2 Características
2.1 Procedimento Escrito
O fato de ser escrito exige que o inquérito seja documentado, e isso se dá pela necessidade de se poder consultá-lo quando do julgamento, para análise dos fatos, e exercício da defesa e acusação.
Os acontecimentos são dinâmicos, os crimes deixam vestígios, produzem testemunhos. Se o inquérito não fosse documentado de forma escrita muito se perderia, e não só pelo decurso de tempo, mas por que a prática de um crime envolve uma gama de outros fatores, de várias ordens e isso pode provocar uma distorção da realidade. Assim, ao se exigir a documentação de tudo, se corre um menor risco de que os detalhes de percam.
Nas palavras de Capez:
Tendo em vista as finalidades do inquérito não se concebe a existência de uma investigação verbal. Por isso, todas as peças do inquérito policial serão, num só processo, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade (CPP, art. 9º). (CAPEZ, 2012)
A documentação a que se refere o termo “escrito” vai além de testemunhos, incluindo perícias e aferições de quaisquer espécies, como as acareações, ou filmagens, e isso tem como objetivo servir de esteio ao exercício de direitos. Ensina Bonfim:
A adoção da forma escrita constitui, também, uma garantia ao investigado. Conquanto o inquérito policial seja uma peça informativa, é possível que, no seu decorrer, seja atingido o patrimônio jurídico do investigado, seja pela necessidade de acesso as informações ordinariamente cobertas pelo sigilo, seja, mesmo, pela possibilidade de decretação de sua prisão ainda durante o inquérito.
Dessa forma a documentação em peças escritas é essencial para que a atividade policial de investigação possa ser submetida ao controle de legalidade. (BONFIM, 2012)
Outra grande utilidade do ponto de vista investigatório é a possibilidade de a autoridade policial utilizar-se das informações documentadas em uma investigação para desvendar outros crimes, quer seja pela conexão entre eles ou pelo meio empregado pelo criminoso. As investigações policiais são conduzidas, muitas vezes, baseando-se na experiência adquirida em anos de trabalho. Não há uma fórmula cartesiana que possa ensinar como se investiga; isso é feito a duras custas, pelas mãos de investigadores hábeis e dedicados. Assim, um inquérito bem feito e documentado acaba se tornando fonte de consulta de outros policiais.
2.2 Sigiloso
O inquérito não é confeccionado como peça isolada ao fim das investigações; muito pelo contrário, é um encadeamento de etapas, que dependem muitas vezes umas das outras, pois o objetivo final é cristalizar um momento e suas nuances, para que os envolvidos possam dele se valer quando vierem a buscar a aplicação da justiça.
Os inquéritos como pensamos ordinariamente, acabam por ser orientados depois que um crime foi executado, mas no âmbito da polícia judiciária é comum existirem inquéritos que demoram meses, e até anos para serem concluídos, haja vista a complexidade que envolve determinados crimes.
À medida que as investigações evoluem e se alcançam novas informações, são delineadas novas hipóteses ou tomadas outras linhas de análise, outros processos investigativos, não há como se saber onde se chegará antes que se chegue ao fim e sejam esgotadas todas as possibilidades, pois enquanto houverem dúvidas acerca de algo, dificilmente se poderá chegar a uma condenação segura, ou absolvição justa.
