DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA COMPETÊNCIA OUTORGADA À JUSTIÇA DO TRABALHO PARA EXECUTAR DE OFÍCIO AS VERBAS PREVIDENCIÁRIAS ORIUNDAS DAS SENTENÇAS QUE PROFERIR

09/01/2018 às 08:08
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O presente artigo destina-se a verificar a validade constitucional da competência outorgada à Justiça do Trabalho para executar de ofício as verbas previdenciárias oriundas das sentenças que proferir.

DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA COMPETÊNCIA OUTORGADA À JUSTIÇA DO TRABALHO PARA EXECUTAR DE OFÍCIO AS VERBAS PREVIDENCIÁRIAS ORIUNDAS DAS SENTENÇAS QUE PROFERIR


1 – INTRODUÇÃO

Nos idos de 1988 instaurou-se um novo poder constituinte. Esta nova constituição contemplou, dentre seus 250 artigos, algumas normas denominadas cláusulas pétreas, as quais estão afastadas de futuras alterações promovidas pelo poder constituinte derivado. Os demais dispositivos que não estão neste rol – das cláusulas pétreas – podem sofrer alterações para melhor se ajustarem à evolução da sociedade e evitar que fiquem obsoletos.

Dentre as inúmeras alterações realizadas na Constituição Federal, está a edição, em 1998, da Emenda Constitucional nº 20. Esta Emenda atribuiu à Justiça do Trabalho a competência para executar de ofício as verbas previdenciárias decorrentes das sentenças que proferir. Então, posteriormente, foram criadas as Leis nº 10.035/2000 e nº 11.457/2007 para disciplinar a referida Emenda. Todavia, o que a princípio parecia trazer celeridade e ser perfeitamente aplicável, começou a gerar diversas indagações relacionadas à sua validade.

Seguindo a mesma linha da execução de ofício das verbas previdenciárias pela Justiça Laboral, foram criadas duas Súmulas: a Súmula 368 do TST e a Súmula Vinculante nº 53.

Nesse contexto, a Justiça do Trabalho passou a intimar, independentemente de manifestação das partes, a União para compor a lide, realizando a cobrança judicial das verbas previdenciárias decorrentes da relação empregatícia reconhecida. Diverso do que era feito anteriormente, quando a atuação da Justiça do Trabalho limitava-se ao reconhecimento do vínculo empregatício, de forma que as cobranças das verbas previdenciárias eram realizadas pela União de forma independente.

Desde então, muito se tem discutido acerca da validade da referida Emenda Constitucional, bem como das leis que a regulamentam. Diferentemente, contudo, dos causídicos que atuam na esfera trabalhista, os jurisconsultos que se dedicam ao estudo do Direito Tributário têm interpretação diversa. Estes argumentam que as verbas previdenciárias possuem natureza fiscal, sendo defesa a constituição desta obrigação tributária por meios alheios ao lançamento.

Muito se discute sobre o fenômeno da interdisciplinaridade, que faz com que o todo jurídico seja algo maior que a simples soma das partes. Dessa forma, contemporaneamente, muitos doutrinadores e jurisconsultos vêm buscando a interpretação das normas editadas como parte de um sistema, ao contrário do que era efetuado antigamente, isto é, por meio de uma análise isolada de cada regulamento. E se pondera interdisciplinarmente à outorga de competência à Justiça do Trabalho, com o objetivo de ventilar o respeito aos preceitos normativos que integram o sistema jurídico brasileiro.

É cediço que determinada norma em desconformidade com o ordenamento pátrio ou aplicada distintamente do proposto pelo legislador gera enorme prejuízo. No caso sob análise, o dano seria suportado pela parte condenada a pagar as verbas previdenciárias decorrentes das sentenças exaradas pela Justiça do Trabalho. Consequentemente, isso ocasionaria descomunal perplexidade no meio jurídico, que manifestaria sua inconformidade por meio da interposição de recursos, prejudicando por completo a celeridade almejada.

Dessa forma, questiona-se a validade da EC nº 20/98, das Leis nº 10.035/00 e nº 11.457/07, da Súmula 368 do TST e da Súmula Vinculante nº 53, diante do fato de que ao executar de ofício a obrigação tributária, a Justiça do Trabalho, como órgão do Poder Judiciário, estaria constituindo o crédito tributário sem que haja qualquer lançamento pelo órgão administrativo competente. Alguns sustentam que haveria uma supressão da via administrativa na realização da cobrança das verbas previdenciárias, cerceando-se, assim, o direito de defesa do contribuinte. Além disso, há aqueles que defendem a tese de ofensa ao princípio da tripartição dos poderes.

Nesse sentido, percebe-se que a complexidade do assunto excede as barreiras da prática forense, merecendo um estudo científico-jurídico sobre as divergências existentes.

O presente artigo, então, destina-se a verificar a validade constitucional da competência outorgada à Justiça do Trabalho para executar de ofício as verbas previdenciárias oriundas das sentenças que proferir.

2 – HISTÓRICO

O doutrinador Sérgio Pinto Martins, com base nos ensinamentos de Maquiavel, preleciona que para sabermos o futuro devemos consultar o passado, pois todas as coisas do mundo, em diferentes tempos, se parecem com as precedentes. Então, buscando alcançar maior esclarecimento acerca do tema, deve-se fazer todo o percurso histórico, desde a origem da outorga de competência até a prática forense dos dias atuais, desta justiça especializada (MARTINS, 2008, p. 01).

Diversos países desconhecem a figura do Juiz do Trabalho ou de uma justiça especializada no julgamento de conflitos de natureza trabalhista. Em contrapartida, para outros países é admissível que as lides trabalhistas transcorram na forma de um procedimento especial aplicável às questões do trabalho (SÜSSENKIND; et al, 2005, p. 1322).

