurisdicional ao necessitado, transferindo este encargo segundo o modelo analisado à classe dos profissionais liberais advogados. (COSTA NETO, 2011, p. 148/151).


8. Impactos do custeio da justiça gratuita no orçamento do TJMG

Ruschel et al (2014, p. 15/16) registram que, mesmo com um orçamento geral significativo, onde estão englobados todos os 91 tribunais, os orçamentos estaduais, que atendem os tribunais de justiça e os fóruns estaduais, são diferenciados por estado e a maioria trabalha com verbas restritas. Logo em seguida, complementam que:

“Pedroso corrobora com esta idéia ao afirmar que o fato '(...) da justiça ser um serviço público, e como tal sujeito a restrições orçamentais, o que torna sua qualidade diretamente dependente dos recursos existentes'. A radiografia almejada pelo CNJ pretende usar o método BSC (Balanced Scoredcard) para identificar e interpretar as divergências quantitativas e de qualidade, individualmente por estado e comparando os estados, através de métricas e indicadores cientificamente desenvolvidos.

Atualmente os dados ainda são originários dos registros nos sistemas tradicionais, mas em breve, serão buscados em tempo real nos tribunais que vierem a utilizar o processo eletrônico”.

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Nesse contexto, o TJMG encontra-se historicamente classificado na terceira posição pelo CNJ, no grupo dos 5 tribunais de grande porte do país, que concentram 51% do Produto Interno Bruto (PIB) Nacional, 43% da população brasileira, 70% dos processos da Justiça Estadual e 57% dos processos de todo o Poder Judiciário. Vide a respeito, a Tabela 4.1 do Relatório Justiça em Números 2015 – ano-base 2014:

Tabela 4.1 - Classificação e Ranking da Justiça Estadual, ano base 2014 *

Grupo

Tribunal

Escore

Despesa Total da Justiça

Casos Novos + Pendentes

Número de

Magistrados

Força de Trabalho (servidores e auxiliares)

1º Grupo:

Grande Porte

1

TJ - São Paulo

4,303

8.362.824.642

26.152.101

2.566

66.365

2

TJ - Rio de Janeiro

1,305

3.787.885.038

12.478.886

802

25.945

3

TJ - Minas Gerais **

1,163

4.006.678.907

6.055.765

1.045

26.286

4

TJ - Rio Grande do Sul

0,509

2.437.884.531

4.638.089

758

15.488

5

TJ - Paraná

0,421

1.884.504.300

4.086.878

823

14.862

* Reprodução parcial. ** Original sem destaque.

Segundo levantamento realizado pelo Centro de Informações para Gestão Institucional – CEINFO, vinculado à Secretaria Executiva de Planejamento e Qualidade na Gestão Institucional – SEPLAG, e disponibilizado no Sistema de Informações Estratégicas do Judiciário – SIJUD, no mês de junho de 2016, havia 1.546.905 processos e 2.251.637 partes amparadas pela gratuidade judiciária somente na Justiça Comum Estadual mineira, o que representa, portanto, se somarmos os 782.465 feitos em tramitação no 1º Grau de Jurisdição dos Juizados Especiais – que também são completamente isentos de custas –, quase 40% (quarenta por cento) de todo o acervo processual ativo, isto é, 2.329.370 de processos integral ou parcialmente custeados pelo orçamento do TJMG, sem a coparticipação dos jurisdicionados.

Ora, em termos nacionais, dividindo-se a despesa total da Justiça pelo total de processos baixados, de acordo com as pesquisas divulgadas pelo CNJ, no relatório “Justiça em Números” e no Relatório de Portes dos Tribunais em Tecnologia da Informação e Comunicação, o custo médio por processo julgado, em 2013, chegou a R$ 2.369,73, enquanto no TJMG foi de R$ 2.196,81, levando-se em conta o tempo médio de cinco anos até a prolação da sentença em Primeira Instância, conforme dados divulgados no relatório “Justiça em Números” de 2009.

Assim, pode-se chegar à conclusão de que os gastos anuais realizados pelo TJMG somente no custeio dos processos amparados pela gratuidade judiciária supera facilmente a ordem de 1 bilhão de reais.9

Em 2015, por exemplo, o Fundo Especial do Poder Judiciário – FEPJ mineiro, composto por receitas advindas das taxas judiciárias e de fiscalização judiciária, administração de depósitos judiciais e remuneração de depósitos bancários, entre outros, custeou R$ 47.879.919,00 em diligências judiciais em feitos amparados pela justiça gratuita e da Administração Direta do Estado e mais R$ 414.621,00 com a realização de exames de DNA nas ações de investigação de paternidade, conforme mapa demonstrativo da execução orçamentária10 elaborado pelo Centro de Controle da Execução Orçamentária – CECOEX, também subordinado à SEPLAG.

Na proposta orçamentária do TJMG para o ano de 2017, aprovada pelo Órgão Especial em 17/08/2016, a previsão é de que o custeio do Banco de Peritos, Tradutores e Intérpretes11 – o qual contém a lista de profissionais cadastrados no Sistema Eletrônico de Assistência Judiciária Gratuita do TJMG (AJG/TJMG), aptos a serem nomeados para prestar serviços de diversas modalidades de perícias, exames técnicos, tradução e de versão, nos processos judiciais sob o pálio da justiça gratuita em todo o Judiciário Estadual – seria majorado para 2 milhões de reais, com o objetivo de ampliar o acesso à Justiça, por meio da gratuidade integral aos hipossuficientes.12

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Sobre o autor
Lupercio Paulo Fernandes de Oliveira

Juiz de Direito em Minas Gerais Ex-Professor de TGP e Direito Processual Civil I Pós-graduado em Gestão Judiciária pela Universidade de Brasília – UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Lupercio Paulo Fernandes. Uso e abuso da Justiça gratuita ante o princípio constitucional do amplo acesso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5482, 5 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63305. Acesso em: 22 dez. 2024.

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