O sigilo serve para garantir que não se possa alterar provas e se subverta a verdade dos fatos antes que tenham sido documentadas. Na lição de Norberto Avena:
[...] ao contrário do que ocorre em relação ao processo criminal, que se rege pelo princípio da publicidade (salvo exceções legais), no inquérito policial pode ser resguardado o sigilo durante a sua realização. Essa possibilidade inerente ao inquérito decorre, principalmente, do fato de que o êxito das investigações policiais prende-se, em muito, ao elemento surpresa nas diligências realizadas e ao fato de que as provas colhidas no inquérito são produzidas no estrépito dos acontecimentos, vale dizer, quando ainda não houve possibilidade de o investigado maquiar os fatos como muitas vezes ocorre na fase judicial. (AVENA, 2014)
Na mesma direção elucida Renato Brasileiro:
Se na própria fase processual é possível a restrição à publicidade, o que dizer, então o, quanto aos atos praticados no curso de uma investigação policial? Se o inquérito policial objetiva investigar infrações penais, coletando elementos de informação quanto à autoria e materialidade dos delitos, de nada valeria o trabalho da polícia investigativa se não fosse resguardado o sigilo necessário durame o curso de sua realização. Deve-se compreender então que o elemento da surpresa é na grande maioria dos casos essencial à própria efetividade rias investigações policiais. (LIMA, 2014)
Complementando o exposto, vale ressaltar que o sigilo do inquérito tem dúplice função, pois visa também resguardar que a imagem do suspeito, para que não seja alvo da opinião pública por conta da exposição. Todavia, cabe frisar que esse sigilo também é relativo, uma vez que é possível a publicação da imagem de suspeitos foragidos, ou de retratos falados que possam ajudar a identifica-los. Ainda acerca do sigilo, cabe esclarecer que não se estende ao Ministério Público e obviamente a defesa do suspeito, entretanto, em relação a este último, apenas no que diz respeito ao que já tenha sido documentado nos autos do inquérito. Neste mesmo compasso ensina Bonfim, que chega a delinear dois tipos de sigilo, um de caráter interno e outro de caráter interno:
Há, entretanto, que se fazer distinção entre: a) sigilo externo e b) sigilo interno. O sigilo externo diz respeito à restrição a publicidade dos atos de investigação com relação às pessoas do povo. Já o sigilo interno constitui impossibilidade de o investigado tomar ciência das diligências realizadas e acompanhar os atos investigatórios a serem realizados. (BONFIM, 2012)
E por fim, o mesmo autor corrobora o que fora dito anteriormente quando afirma no mesmo contexto:
O sigilo que pode cercar o inquérito policial não é, entretanto, absoluto. Com efeito, o Ministério Público e o Poder Judiciário, em qualquer situação, têm a prerrogativa de acompanhar o desenvolvimento do inquérito. (BONFIM, 2012)
Em relação ao sigilo dos atos ainda em curso quando ainda não terminado o inquérito, haja vista ser possível a investigação fora dele, como por exemplo, naquelas conduzidas pelo Ministério Público, ensinam Rogério Sanchez, de forma mais abrangente,
Tal sigilo porém, não estende aos membros do Poder Judiciário e Ministério Público a quem se confere, em relação a esse último, a faculdade de acompanhar o procedimento investigatório (art. 15, III, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público). O advogado também desfruta do direito de examinar os autos de inquérito policial, conforme dispões o art.7º, XIV, do Estatuto da Advocacia (Lei no 8.906/94), o que não induz pensar que deva ser chamado para participar das investigações em curso. (CUNHA; PINTO, 2009)
Assevere-se que, em consoante a importância do tema, em 2009 o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 14, com o intuito de afastar qualquer alegação de desrespeito a direitos diante da decretação do sigilo de determinados procedimentos investigatórios, estabelecendo: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Sobre a citada Súmula leciona Capez em conformidade com o que foi dito anteriormente, “trata-se de publicidade que não se afigura plena e irrestrita, uma vez que se admite, apenas, a consulta a elementos já colhidos, não se permitindo o acesso às demais diligências em trâmite.” (Capez, 2012)
Via de regra, o acesso aos dados já documentados no inquérito não carece de autorização judicial, podendo o advogado consultá-los, a fim de orientar seu trabalho, porém, aponta Renato Brasileiro, uma exceção:
Pelo menos em regra, o acesso do defensor aos elementos de informação já documentados nos autos do procedimento investigatório independe de prévia autorização judicial. No entanto, em se tratando de investigação referente a organizações criminosas, uma vez decretado o sigilo da investigação pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das diligências investigatórias, o acesso do defensor aos elementos informativos deverá ser precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento (Lei n° 12.850/13. arr. 23, caput). (LIMA, 2014)
Pelo exposto, percebe-se que o sigilo segue a lógica da instrumentalidade do inquérito, e se por um lado guarnece o suspeito da exposição pública, por outro garante ao Estado meios de alcançar sucesso nas investigações; assim, funciona essa, como uma garantia dúplice, em absoluta consonância com os princípios constitucionais.
2.3 Oficialidade
Essa é mais uma característica do inquérito e tem relação com a exclusividade do exercício do jus puniendi por parte do Estado. Assim, o poder público é o único detentor da prerrogativa de imiscuir-se na vida alheia com o fito de revolver fatos, invadir a esfera de interesses individuais e aplicar a lei e nome da coletividade.
A Constituição em seu artigo 144, §4º determinou que o a persecução penal deva ser realizada pelas policias civis, ressalvados os interesses da União, quando então a responsabilidade da apuração ficará cargo da Policia Federal. O instrumento hábil a esse mister, é justamente o inquérito policial, que deverá ser presidido pela autoridade policial, o delegado de polícia, a quem compete a presidência do inquérito.
Não se pode, por respeito à própria Constituição Federal, subverter a estrutura desse sistema e não há como se delegar essa função a outras autoridades públicas, nem mesmo ao juiz. Todavia, é possível que a investigação criminal ocorra por intermédio de outras instituições, sem contudo ser efetuada por meio do inquérito policial.