No Brasil, esta realidade não era diferente, até que, em 1946, surge uma nova Constituição Federal, promulgada durante o mandato presidencial de Eurico Gaspar Dutra. Esta nova Constituição, marcada por inovações na lei fundamental, deu origem à Justiça do Trabalho, incluindo-a como órgão do Poder Judiciário, conforme disposto em seus arts. 122 e 123, ipsis litteris:

Art. 122. Os órgãos da Justiça do Trabalho são os seguintes:

I – Tribunal Superior do Trabalho;

II – Tribunais Regionais do Trabalho;

III – Juntas ou Juízes de Conciliação e Julgamento.

§ 1º O Tribunal Superior do Trabalho tem sede na capital federal.

§ 2º A lei fixará o número dos Tribunais Regionais do Trabalho e respectivas sedes.

§ 3º A lei instituirá as Juntas de Conciliação e Julgamento podendo, nas Comarcas onde elas não forem instituídas, atribuir as suas funções aos Juízes de Direito.

§ 4º Poderão ser criados por lei outros órgãos da Justiça do Trabalho.

§ 5º A constituição, investidura, jurisdição, competência, garantias e condições de exercício dos órgãos da Justiça do Trabalho serão reguladas por lei, ficando assegurada a paridade de representação de empregados e empregadores.

Art. 123. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e, as demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por legislação especial.

§ 1º Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são de competência da Justiça ordinária.

§ 2º A lei especificará os casos em que as decisões, nos dissídios coletivos, poderão estabelecer normas e condições de trabalho (BRASIL. Constituição [1946]).

Após a criação da aludida especializada, houve algumas tentativas, que não lograram êxito, de alterar as normas que a disciplinavam. A PEC nº 96/1992, por exemplo, denominada “Reforma do Judiciário”, previa melhorias na Justiça do Trabalho, inclusive com proposta de extinção dos Juízes classistas.

A Lei nº 8.212, criada em 24 de julho de 1991, disciplinou a organização da Seguridade Social. A antiga redação do art. 43 desta Lei mencionava que o juiz deveria exigir a contribuição previdenciária, mas esta exigência não consistia em cobrá-la nos próprios autos, pois ainda não tinha competência constitucional para tanto.

Em 1995, a Justiça do Trabalho ganhou força com a edição da Lei nº 8.984, que expandiu suas funções, outorgando-lhe competência para julgar ações de cumprimento de acordos e convenções coletivas, antes apreciadas pela Justiça Comum.

Até então, a existência de débito previdenciário gerava apenas expedição de ofício ao INSS, não sendo possível a execução da contribuição previdenciária nos próprios autos do processo trabalhista. Foi quando, em 15 de dezembro de 1998, a Emenda Constitucional nº 20 inseriu o § 3º, no art. 114, da CRFB/88, in verbis:

Art. 114. [...]

§ 3º Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I “a”, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir (BRASIL. Emenda Constitucional nº 20 [1998]).

Seu texto autorizou a Justiça do Trabalho a executar de ofício as contribuições sociais dos empregadores, sobre a folha de salários e demais rendimentos pagos aos trabalhadores, com os devidos acréscimos legais. Não obstante a recente alteração da justiça laboral, a mesma experimentou nova modificação em sua competência em 09 de dezembro de 1999, com a Emenda Constitucional nº 24, que extinguiu os membros classistas da Justiça do Trabalho (COLNAGO, 2009, p. 41-42).

Então, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, a Reforma do Judiciário foi parcialmente aprovada e promulgada pela Emenda Constitucional nº 45, em 08 de dezembro de 2004. A aludida norma “preservou e ampliou a competência da Justiça do Trabalho (art. 114, incisos I a IX), como resposta devida àqueles que preconizavam sua extinção” (SÜSSENKIND; et al, 2005, p. 1323). O inciso VIII, do art. 114, da Lei Maior, traz a seguinte previsão:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

[...]

VIII – a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir (BRASIL. Constituição [1988]).

Como demonstrado acima, apesar do referido texto constitucional não fazer uso da expressão “nos termos da lei”, vislumbra-se a carência de uma legislação ordinária que lhe explicite as formas de cumprimento de sua exigência. Deste modo, em 25 de outubro de 2000, instituiu-se a Lei Ordinária nº 10.035, com o intuito de disciplinar a EC nº 20/98. Esta lei introduziu o parágrafo único, do art. 876, da CLT, que recebeu nova redação com o advento da Lei Federal nº 11.457/2007, o qual ratificou a impulsão oficial já contida na EC nº 20/98. Logo, prescinde-se de promover qualquer impulso inicial para a execução das verbas previdenciárias (VALLE, Execução das Contribuições Previdenciárias Emergentes das Decisões da Justiça do Trabalho, Acesso em 24 de abr. 2011):

Art. 876. [...]

Parágrafo Único. Serão executadas ex-officio as contribuições sociais devidas em decorrência de decisão proferida pelos Juízes e Tribunais do Trabalho, resultantes de condenação ou homologação de acordo, inclusive sobre os salários pagos durante o período contratual reconhecido. (BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452 [1943]).

Além disso, também por força da Lei nº 11.457/07, a exigência da contribuição previdenciária, antes feita pelo INSS, passou a ser realizada pela União (MARTINS, 2008, p. 05).

Mister se faz salientar que, mais recentemente, foram criadas duas Súmulas que reverberam a possibilidade de execução de ofício das verbas previdenciárias pela Justiça Trabalhista: a Súmula 368 do TST e a Súmula Vinculante nº 53:

Súmula nº 368 do TST
DESCONTOS PREVIDENCIÁRIOS. IMPOSTO DE RENDA. COMPETÊNCIA. RESPONSABILIDADE PELO RECOLHIMENTO. FORMA DE CÁLCULO. FATO GERADOR (aglutinada a parte final da Orientação Jurisprudencial nº 363 da SBDI-I à redação do item II e incluídos os itens IV, V e VI em sessão do Tribunal Pleno realizada em 26.06.2017) – Res. 219/2017, republicada em razão de erro material – DEJT divulgado em 12, 13 e 14.07.2017
I – A Justiça do Trabalho é competente para determinar o recolhimento das contribuições fiscais. A competência da Justiça do Trabalho, quanto à execução das contribuições previdenciárias, limita-se às sentenças condenatórias em pecúnia que proferir e aos valores, objeto de acordo homologado, que integrem o salário de contribuição. (ex-OJ nº 141 da SBDI-1 – inserida em 27.11.1998).
II – É do empregador a responsabilidade pelo recolhimento das contribuições previdenciárias e fiscais, resultantes de crédito do empregado oriundo de condenação judicial. A culpa do empregador pelo inadimplemento das verbas remuneratórias, contudo, não exime a responsabilidade do empregado pelos pagamentos do imposto de renda devido e da contribuição previdenciária que recaia sobre sua quota-parte. (ex-OJ nº 363 da SBDI-1, parte final).
III – Os descontos previdenciários relativos à contribuição do empregado, no caso de ações trabalhistas, devem ser calculados mês a mês, de conformidade com o art. 276, § 4º, do Decreto n º 3.048/1999 que regulamentou a Lei nº 8.212/1991, aplicando-se as alíquotas previstas no art. 198, observado o limite máximo do salário de contribuição. (ex-OJs nºs 32 e 228 da SBDI-1 – inseridas, respectivamente, em 14.03.1994 e 20.06.2001).
IV – Considera-se fato gerador das contribuições previdenciárias decorrentes de créditos trabalhistas reconhecidos ou homologados em juízo, para os serviços prestados até 4.3.2009, inclusive, o efetivo pagamento das verbas, configurando-se a mora a partir do dia dois do mês seguinte ao da liquidação (art. 276, “caput”, do Decreto nº 3.048/1999). Eficácia não retroativa da alteração legislativa promovida pela Medida Provisória nº 449/2008, posteriormente convertida na Lei nº 11.941/2009, que deu nova redação ao art. 43 da Lei nº 8.212/91.
V – Para o labor realizado a partir de 5.3.2009, considera-se fato gerador das contribuições previdenciárias decorrentes de créditos trabalhistas reconhecidos ou homologados em juízo a data da efetiva prestação dos serviços. Sobre as contribuições previdenciárias não recolhidas a partir da prestação dos serviços incidem juros de mora e, uma vez apurados os créditos previdenciários, aplica-se multa a partir do exaurimento do prazo de citação para pagamento, se descumprida a obrigação, observado o limite legal de 20% (art. 61, § 2º, da Lei nº 9.430/96).
VI – O imposto de renda decorrente de crédito do empregado recebido acumuladamente deve ser calculado sobre o montante dos rendimentos pagos, mediante a utilização de tabela progressiva resultante da multiplicação da quantidade de meses a que se refiram os rendimentos pelos valores constantes da tabela progressiva mensal correspondente ao mês do recebimento ou crédito, nos termos do art. 12-A da Lei nº 7.713, de 22/12/1988, com a redação conferida pela Lei nº 13.149/2015, observado o procedimento previsto nas Instruções Normativas da Receita Federal do Brasil.

Súmula Vinculante nº 53
A competência da Justiça do Trabalho prevista no art. 114, VIII, da Constituição Federal alcança a execução de ofício das contribuições previdenciárias relativas ao objeto da condenação constante das sentenças que proferir e acordos por ela homologados.

Por derradeiro, insta salientar que mesmo antes da criação da Justiça do Trabalho, já vigorava, desde 1989, a Lei nº 7.787, dispondo sobre alterações na legislação de custeio da Previdência Social, dentre outras providências. Seu art. 12 trouxe expressa previsão de que, ao findar os processos na Justiça do Trabalho, deverão ser recolhidas as contribuições previdenciárias, com a seguinte redação:

Art. 12. Em caso de extinção de processos trabalhistas de qualquer natureza, inclusive a decorrente de acordo entre as partes, de que resultar pagamento de vencimentos, remuneração, salário e outros ganhos habituais do trabalhador, o recolhimento das contribuições devidas à Previdência Social será efetuado incontinenti. (BRASIL. Lei nº 7.787 [1989]).

Por fim, verifica-se a evolução histórica da Justiça do Trabalho com significativo avanço no que tange à sua competência. Essa evolução culminou na atual prática forense da execução de ofício das verbas previdenciárias. Prática esta que gerou grande repercussão no meio jurídico, com infindáveis discussões acerca da competência tributária, da natureza da sentença trabalhista e da validade da outorga de competência.

3 – A VALIDADE DA OUTORGA DE COMPETÊNCIA PROMOVIDA PELA EC Nº 20/98

Alguns estudiosos do direito questionam a outorga, à Justiça do Trabalho, da competência para executar de ofício as verbas previdenciárias decorrentes das sentenças que proferir.

O doutrinador Sérgio Pinto Martins esboça seu inconformismo acerca do tema, chamando de aberração jurídica a intervenção da União para executar um valor que não é título executivo judicial, pois a mesma não participou da fase de conhecimento (MARTINS, 2008, p. 13).

Há estudiosos que entendem haver um desrespeito aos limites do poder constituinte derivado, estando a CRFB/88 impossibilitada de delegar tal competência arrecadatória ao Poder Judiciário, visto ser esta uma atribuição exclusiva do Poder Executivo. Outros como José Augusto Rodrigues, acreditam que a Justiça do Trabalho se transformou num órgão arrecadador, devido à sua possível extinção e também à carência financeira do órgão previdenciário.

Há quem entenda que a Justiça do Trabalho passou a constituir o crédito tributário por meio da sentença. E também que a aludida outorga de competência ofende a tripartição dos poderes. E a discussão segue com apontamentos que deságuam em desrespeito ao princípio do devido processo legal, bem como do contraditório e da ampla defesa na esfera administrativa.

Portanto, torna-se imprescindível a avaliação individualizada de cada um dos dilemas apontados pelos estudiosos do assunto.