Sobre a oficialidade, leciona Avena,
trata-se de investigação que deve ser realizada por autoridades e agentes integrantes dos quadros públicos, sendo vedada a delegação da atividade investigatória a particulares, inclusive por força da própria Constituição Federal. (AVENA, 2014)
Sobre a investigação efetuada por outras instituições, o ponto mais relevante diz respeito à atribuição do Ministério Público de conduzir investigações criminais. Sobre o tema, existem dois posicionamentos: o primeiro a considerar que tal atribuição não seria sua competência. Esclarece o professor Avena:
Para os adeptos da primeira linha de pensamento, ou seja, a de que o Ministério Público não pode, por conta própria, conduzir essa ordem de investigações, o motivo da vedação reside no fato de o art.129 da Constituição Federal, ao contrário do que ocorre com a investigação civil (expressamente facultada ao Ministério Público pelo inciso III), não contém regra expressa incluindo, entre as faculdades ministeriais, a realização de investigação criminal. Sustentam, ainda, que o art. 144, §§ 1º, I e 4º, da CF, ao dispor que às polícias federais e civis cabe a apuração das infrações penais, silencia quanto ao Ministério Público, razão pela qual lhe permitir tal ordem de atividade importa aceitar uma indevida invasão de competências constitucionais estabelecidas. (AVENA, 2014)
Na mesma direção, Renato Brasileiro cita os pontos mais relevantes citados pela doutrina:
Entre outros fundamentos apontados por esses doutrinadores podemos citar:
1) a investigação pelo Parquet atenta contra o sistema acusatório, pois cria um desequilíbrio na paridade de armas;
2) a Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências e instauração de inquéritos policiais (are. 129, VIII), mas não lhe conferiu o poder de realizar e presidir inquéritos policiais;
3) a atividade investigatória é exclusiva da Polícia Judiciária (CF, arr. 144, § 1°, IV. c/c art.144, §4°);
4) não há previsão legal de instrumento idóneo para a realização de investigações pelo Ministério Público. (LIMA, 2014)
Agora, em sentido diametralmente oposto, Avena:
Já corrente oposta, que é majoritária, aduz que a prerrogativa para conduzir investigação criminal internamento à Promotoria ou Procuradoria decorre da regra do art.129, VI, da Carta Política, quando lhe confere a possibilidade de “expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva”. (AVENA, 2014)
E em referência a supracitada lei complementar continua:
Além disso, existe lei complementar consagrando a possibilidade de que o Ministério Público realize atividade investigativa sem restrição quanto a se tratar de investigação civil ou criminal. Trata da LC 75/1993, que organiza o Ministério Público da União e que, no art. 8º, V, faculta ao parquet realizar diligências investigatórias. Ora se é viável essa atribuição aos membros do Ministério Público Federal, não há motivo para que se proíba a mesma atuação na órbita do Ministério Público dos Estados, mesmo porque, simetricamente à LC 75/1993, a Lei 8.625/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público dos Estados) incorpora, no art. 26, um rol de atribuições que se adapta tanto às investigações civis quanto as criminais. (AVENA, 2014)
Outro ponto importante que o professor Avena cita como justificativa à atuação investigativa do Ministério Público em sede criminal, está relacionado à teoria dos poderes implícitos:
Por fim, tenha-se em mente que a teoria dos poderes implícitos, pela qual os encargos estabelecidos constitucionalmente a um determinado órgão permitem a este, implicitamente, utilizar os meios necessários para alcança-los, desde que não se tratem, evidentemente, de meios proibidos pela própria constituição. Adaptando-se esta teoria à investigação criminal, depreende-se que, ao estabelecer como função institucional do Ministério Público o ajuizamento da ação penal pública, a Constituição Federal, implicitamente, está facultando ao promotor de justiça a investigação do fato delituoso para angariar os elementos necessários ao oferecimento da denúncia. (AVENA, 2014)
Considerando não só as justificativas elencadas, mas outras de mesma natureza, nos dois sentidos, vemos que a capacidade investigativa do parquet deve ser vista como uma garantia última de que a justiça será aplicada. Todavia, não se deve esquecer que ao concentrar no órgão acusador a tarefa de produzir provas na fase administrativa, eliminando-se o inquérito e a atuação da polícia; abre-se a possibilidade que a imparcialidade seja colocada em segundo plano, mesmo porque, se o controle externo da polícia pelo Ministério Público existe justamente para garantir essa imparcialidade, que controle externo sofrerá o órgão ministerial a também garantir tal equilíbrio?