3.1 – A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO E O CÁLCULO DE OFÍCIO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS

O art. 142 do CTN, categoricamente, expõe que o lançamento constitui o crédito tributário. Depreende-se desta afirmação que não há outra maneira de constituir o crédito tributário, a não ser pelo lançamento. Sabe-se também que o ato de lançar é exclusivo da autoridade administrativa, não podendo ser outorgado a outrem.

Assim, o lançamento é o meio formal e adequado para concretizar o crédito tributário originado de uma relação jurídico-tributária. Essa relação compreende os sujeitos ativo e passivo, o objeto jurídico, o direito subjetivo do sujeito ativo e o dever do sujeito passivo. Consequentemente, através do lançamento serão indicadas as informações necessárias para identificar e quantificar determinada relação jurídico-tributária.

Atualmente, o STJ tem entendido, por meio da Súmula 436, que “a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo o débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco” (JUSTIÇA. Tribunal Superior de. Súmulas da Jurisprudência Uniforme do Superior Tribunal de Justiça, Acesso em 22 de abr. 2011). Logo, a declaração do contribuinte estaria substituindo o lançamento do crédito tributário, pois este, igualmente àquele, constitui o crédito tributário. Trata-se, portanto, de outra modalidade de lançamento, qual seja, o lançamento por homologação.

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No lançamento por homologação o contribuinte prestará determinadas informações ao sujeito ativo (credor do crédito tributário) que servirão de base para que o mesmo promova o lançamento. Verifica-se, então, que não é possível aplicar o disposto na Súmula 436 do STJ à execução de ofício das verbas previdenciárias pela Justiça do Trabalho, pois não há qualquer entrega de declaração do contribuinte assumindo o débito fiscal.

Portanto, pode-se deduzir que não há como cobrar um crédito tributário sem que antes seja formalizada a obrigação de pagar o tributo, por meio do lançamento, ou por meio de declaração de débito do próprio sujeito passivo.

Seguindo este raciocínio, verifica-se que as leis que regulamentaram a execução de ofício das verbas previdenciárias não previram a prática do lançamento. Dessa forma, Alexandre Macedo Tavares e Marcus Vinícius Mendes entendem que a sentença trabalhista estaria constituindo o crédito tributário por meios alheios ao lançamento. Haveria, portanto, a substituição do lançamento pela sequência de atos que resultam na execução de ofício do débito previdenciário, conforme se observa:

Diz-se isso, porquanto, face sua proeminência perante o Sistema Tributário Nacional, o lançamento tributário não pode ser reduzido à condição de singelo ornamento jurídico ou de mero elemento coadjuvante do executivo fiscal, a contrario sensu, é a ‘razão de ser’, a ‘causa determinante’ da liquidez e certeza do crédito tributário.
Execução do crédito tributário não regularmente liquidado e acertado pela autoridade administrativa competente, consiste numa inaugural e subversiva modalidade de execução fiscal, qual seja, aquela onde o processo instaurado à míngua da existência de um título executivo líquido, certo e exigível afeiçoado à espécie: a certidão de dívida ativa. (TAVARES; MUGNAINI, 2002, p. 38).

Expressam ainda seus inconformismos quanto à constituição do crédito tributário sem lançamento ou inscrição em Dívida Ativa, nos seguintes termos:

Com efeito, a execução de crédito tributário desprovida de lançamento (que o torna juridicamente exigível) e da subsequente inscrição em Dívida Ativa (que o torna juridicamente exequível), como no caso sub examine, corresponde a uma esdrúxula convalidação de um processo de execução não devidamente instrumentalizado com um título executivo líquido, certo e exigível; e o que é ainda mais lamentável, viabiliza a instauração de um processo sem a iniciativa da parte interessada, subvertendo-se a aclamada regra nemo judex sina actore e o próprio caráter dialético do processo (TAVARES; MUGNAINI, 2002, p. 42).

Os ensinamentos do saudoso Ruy Barbosa Nogueira, outrossim, corroboram este entendimento, in verbis:

O Poder Judiciário poderá ser chamado a intervir no controle de legalidade do procedimento de lançamento ou da lesão de direito, podendo anular no todo ou em parte o lançamento, mas na verdade ele não opera o lançamento que é ato privativo da administração (NOGUEIRA, 1995, p. 193).

Seguindo o caminho inverso ao traçado pelos tributaristas, está o entendimento dos trabalhistas. Assim, há aqueles que entendem que a Justiça do Trabalho ao executar de ofício as verbas previdenciárias não constitui o crédito tributário, visto que inexiste qualquer lançamento. Dessa forma, trata-se da simples execução do tributo, sem que se promova a constituição do crédito tributário pelo lançamento ou por qualquer outro ato que o substitua.

Este é o entendimento de Sérgio Pinto Martins, o qual aduz que a Lei nº 10.035/00 não constitui o crédito previdenciário, in verbis:

A Lei nº 10.035 não é inconstitucional pelo fato de que somente lei complementar é que pode regular a constituição do crédito tributário (art. 145, III, b da Constituição). Lei complementar é o Código Tributário Nacional. A Lei nº 10.035 é lei ordinária e não complementar. Entretanto, a Lei nº 10.035 não está constituindo o crédito previdenciário, está operacionalizando como executar o valor devido no processo trabalhista pelo empregador à União, como o faz a Lei nº 6.830 para a execução fiscal. A CLT, no aspecto, não trata de direito material, mas de direito processual (MARTINS, 2008, p. 33).

O aludido doutrinador acrescenta ainda que a sentença trabalhista não representa fato gerador ou lançamento da contribuição da seguridade social, uma vez que o fato gerador já ocorreu. Além disso, o lançamento da contribuição previdenciária não poderá ser feito pelo Procurador da União, pois esta não é sua atribuição (MARTINS, 2008, p. 75-76).

Isto posto, observa-se a existência de dois entendimentos distintos acerca da constituição do crédito tributário na execução das verbas previdenciárias, a saber: a) a substituição do lançamento pela decisão que intima a União e remete os autos à contadoria para dizer o valor devido; b) a execução direta de um crédito tributário que não foi devidamente constituído pelo lançamento, por isso, carente de formalização indispensável ao seu cumprimento.

3.1.1 – A violação do art. 146, III, “b”, da CRFB/88 c/c art. 142 do CTN

Não obstante a EC nº 20/98 ter promovido a execução de ofício das verbas previdenciárias das sentenças proferidas pela Justiça do Trabalho, a mesma não estabeleceu especificamente o procedimento a ser adotado. Houve apenas a outorga de competência e previsão de que esta seria feita de ofício. Isso não significa que o instituto do lançamento seria substituído por outro ato ou procedimento.

Por outro lado, as leis ordinárias, que disciplinam a Emenda Constitucional supracitada, foram responsáveis por estabelecer a supressão do lançamento e a sua substituição por uma sequência de atos judiciais que resultam na quantificação do crédito tributário.

Além do mais, ainda que se admita a possibilidade de uma execução sem título executivo, a formalização da relação jurídica tributária por ato diverso do lançamento apenas pode ser autorizada por lei complementar, conforme prevê o art. 146, III, “b”, da CRFB/88.

Considerando que as Leis nº 10.035/00 e nº 11.457/07 não são Leis Complementares, verifica-se que não estão aptas a ensejar modificações na forma de acertamento da relação jurídica tributária, no que concerne à formalização do crédito tributário. Nesse diapasão, percebe-se que as aludidas Leis Ordinárias tutelaram algo que não foi objeto de deliberação da EC nº 20/98, ou seja, a constituição do crédito tributário.

Por fim, com fulcro nos conhecimentos ora avençados, observa-se que o lançamento é imprescindível para a formalização do crédito tributário, visto ser ele o responsável por sua constituição. Dessa forma, acredita-se que o mesmo não poderá ser substituído por uma sequência de atos judiciais, tampouco poderão as verbas previdenciárias ser executadas antes que o lançamento o torne líquido e certo.

3.2 – LIMITES DO PODER CONSTITUINTE REFORMADOR

Segundo Eduardo Fortunato Bim, em artigo que trata do tema, há desvio de poder na EC nº 20/98, pois as expressões utilizadas denotam o uso anormal de um direito reconhecido a alguém. Dessa maneira, o legislador se utilizou do aparato legislativo para aumentar a arrecadação do governo federal, quando deveria, na verdade, adequar o texto constitucional às vicissitudes do direito laboral, de forma a assegurar os direitos sociais trabalhistas (BIM, 2003, p. 31). Assim explica o tributarista:

Alguns juristas disseram que isso dignificará a Justiça do Trabalho, mas essa dignificação somente ocorrerá perante os olhos da sanha arrecadatória do Governo. Os trabalhadores, que deveriam ser a preocupação precípua da Justiça do Trabalho, não serão dignificados! Verão seus processos tornarem-se mais morosos do que já são; serão forçados a buscar a justiça privada ou fazerem acordos, abrindo mão de grande parte das garantias sociais esculpidas na Constituição. O dever do Estado de prestar a jurisdição de maneira célere e eficaz (CF/88, art. 5º, inc. XXXV) fica amesquinhado em face de interesse meramente arrecadatório (BIM, 2003, p. 32).

Com consistência discorre Fábio Soares Pereira, acerca da proibição de o poder reformador editar normas visando fins arrecadatórios, nos seguintes termos:

É vedado ao poder reformador, com fim de aumentar a arrecadação tributária, desviar a função precípua desse ramo do Judiciário, aproveitando-se de sua estrutura, para transformá-lo em uma máquina de arrecadação do Governo Federal. A competência atribuída ao poder derivado para reformar o artigo 114 da Lei Maior é para adaptá-lo às evoluções do Direito Laboral, aperfeiçoando a sua ratio assendi, a proteção ao trabalhador e a consequente dignificação do trabalho humano, tornando mais eficazes os direitos sociais. Não é para arrecadar dívidas tributárias! (PEREIRA, A Nova Reforma Previdenciária: principais aspectos referentes à aposentadoria dos servidores públicos, Acesso em 22 de abr. 2011)

O poder constituinte é tema obrigatório na disciplina de Direito Constitucional, em qualquer instituição de ensino superior, devido a sua importância inigualável. É um poder que emana do povo, sendo este, portanto, detentor de sua titularidade. Assim, nas palavras do ilustre Pedro Lenza, apresenta-se o seguinte conceito:

O poder constituinte pode ser conceituado como o poder de elaborar (e neste caso será originário), ou atualizar uma Constituição, mediante supressão, modificação ou acréscimo de normas constitucionais (sendo nesta última situação derivado do originário) (LENZA, 2008, p. 83).

Considera-se originário o poder constituinte que instaurar uma nova ordem jurídica, rompendo por completo a ordem jurídica precedente. Ele apresenta as seguintes características: inicial (instaura uma nova ordem jurídica); autônomo (a estruturação da nova constituição será determinada autonomamente); ilimitado juridicamente (não tem de respeitar os limites postos pelo direito anterior); incondicional e soberano na tomada de decisões (não tem de se submeter a qualquer forma prefixada de manifestação) (LENZA, 2008, p. 84-85).

O poder constituinte derivado, também denominado instituído, constituído, secundário ou de segundo grau, é criado e instituído pelo originário. Por ser criado a partir de outro poder constituinte (originário), deverá respeitar as regras colocadas e impostas por este. Logo, será limitado e condicionado aos parâmetros a ele cominados (LENZA, 2008, p. 86).

O poder constituinte derivado divide-se em: reformador, decorrente e revisor. Os dois últimos não serão abordados detalhadamente por sua irrelevância ao presente estudo. Quanto ao poder constituinte reformador, insta ressaltar que ele tem a capacidade de modificar a Constituição Federal, por meio de um procedimento específico, estabelecido pelo originário, sem que haja uma verdadeira revolução. Sua manifestação verifica-se através das emendas constitucionais (LENZA, 2008, p. 87).