Em resumo, a oficialidade é tão importante que ainda que a titularidade da ação penal pertença ao ofendido, isso não o é suficiente para delegar-lhe a possibilidade de interferir na condução do inquérito, podendo tão somente optar por requisitar a autoridade policial sua instauração, o que poderá inclusive ser negado, caso não haja crime. Nesse mesmo paço, ensina Capez, “o inquérito policial é uma atividade investigatória feita por órgãos oficiais, não podendo ficar a cargo do particular, ainda que a titularidade da ação penal seja atribuída ao ofendido.” (CAPEZ, 2012)
E essa determinação tem um sentido prático, pois delegar a tarefa investigatória a particulares terminaria por deixar a sociedade a mercê de toda sorte de abusos e arbitrariedades, além de prejudicar o sucesso e eventuais investigações, haja vista a complexidade que envolve a tarefa investigativa. A oficialidade é característica relacionada ao controle externo da polícia, este exercido pelo Ministério Público.
2.4 Oficiosidade
A segurança pública é dever do Estado e direito de todo cidadão. Com base nesse pressuposto, toda pratica delituosa passa a ser matéria de interesse público, devendo o aparato público mobilizar meios que levem a identificação de autores e sua responsabilização. Todavia, em sentido mais amplo, o interesse estatal não é apenas o de punir, mas apurar a verdade, haja vista muitas condutas típicas poderem estar amparadas por justificantes, como a legitima defesa ou estado de necessidade.
A busca da verdade é sempre uma obrigação do ente público, e é o Delegado de Polícia responsável pelo inquérito o incumbido de alcançá-la. Nesse diapasão, atribuir a característica da oficiosidade ao inquérito nada mais é que considerá-lo instrumento dessa busca. Em consonância com o exposto elucida Zanotti:
A característica da oficiosidade consiste em um dever legal imposto ao Delegado de Polícia, no sentido de que todo procedimento é feito de ofício e com o objetivo de colher elementos de autoria e prova de materialidade, desde a instauração do inquérito policial até o relatório final. (ZANOTTI; SANTOS, 2013)
Sempre que houver crime de ação pública incondicionada, haverá a instauração de inquérito, nessa toada assevera Avena:
[...] ressalvadas as hipóteses de ação pública condicionada à representação e dos delitos de ação penal privada, o inquérito policial deve ser instaurado ex officio (independente de provocação) pela autoridade policial sempre que tiver conhecimento da prática de algum delito (art.5º, I, do CPP). Observe-se que a instauração do inquérito policial justifica-se diante da notícia quanto à ocorrência de uma infração penal, como tal considerada o fato típico. Desimportam, assim, aspectos outros como, por exemplo, eventuais evidências de ter sido o fato praticado ao abrigo de causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade. (AVENA, 2014)
O fato de ser oficioso em nada está relacionado com o meio que deu início ao inquérito, e sim com o tipo de ação penal relativa ao crime cometido. Nesse sentido, Bonfim:
Ressalte-se que, embora o art.5º, caput, mencione que, “nos crimes de ação pública”, o inquérito será instaurado de ofício, a interpretação correta do dispositivo é no sentido de que apenas em relação àqueles crimes em que se preveja a ação penal de iniciativa pública sem representação ou requisição o inquérito poderá ser instaurado ex officio. (BONFIM, 2012)
Em relação às outras ações penais, a privada e a condicionada à representação, o que muda é apenas o meio pelo qual se dá a instauração do inquérito; no entanto, que uma vez feita, conduz o procedimento ao mesmo status, obrigando a oficiosidade, assim enfatiza Zanotti:
É importante ressaltar que as instaurações das ações penais públicas condicionadas e as ações penais privadas são exceções à característica da oficiosidade; no entanto, passada essa etapa inicial, o trâmite do procedimento segue de ofício. (ZANOTTI; SANTOS, 2013)
Muito embora o autor tenha se utilizado do termo ações no trecho citado, a lógica é aplicável ao inquérito policial.
2.5 Autoridade
De fundamentação constitucional, este princípio é de importância essencial ao esquema de aplicação da justiça, pois centraliza e organiza a persecução penal em sua fase administrativa e estabelece a responsabilidade pela elucidação do fato típico e da conclusão do inquérito.
Leciona Cabral: “a autoridade é característica do inquérito policial que estabelece que o Delegado de Polícia é autoridade pública com poder de decisão na presidência do inquérito policial e poder de mando dentro da instituição policial. (Souza & Cabral, 2013)
Longe de apenas estabelecer um caráter hierárquico às policias, essa característica garante que se possa responsabilizar diretamente uma autoridade pública por pela busca da aplicação da justiça.