Conforme mencionado, o poder originário permite a alteração de sua obra, desde que sejam respeitados alguns limites, quais sejam: quorum qualificado de 3/5, em cada Casa, em dois turnos de votação para aprovação das emendas (art. 60, § 2º, CRFB/88); proibição de alteração da constituição na vigência de estado de sítio, defesa ou intervenção federal (art. 60, § 1º, CRFB/88); vedação de alteração no núcleo de matérias intangíveis, denominado cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, CRFB/88) (LENZA, 2008, p. 87).

Assim, denominam-se cláusulas pétreas as limitações ao poder de reforma do texto constitucional. Na CRFB/88, as cláusulas pétreas encontram-se inseridas no art. 60, § 4º. São elas: a forma federativa do estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais (LENZA, 2008, p. 92).

Compreendido os limites constitucionais no tocante às Emendas, deve-se buscar a aplicação deste entendimento ao caso em tela, atentando-se aos pontos em que o poder constituinte reformador possa ter extrapolado o limite fixado pelo poder constituinte originário.

3.2.1 – Tripartição dos poderes

A Teoria da Separação dos Poderes (ou Tripartição dos Poderes do Estado) é a teoria da ciência política criada por Montesquieu, no livro “O Espírito das Leis”. Neste livro Montesquieu analisou as relações que as leis têm com a natureza e os princípios de cada governo, desenvolvendo a teoria de governo que alimenta as idéias do constitucionalismo. Trata-se, em síntese, de distribuir a autoridade por meios legais, evitando-se o arbítrio e a violência (SILVA, A Separação dos Poderes, as Concepções Mecanicista e Normativa das Constituições e seus Métodos Interpretativos, Acesso em 23 de abr. 2011).

Montesquieu descreveu a separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, e concluiu que só o poder pode frear o poder, no chamado “Sistema de Freios e Contrapesos” (Checks and Balances). Daí a necessidade de cada poder manter-se autônomo e constituído por diferentes grupos (SILVA, A Separação dos Poderes, as Concepções Mecanicista e Normativa das Constituições e seus Métodos Interpretativos, Acesso em 23 de abr. 2011).

Esta teoria foi adotada por grande parte dos Estados modernos, porém de maneira mais branda, conforme suas realidades sociais e históricas. Assim, atenuou-se a teoria que pregava a separação pura e absoluta dos poderes, para permitir maior interpenetração entre os mesmos. Então, além do exercício das funções que são típicas de determinado poder, este exerce também funções atípicas, ou seja, inerentes a outro poder (LENZA, 2008, p. 292).

As atribuições de determinado Poder (órgão) não podem ser delegadas a outro, sob pena de infringir o princípio da indelegabilidade de atribuições. Um órgão somente poderá exercer atribuições de outro, ou de natureza típica de outro, caso haja expressa previsão, e, diretamente, quando houver delegação por parte do poder constituinte originário (LENZA, 2008, p. 294).

Segundo Eduardo Fortunato Bim, a execução de ofício das verbas previdenciárias pela Justiça do Trabalho afronta o aludido princípio, pelos seguintes argumentos:

A competência da Justiça Laboral para executar as contribuições previdenciárias por si só não seria inconstitucional. Transferir, parcialmente, a atribuição de um órgão (Justiça Federal) a outro (Justiça Trabalhista) não implica de per si ofensa à tripartição de poderes, pois a competência continuaria no mesmo poder.
O que não podemos aceitar, sob pena de comprometer esse princípio, é a execução de ofício das referidas contribuições, pois isso exige que o magistrado do trabalho apure (leia-se, lance) as referidas contribuições previdenciárias antes de executá-las, invadindo esfera reservada ao Executivo porque o lançamento é ato privativo da Administração (BIM, 2003, p. 25-26).

Os tributaristas Alexandre Macedo Tavares e Marcus Vinícius Mendes Mugnaini coadunam com este entendimento. Para eles, a EC nº 20/98, ao determinar a execução de ofício das verbas previdenciárias, viola a cláusula pétrea de separação dos poderes, prevista no art. 60, § 4º, III, da CRFB/88. Defendem seu posicionamento, nos seguintes termos:

Impõe-se destacar, à obviedade do ‘sistema de freios e contrapesos’ (checks and balances) que operacionalizam o postulado da tripartição das funções estatais, que o fato do Judiciário poder efetuar o controle externo do lançamento não significa que ele próprio possa concretizá-lo. Não compete ao magistrado lançar um tributo, a contrario sensu, cabe-lhe tão-somente controlar a legalidade do lançamento efetuado pela autoridade administrativa, anulando-o total ou parcialmente se for o caso. (TAVARES; MUGNAINI, 2002, p. 39-40).

Explana Leonardo Mazzillo que tanto a EC nº 20/98, quanto as leis que a regulamentam, ofenderam ao Princípio da Tripartição dos Poderes, previsto no art. 2º da CRFB/88. Fez, portanto, que esta justiça especializada passasse a praticar atos típicos do Poder Executivo, promovendo desarmonia na separação dos poderes. Vejamos a explanação:

Voltando-se os olhos, agora, para o caso em estudo, verifica-se, num primeiro momento, que a transferência de competência do Executivo para o Judiciário, autorizada pela indigitada Emenda Constitucional nº 20/1998, poderia levar o operador do direito à conclusão de que esta última esfera de Poder passaria a preponderar sobre a primeira, em prejuízo da harmonia que deve existir entre elas e dos desígnios encartados em nossa Lei Maior.
Na prática, contudo, o desequilíbrio que se verifica é em sentido diametralmente oposto, porquanto essa outorga de competências à Justiça do Trabalho parece ter-lhe trazido menos “poderes” do que encargos burocráticos e funções de escritório, originalmente atribuídas, em boa parte das circunstâncias, aos funcionários do baixo escalão do INSS.
[...]
As inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 20/1998 e pela Lei nº 10.035/2002 fazem muito pior do que simplesmente desequilibrar e desarmonizar os “Poderes” da República; elas promovem verdadeira subjugação de um “Poder” em relação a outro, apagando a nítida e bem definida linha que até então os separava, em frontal ofensa aos princípios que, não por acaso, encabeçam nosso Texto Constitucional (MAZZILLO, 2003, p. 56-58).

Conforme mencionado anteriormente, a teoria da tripartição dos poderes não foi empregada pelos Estados modernos com separação pura e absoluta dos poderes. Houve uma adequação à realidade de cada Estado, para permitir melhor adequação e maior interação entre os poderes.

Nesse sentido, data venia os demais entendimentos, a determinação de que o Poder Judiciário procederá de ofício a execução das verbas previdenciárias não repercute na violação da tripartição dos poderes.

A EC nº 20/98 somente estabeleceu que o Poder Judiciário impulsionasse de ofício a execução das verbas previdenciárias, sem a substituição ou anulação da participação do Poder Executivo. Eventual exagero estaria contido nas Leis nº 10.035/00 e nº 11.457/07, o que não reflete em ofensa ao princípio ora analisado, tampouco ecoa na inconstitucionalidade da EC nº 20/98.

3.2.2 – Devido processo legal, contraditório e ampla defesa

O devido processo legal é um dos princípios mais comezinhos do ordenamento jurídico brasileiro. Encontra-se positivado no art. 5º, LIV, da CRFB/88, nos seguintes termos: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (BRASIL. Constituição [1988]).

Trata-se de um princípio assegurado constitucionalmente e de indispensável usualidade tanto no Direito Tributário quanto no Direito do Trabalho. Segundo Carlos Henrique Bezerra Leite, este princípio caracteriza-se pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, conforme se observa:

O princípio ora focalizado não se restringe ao terreno processual (procedural due process of law), porquanto os valores vida, liberdade e propriedade também são ínsitos ao direito material. Daí a afirmação, por exemplo, de que o princípio da autonomia privada encontra fundamento no sentido substantivo do princípio do devido processo legal (substantive due process) (LEITE, 2008, p. 66).

O doutrinador Eduardo Sabbag, com a veemência de um entusiasta, clarifica que o devido processo legal vem exatamente garantir que determinado processo obedeça rigorosamente à legislação vigente, sob pena de nulidade de todos os atos praticados.

Acerca do tema, mister se faz a exposição do didático trecho do voto do Ministro Carlos Velloso, prolatado no julgamento da ADI nº 1.511-MC, em 16-10-1996, in verbis:

Abrindo o debate, deixo expresso que a Constituição de 1988 consagra o devido processo legal nos seus dois aspectos, substantivo e processual, nos incisos LIV e LV, do art. 5º, respectivamente. (...) Due process of law, com conteúdo substantivo – substantive due process – constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. Paralelamente, due process of law, com caráter processual – procedural due process – garante às pessoas um procedimento judicial justo, com direito de defesa.

Assim, este princípio é de fundamental importância, tanto no processo judicial, quanto no processo administrativo de controle de legalidade do lançamento. Vejamos, então, a sustentação de Eduardo Sabbag, nestes moldes:

O devido processo legal deve ser observado tanto no processo administrativo quanto no judicial, pois nele encontra-se a preservação do direito de defesa do contribuinte, direito este aclamado não só pela legislação brasileira, mas em todo país democrático (SABBAG, 2009, p. 1022).

Nesse sentido é o entendimento de Alexandre Macedo Tavares e Marcus Vinícius Mendes Mugnaini, os quais alertam que, no âmbito tributário, o devido processo legal é exteriorizado por meio do cumprimento das garantias da estrita legalidade tributária, da isonomia, do respeito à capacidade contributiva, à previsibilidade e não surpresa (anterioridade tributária), à impossibilidade da tributação com feição confiscatória, etc (TAVARES; MUGNAINI, 2002, p. 41).

Então, considerando-se o alcance do princípio do devido processo legal e suas inapeláveis vertentes – de índole substancial e processual – os autores supracitados chegaram à conclusão de que a EC nº 20/98 e suas leis regulamentadoras (nº 10.035/00 e nº 11.457/07), não passam pelo crivo de conformação da ordem jurídico-constitucional vigente, no concernente à execução de ofício das contribuições à seguridade social. Assim, tecem as seguintes considerações:

[...] vez que em total desapego ao postulado ao devido processo legal, nossos parlamentares, ao aprovarem a EC 20/98 e a lei regulamentadora (Lei 10.035/00) da execução de ofício de contribuições à seguridade social, acabaram patrocinando: a) a dispensa da iniciativa da parte (nemo judex sine actore) para a instauração da execução de um crédito desnubladamente tributário; b) a instauração de uma fase executória de natureza mista, isto é, de créditos originariamente distintos e inconfundíveis (trabalhista e tributário); c) anômala execução de crédito tributário não liquidado e acertado pela autoridade fazendária, isto é, não regularmente constituído mediante o ato jurídico vinculado e obrigatório do lançamento, e; d) a instauração de um executivo fiscal sem o apropriado título pertencente à espécie (certidão de dívida ativa) (TAVARES; MUGNAINI, 2002, p. 42).

Vejamos também o posicionamento de Bianca Del Pilar de Souza Lara, que alega que o princípio em epígrafe não abrange apenas o processo judicial tributário, mas também o processo administrativo fiscal, nestes termos:

É imprescindível que o administrado tenha amplo acesso a todas as peças e documentos do processo, para que possa de fato defender-se contra a pretensão de crédito da Administração Pública, formalizada em seu desfavor, bem como deve-se assegurar ao mesmo a produção de provas necessárias à comprovação de suas alegações, a fim de que seja perseguida a verdade real (PAULA, 2006, p. 18).

O advogado Leonardo Mazzillo também entende que há ofensa ao princípio do devido processo legal, pois para que haja cobrança de determinado tributo se faz necessário o lançamento com a notificação do devedor para apresentação de defesa na esfera administrativa. Nesse sentido é o seguinte questionamento trazido pelo referido autor, em artigo publicado que trata do assunto:

De fato, se antes do contribuinte ser privado de parcela de seus bens, por meio de penhora, depósito ou meio afim, não existe sequer “processo” tratando do mérito da exigência fiscal, que se pode dizer então de um “processo legal” ou, mais ainda, de um “devido processo legal”? (MAZZILLO, 2003, p. 53).