Deve-se, antes de tudo, rememorar que o inquérito é a cristalização de trabalho de muitas mãos, e que envolve, na maioria das vezes, o trabalho de várias disciplinas. Assim é um árduo trabalho interpretar, selecionar e trazer ao mundo do direito os fatos da vida com isenção e imparcialidade. Isso exige por parte do delegado não apenas conhecimento jurídico, mas o de várias outras disciplinas, além de extrema técnica, pois do contrário pode-se comprometer severamente o resultado final do processo.
2.6 Indisponibilidade
Consoante o fato de ser o inquérito policial um meio busca pelo estado da aplicação da justiça, nada mais natural do que garantir que, uma vez instaurado, alcance um fim. Considerar indisponível o inquérito nada mais traduz que sua importância ao interesse público, todavia essa indisponibilidade muitas vezes leva ao caos dentro das delegacias de polícia, e isso ocorre porque, tanto o inquérito que apura o furto de um pacote de biscoitos, quanto aquele que busca desvendar um latrocínio serem indisponíveis, o que obriga a autoridade policial a conviver com um número de inquéritos abertos muito superior ao que pode ser apurado, considerando-se os meios disponíveis para tanto.
Acerca da indisponibilidade, ensina Avena:
[...] uma vez instaurado o inquérito, não pode a autoridade policial, por sua própria iniciativa, promover o seu arquivamento (art.17 do CPP), ainda que venha a constatar a atipicidade do fato apurado ou que não tenha detectado indícios que apontem o seu autor. Em suma, o inquérito sempre deverá ser concluído e encaminhado a juízo. (AVENA, 2014)
Ao se ponderar anteriormente que um inquérito que apura crime de furto e outro que apura o de latrocínio, possuem a mesma natureza, não se disse que um crime de furto mereça manos atenção por parte do Estado, mas que, dever-se-ia encontrar meios de equacionar os meios e a realidade, haja vista não ser possível atender a demanda que hoje existe. É absolutamente essencial que o inquérito seja indisponível, mas não que se deva apurar todo e qualquer crime por meio de um inquérito.
2.7 Discricionariedade
A discricionariedade do inquérito policial está relacionada com os atos relativos à sua condução, onde, dependendo da complexidade e natureza do crime que se apura, deverão ser adotadas uma ou outra medida, tais como exames periciais, pedidos de interceptação telefônica e buscas residências, por exemplo. Ao determinar que a condução do inquérito seja presidida pela autoridade policial, o Código de Processo Penal está delegando a ela o poder-dever de enveredar esforços no sentido de construir o conjunto probatório no corpo do inquérito, visando encerrar a fase administrativa da persecução penal, com a sua conclusão.
A respeito do tema, leciona Avena:
[...] a persecução, no inquérito policial, concentra-se na figura do delegado de polícia que, por isso mesmo, pode determinar ou postular, com discricionariedade, todas as diligências que julgar necessárias ao esclarecimento dos fatos. Isso quer dizer que, uma vez instaurado o inquérito, possui a autoridade policial liberdade para decidir acerca das providências pertinentes ao êxito da investigação. (AVENA, 2014)
Apesar de parecer contraditório considerar a existência em um mesmo instrumento da discricionariedade e da oficiosidade, pois são antagônicas, deve-se observar que a coexistências de ambas é possível porque se complementam dentro de um mesmo contexto, sendo a última referente a obrigatoriedade da instauração do inquérito e a primeira relativa a condução das investigações após o início. Nessa direção, mais uma vez esclarece Avena:
A discricionariedade que caracteriza o inquérito não colide, portanto com a oficiosidade, que também o peculiariza. Esta última refere-se à obrigatoriedade de instauração do inquérito em face da notícia de um crime que autoriza o agir ex officio do delegado, enquanto a primeira concerne à forma de condução das investigações, o que abrange tanto a natureza dos atos investigatórios (oitiva de testemunhas, perícia, etc.) quanto a ordem de sua realização. (AVENA, 2014)
A discricionariedade, entretanto, possui limites e esses aparecem em dois pontos: o primeiro na própria lei, que estabelece um rol de atos que devem ser realizados pela autoridade policial, conforme ensina Bonfim:
Não obstante gozar de ampla discricionariedade na condução das investigações, o Código de Processo Penal determina algumas práticas que, se adequadas aos casos concretamente apresentados, deverão ser adotadas, demonstrando a complexidade do inquérito, na medida em que a autoridade policial realizará várias medidas que configurarão o todo das investigações. Deverá a autoridade policial, portanto, realizar as diligencias previstas no art.6º do Código de Processo Penal, evidentemente se pertinentes ao fato investigado, cabendo-lhe livremente – dentro dos parâmetros legais – eleger outras que julgar necessárias e eficientes para a elucidação do fato. (BONFIM, 2012)