Os princípios do contraditório e da ampla defesa, em uma leitura menos atenta, podem ser compreendidos como algo único. Todavia, esta não é a melhor exegese. Trata-se de uma garantia constitucional e corresponde a base que sustenta o devido processo legal. Vejamos, então, a redação contida no art. 5º, LV, da CRFB/88, in verbis:

Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (BRASIL. Constituição [1988]).

O contraditório revela-se como um princípio de mão-dupla, conforme explica Carlos Henrique Bezerra Leite: “implica que a bilateralidade da ação gere a bilateralidade do processo, aproveitando, portanto, o autor e o réu” (LEITE, 2008, p. 64).

A ampla defesa atua como complemento ao princípio do contraditório. Assim, nas palavras de Carlos Henrique Bezerra Leite, “não teria sentido tal regramento se o réu ficasse impedido ou inibido de excepcionar, contestar, recorrer ou de deduzir toda a prova de seu interesse” (LEITE, 2008, p. 64).

Segundo Eduardo Sabbag, o contraditório é o procedimento no qual tudo o que de relevante é praticado no processo por uma das partes deve ser do conhecimento da parte contrária. Já a ampla defesa permite que as partes aleguem tudo aquilo que for útil na defesa da pretensão posta em juízo (SABBAG, 2009, p. 1021).

Destarte, o contraditório está intimamente ligado ao direito de resposta, decorrente da bilateralidade do processo. Enquanto a ampla defesa, adstringe-se ao direito de produção e de defesa de provas, observando-se a boa fé e a lealdade processual.

Ao caso em tela, salta aos olhos que a ausência de lançamento resulta na inexistência de certidão de dívida ativa e de cobrança do débito pela via administrativa. Assim, restam prejudicados o contraditório e a ampla defesa na esfera administrativa. Nesse sentido é o entendimento de Sérgio Pinto Martins ao afirmar que não foi permitida a ampla possibilidade de impugnação do crédito previdenciário no âmbito administrativo (MARTINS, 2008, p. 25-26).

Ressalte-se que as sentenças proferidas na Justiça do Trabalho reconhecem apenas a existência da relação jurídica de natureza trabalhista. Isso significa que ela somente dá fundamento à formalização da relação jurídica de natureza tributária.

Sendo assim, dotar a cobrança previdenciária de presunção de liquidez e certeza sem antes franquear ao contribuinte, que sequer declarou a existência do débito (via DCTF, GFIP, etc.), a possibilidade de questionamento administrativo, sem dúvida representa cerceamento do direito de defesa. Portanto, a cobrança das verbas previdenciárias é realizada nos próprios autos da reclamação trabalhista, sem prévio lançamento pela autoridade competente ou trâmite processual que justifique o valor apontado como devido.

Dessa forma, é possível chegar à ilação de que a referida cobrança na condição como é realizada afronta os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, gerando prejuízos formais e materiais que são suportados injustamente pelo contribuinte. Então, infere-se que as Leis nº 10.035/00 e nº 11.457/07 determinaram de forma equivocada o procedimento da execução de ofício das verbas previdenciárias. O procedimento adotado afronta não só os princípios em epígrafe como também o art. 146, III, “b”, da CRFB/88.

4 – CONCLUSÃO

Sabe-se que a Emenda Constitucional nº 20, disciplinada posteriormente pelas Leis nº 10.035/2000 e nº 11.457/2007, atribuiu à Justiça do Trabalho a competência para executar de ofício as verbas previdenciárias decorrentes das sentenças que proferir. A partir daí, a Justiça do Trabalho passou a intimar, independentemente de manifestação das partes, a União para compor a lide, realizando a cobrança judicial das verbas previdenciárias decorrentes da relação empregatícia reconhecida.

Com esteio nos argumentos apresentados, conclui-se que a ausência de lançamento do crédito tributário resulta na inexistência de certidão de dívida ativa e na inexistência de cobrança do débito pela via administrativa, o que acarreta o cerceamento do contraditório e da ampla defesa, ocasionando prejuízos formais e materiais que são suportados injustamente pelo contribuinte.

Não há que se falar, como pretendem alguns autores, em violação do princípio da tripartição dos poderes. No entanto, ao não vislumbrar a ampla possibilidade de impugnação do crédito previdenciário no âmbito administrativo, sucede-se a depreciação do direito de defesa do sujeito passivo da relação jurídica tributária.

Sendo assim, dotar a cobrança previdenciária de presunção de liquidez e certeza sem antes franquear ao contribuinte, que sequer declarou a existência do débito (via DCTF, GFIP, etc.), a possibilidade de questionamento administrativo, sem dúvida representa cerceamento do direito de defesa. Portanto, a cobrança das verbas previdenciárias é realizada nos próprios autos da reclamação trabalhista, sem prévio lançamento pela autoridade competente ou trâmite processual que justifique o valor apontado como devido.

Infere-se que as Leis nº 10.035/00 e nº 11.457/07, a Súmula Vinculante nº 53 e a Súmula nº 368 do TST determinaram equivocadamente o procedimento da execução de ofício das verbas previdenciárias, uma vez que o procedimento adotado afronta não só os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, como também o art. 146, III, “b”, da CRFB/88.

5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
Fabiano Medani Frizera Altoé

Advogado Estatal Federal da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH/Brasília/DF). Sócio do escritório Frizera & Altoé - Advocacia Médica, Hospitalar e de Defesa da Saúde (Brasília/DF). Especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Superior Verbo Jurídico/RS, com Extensão em Gestão e Direito da Saúde pela ENA/CFOAB. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários/SP. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória/ES. Bacharel em Comunicação Social pelas Faculdades Integradas Espírito-Santenses/ES.

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