O outro limite à discricionariedade da atuação da autoridade policial durante o inquérito policial é fruto do próprio garantismo constitucional, que, em qualquer caso, deve servir de parâmetro tanto a atuação estatal quanto ao convívio social. Nesse sentido, ainda que possa determinar a realização de determinada diligência, o delegado deve observar se o feito está em harmonia com as garantias constitucionais, e que seu cumprimento obedeça a todos os direitos e garantias constitucionais. Um claro exemplo disso pode ser observado nos seguintes ensinamentos do professor Bonfim:
[...] a autoridade policial poderá proceder a reprodução simulada dos fatos – vulgarmente chamada “reconstituição do crime” -, desde que essa prática não contrarie a moralidade pública (art.7º do Código de Processo Penal). (BONFIM, 2012)
E continua, agora estabelecendo como parâmetro o direito ao silêncio:
O indiciado, ressalte-se, conquanto possa ser forçado a presenciar o ato de reprodução simulada dos fatos, não tem obrigação de colaborar com sua realização, porquanto ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo, conforme o princípio nemo tenetur se detegere (privilege against self-incrimination), que decorre da combinação da presunção de inocência (art.5º, LVII), ampla defesa (art.5º, LV), com o direito ao silêncio do acusado (art.5º, LXIII). Este é o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF: RT, 697/385).
Assim, pelo que foi exposto, deve-se entender a discricionariedade como uma característica multifacetada, pois, ora se apresenta com grande amplitude, quando se prevê liberdade de atuação do delegado de polícia na condução das investigações, e ora se mostra mitigada quando se impõe a realização de determinados exames ou procedimentos quando os crimes deixem vestígios, mas o crucial é, mais uma vez, perceber que antes de se mostrar como mera característica, a discricionariedade é na verdade uma garantia, pois permite a atuação do estado que, de outra maneira, não teria como elucidar a prática criminosa. Em apertada síntese, os professores Cabral e Souza esclarecem de maneira simples, mas completa:
A autoridade policial possui ampla discricionariedade ao iniciar uma investigação, ou seja, tem ampla liberdade de agir para a apuração do fato criminoso, dentro dos limites traçados pela CF/88 e pela legislação processual penal.
Assim, a autoridade policial avalia e define com base no seu conhecimento técnico e experiência quais diligências serão cumpridas no bojo do inquérito policial, bem como o momento de sua realização. (SOUZA; CABRAL, 2013)
2.8 Inquisitivo
Uma das características mais interessantes do inquérito policial, sem sombra de dúvidas, essa, não só o peculiariza, mas o torna o único instrumento capaz de atender à urgência que se instala quando do cometimento de um crime. Assim, ela não só torna viável toda a investigação, que de outra forma seria impossível, como melhora as chances de que seja concluída com êxito.
Nesse sentido Távora e Alencar:
A inquisitoriedade permite agilidade nas investigações, otimizando a atuação da autoridade policial. Contudo, como não houve a participação do indiciado ou suspeito no transcorrer do procedimento, defendendo-se e exercendo contraditório, não poderá o magistrado, na fase processual, valer-se apenas do inquérito para proferir sentença condenatória, pois incorreria em clara violação ao texto constitucional. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)
Acrescentando ao tema sobre a inquisitoriedade, asseveram Santos e Zanotti: “de acordo com o Código de Processo Penal, o inquérito policial não contempla os direitos fundamentais do contraditório e ampla defesa, sendo, por essa razão, qualificado como inquisitivo.” (ZANOTTI; SANTOS, 2013)
E no mesmo sentido, Cabral e Santos:
O CPP distingue a fase investigativa (inquérito policial, arts. 4º ao 23) da instrução criminal no âmbito do Poder Judiciário (arts. 394 ao 405). Assim não vigora o princípio do contraditório na fase inaugural, uma vez que na esfera policial não há acusação e defesa, institutos obrigatórios na fase judicial. (SOUZA; CABRAL, 2013)
Algo que inicialmente pode parecer meio confuso diz respeito à possibilidade do investigado de solicitar a realização de determinadas diligências, uma vez que o inquérito é procedimento inquisitivo, todavia deve-se recordar que essas poderão ou não, a critério da autoridade policial, ser efetuadas.
Como também o inquérito é discricionário, poder-se-ia imaginar que isso ocorreria por conta da liberdade de atuação do delegado de polícia relativa à discricionariedade, mas a verdade é que as características do inquérito têm entre si uma relação de complementaridade. Ainda sobre o tema, devemos considerar que, ainda que possa negar-lhe a realização, a diligência deverá ser realizada quando for relevante a elucidação dos fatos. Recordemos que, antes de tudo, a autoridade policial tem o dever de zelar pela busca da verdade.
Nessa direção apontam mais uma vez Cabral e Souza: “como já visto, o delegado de polícia busca a verdade real, não sendo parte em qualquer polo da relação processual penal. Por isso mesmo, o inquérito policial também é uma garantia para o cidadão”. (SOUZA; CABRAL, 2013)
O professor Avena leciona que o próprio judiciário tem se posicionado no sentido de determinar a execução de diligências quando forem comprovadamente relevantes ao exercício da ampla defesa:
[...] muito embora o deferimento ou não das providências requeridas fique a critério da autoridade policial, isto “não haverá de constituir empeço a que se garantam direitos sensíveis do ofendido, do indiciado etc.” (STJ, HC 69.405/SP, 6ª Turma, DJ 25.02.2008), alcançando-se, então, por meio do Poder Judiciário, a determinação para que delegado realize a medida pretendida em face da sua pertinência com a situação investigada. (AVENA, 2014)
Considerando o exposto, chegamos ao entendimento de que a inquisitoriedade, ainda que afaste a participação dos envolvidos para dar celeridade e proteger a investigação da interferência externa, não é absoluta, haja vista ser possível ao suspeito solicitar a realização de diligências.
A discricionariedade, por outro plano, complementa a inquisitoriedade, garantindo que a autoridade policial possa realizar seu trabalho da melhor maneira possível, mas encontra limites na própria necessidade pela busca da verdade. Nesse sentido, entendem ser justificável a mitigação da inquisitoriedade, Távora e Alencar:
Atenuar o contraditório e o direito de defesa na fase preliminar, por suas próprias características, não pode significar integral eliminação. O inquérito deve funcionar como procedimento de filtro, viabilizando a deflagração do processo quando exista justa causa, mas também contribuindo para que pessoas nitidamente inocentes não sejam processadas. (TÁVORA; ALENCAR, 2013)
2.9 Unidirecional
É comum encontrar autores que trazem uma separação diferente entre as características do inquérito, e dentro desse contexto consideramos válida a consignação desta, uma vez que foi elencada pelos professores Cabral e Souza, ambos delegados de polícia, e que exatamente por isso vislumbram nela uma importante referência a particularizar o inquérito.
Relacionando-a com o objetivo final das investigações, que são a elucidação dos fatos e o eventual indiciamento dos supostos autores, dão ênfase na postura profissional que deve permear a atuação profissional da autoridade policial:
O inquérito policial destina-se apenas à apuração objetiva de ilícitos penais, não sendo papel da autoridade policial, quando do término da investigação, emitir juízo de valor sobre as condutas praticadas pelos investigados.
Deve a autoridade policial lançar no relatório conclusivo apenas observações de cunho técnico-jurídico relacionadas à conduta do indiciado e o seu enquadramento penal. (SOUZA; CABRAL, 2013)
2.10 Dispensável
Existe grande celeuma em torno da relevância do inquérito policial para a elucidação de crimes. Os que argumentam pela sua ineficácia justificam que esta advém dessa característica, todavia, sem o menor fundamento, pois como se verá, dizer que o inquérito é dispensável é diametralmente diferente de dizê-lo inútil.
Antes de adentrar ao tema, é crucial entender exatamente o que a lei determina, o que acontece na prática e o porquê do distanciamento entre ambas realidades.
Em relação ao inquérito, se diz dispensável, pois o Ministério Público pode oferecer a denúncia sem que haja inquérito, ou que, contrariando as provas colhidas em seu bojo, decida fazê-lo. Em todo caso, ainda paira a responsabilidade por comprovar a existência de fundamentos para o oferecimento da denúncia, caso o Ministério Público decida oferecer a denúncia dispensando ou contrariando as provas do inquérito, nesse mesmo compasso, Capez:
O Inquérito policial não é fase obrigatória da persecução penal, podendo ser dispensado caso o Ministério Público ou o ofendido já disponha de suficientes elementos para a propositura da ação penal (CPP, arts. 12, 27, 39, § 5º, e 46, § 1º).
Atenção: O titular da ação penal pode abrir mão do inquérito policial, mas não pode eximir-se de demonstrar a verossimilhança da acusação, ou seja, a justa causa da imputação, sob pena de ver rejeitada a peça inicial. Não se concebe que a acusação careça de um mínimo de elementos de convicção. (CAPEZ, 2012)
Pensamos nessa como sendo consequência do inquérito, colocando-a apenas como uma garantia necessária para a marcha persecutória, caso não se tenha conseguido alcançar um resultado prático ou se vejam prejudicadas as investigações. Nesse mesmo paço é também compreensível que se permita o início da ação penal caso já se disponha de provas suficientes para o feito.
Relacionamos essa característica ao valor probatório do inquérito, que, apesar se ser relativo, é fundamental. Diz-se relativo, por ser inquisitorial, assim, como na fase administrativa não se oportunizou o contraditório e a ampla defesa, não se poderia dar valor absoluto às provas angariadas no inquérito.
Nesse sentido, explica Bonfim:
A doutrina discute acaloradamente acerca da possibilidade de que elementos probatórios sejam utilizados como fundamento para a condenação do réu, em juízo. Isto, principalmente, em virtude do caráter inquisitivo desse procedimento preliminar, a que não se aplicam, em sua integralidade, as regras inerentes aos princípios do devido processo legal e do contraditório. (BONFIM, 2012)
Tendo por base o que foi relacionado, vê-se que é comum relegar o inquérito a um segundo plano de importância com base no fato de a lei não dizê-lo essencial a propositura da ação penal, todavia, isso ocorre como uma garantia, tanto de independência do Ministério Público, como de que se tenha a possibilidade de divergir das investigações. Na realidade, o inquérito, como resultado do trabalho investigativo, é riquíssimo e representa a diferença entre a impunidade e a justiça. Não se pode pensar em atuação policial, em um estado democrático de direito, sem a existência de um inquérito, ou outro procedimento de cunho administrativo.
2.11 Temporalidade
Preliminarmente, cabe relembrar que o inquérito policial é procedimento e não processo, haja vista não haver partes ou as garantias do contraditório e ampla defesa. Todavia, é entendimento dominante na doutrina e jurisprudência que o procedimento inquisitorial deve desenrolar-se dentro de um lapso de tempo coerente.
Sobre o tema lecionam Sousa e Cabral:
A doutrina entende que o art. 5º, inc. LXXVIII, da CF (direito fundamental à celeridade processual), não se aplica apenas os processos, mas também ao inquérito policial.
Em relação ao tema, é oportuno registrar que o STJ já determinou o trancamento de um inquérito policial que se arrastava à época há mais de cinco anos sem solução, por força da garantia da razoável duração do processo (HC 114.593/SP, Rel. Min. Jorge Mussi). (SOUZA; CABRAL, 2013)
Na mesma direção, Renato Brasileiro:
A nosso ver, diante da inserção do direito à razoável duração do processo na Constituição Federal (arr. 5°, LXXVIII), já não há mais dúvidas de que um inquérito policial não pode ter seu prazo de conclusão prorrogado indefinidamente. As diligências devem ser realizadas pela autoridade policial enquanto houver necessidade. Evidentemente em situações mais complexas, envolvendo vários acusados, é lógico que o prazo para a conclusão das investigações deverá ser sucessivamente prorrogado. Porém, uma vez verificada a impossibilidade de colheita de elementos que autorizem o oferecimento de denúncia, deve o Promotor de Justiça requerer o arquivamento dos autos. (LIMA, 2014)
A despeito do que foi dito, e da própria lei disciplinar os prazos para conclusão no inquérito, a verdade é que, atualmente, é comum encontrar inquéritos que se arrastam por anos.
O desrespeito dos prazos só traz consequências imediatas em relação às medidas cautelares restritivas de liberdade, quando o excesso de prazo poderá levar a libertação do suspeito. Todavia, em relação ao próprio inquérito esclarecem Zanotti e Santos:
Eventual descumprimento de tais prazos não implicará o arquivamento precoce do inquérito policial, uma vez que se trata de vício em um procedimento administrativo e voltado, principalmente, para o bom andamento da atividade policial. (ZANOTTI; SANTOS, 2013)
Assim, se por um lado a possibilidade de renovação dos prazos para conclusão possa ser necessária, a indefinição quanto ao objetivo dessas inúmeras de diligências pode levar o inquérito a total inutilidade. Por outro prisma, é possível perceber que através do inquérito é que se pode combater a ineficiência estatal nessa primeira fase de apuração dos delitos, pois como procedimento formal, documenta tudo o que é feito, conduzindo tanto a responsabilização de eventuais desídias quanto a possibilidade de o suspeito valer-se do judiciário para o trancamento de inquéritos injustificavelmente morosos.