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Sistema Financeiro da Habitação:

análise e proposta de solução

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05/03/2005 às 00:00
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Uma Solução Possível

            Conjugando-se tudo, máxime os comprometimentos econômicos e o cunho social das lides que se fundam no SFH, a única solução viável juridicamente é a averiguação do valor de mercado atual do imóvel financiado em comparação com o total comprovadamente pago pelo mutuário.

            Não é de justiça que o mutuário deva desembolsar valor superior ao do bem negociado.

            Por outro lado, conquanto seja também verdade que a CEF limitou-se a gerir o sistema caótico que herdou do Banco Nacional da Habitação, é uma empresa pública e, como tal, membro da Administração Indireta, devendo assim arcar com a maior parte do prejuízo que o sistema gera por conta da política habitacional implementada pela Administração Direta.

            Não há dúvida de que a CEF manifestará inconformismo caso o Judiciário venha a não admitir que o mutuário continue pagando o financiamento nos exatos moldes do contrato por reconhecer-lhe a injustiça e o atentado ao princípio rudimentar de que o preço não deve ultrapassar o valor do bem negociado.

            É óbvio que os recursos serão interpostos de imediato, até porque as ações certamente não ostentam pedido formulado exatamente nesses moldes, ao menos na grande maioria dos casos.

            Todavia, abstraindo-se os rigores científicos da Processualística e com olhos fixos na realidade forense, é inafastável que, com muito maior freqüência do que se imagina, a tutela jurisdicional concedida ao fim do processo atende ao quanto pedido na inicial sem contudo refletir-lhe os exatos contornos.

            Nem por isso o pedido é acolhido de modo parcial ou sob o vício dos provimentos infra, extra ou ultra petita. As causas habitacionais mais e mais são tidas à conta de demandas de natureza alimentar.

            Realmente, o direito à habitação caminha em largos passos em direção ao solo dos direitos fundamentais do cidadão, aqueles direitos que repousam sobre o dever de atendimento que toca ao próprio Estado. Não menos evidente é a caracterização do mutuário como consumidor, juridicamente considerado à sombra da proteção das normas consumeiristas, de modo que sua hipossuficiência é de absoluta presunção. Ora, daí advém necessariamente que a tutela jurisdicional do Estado não se poderá obstar por rigores formais nada adequados à flexibilidade típica da fungibilidade inerente aos direitos de cunho alimentar.

            Busquemos analogias.

            Ninguém tem dúvida de que o segurado da Previdência Social, caso peça menos do que poderia, terá a tutela jurisdicional que melhor lhe atenda às necessidades de acordo com que prevê a lei. De fato, pouco importa que o pedido restrinja-se à concessão de auxílio-doença, por hipótese, bastando que se comprove a plena incapacidade laborativa para que o Judiciário possa condenar o INSS no pagamento do benefício adequado, determinando a aposentação do segurado.

            Esse tipo de flexibilidade, a bem da verdade, já existe no que tange às ações que se fundam no SFH. É muito comum o juiz liminarmente determinar o pagamento pelos mutuários do valor incontroverso diretamente ao agente financeiro quando o pedido sumário, na verdade, buscava o depósito de tais valores.

            Ainda nesse contexto, há juízes que liminarmente vedam desde logo a eventual realização de praceamento extrajudicial do imóvel financiado tão-só diante de pedidos genéricos dirigidos a medidas administrativas como a não-inclusão dos mutuários em registros de inadimplentes.

            É o Judiciário dando à parte o que melhor lhe cabe sem restrições meramente de forma diante da natureza alimentar do direito à habitação.

            Aliás, é bom que não se defenda excessivo rigor de forma no que pertine às ações tocantes à habitação, porquanto não haverá como dar-se solução às milhares de famílias que demandam em cada Juízo se não se reconhecer a natureza alimentar do direito à habitação, com todas as conseqüências daí advindas, máxime a presunção absoluta de hipossuficiência do mutuário.

            Em contrapartida, a Caixa Econômica Federal terá a garantia de que a quitação dos contratos cinge-se estritamente à comprovação de que já foi pago valor suficiente, entendido esse como o valor de mercado atual do imóvel.

            A solução adotada atende, repise-se, à hipossuficiência econômica do mutuário em termos de proteção consumeirista.

            A eventual existência de superávit em favor do mutuário como resultado da comparação entre o quanto pago e o valor atual de mercado do imóvel não implica no reconhecimento de crédito como efeito da sentença que for proferida, já que o deslinde da causa não terá advindo do encontro de contas ou investigação contábil para esse fim.

            O desfecho do litígio estará assente no princípio da distribuição da justiça e dos fins sociais do processo, principalmente porque não se trata do reconhecimento de culpa civil da CEF, mas sim do reconhecimento de que as distorções do Sistema Financeiro da Habitação torna injusta a continuidade do financiamento quando o valor pago supre o valor de mercado do imóvel.

            Dessarte, eventual pretensão em busca de diferenças há que fundar-se em nova busca de tutela jurisdicional, sob fundamentos próprios.

            Em suma, a questão se resolve pelo seu aspecto mais simples: o preço não pode ultrapassar o conteúdo econômico do bem negociado.

            Outro aspecto de relevo é o inadimplemento puro e simples que ocorre por parte de alguns mutuários e que se pretende ocultar sob argumentações variadíssimas acerca das mazelas do sistema habitacional.

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            Com efeito, há ações em que os fatos averiguados com a instrução muito mais evidenciam um crônico inadimplemento das obrigações contratuais por parte do mutuário do que lesões efetivas que tivesse sofrido caso pagasse as prestações do financiamento. Não se deve confundir situações díspares como a do mutuário que vem pagando seu financiamento e se põe diante do juiz para discutir as cláusulas contratuais, em contrapartida ao mutuário que falta com inúmeros pagamentos, anos a fio, e se lança à Justiça em busca de uma solução para seu débito.

            Mais uma vez a melhor forma de afastar o joio do trigo, verificando-se quem tem mesmo razão para sentir-se lesado, é o critério da comparação entre o quanto se pagou e o valor comercial atual do imóvel.

            Se o mutuário pagou valor que atinja o valor de mercado, tenha-se por quitado o débito, sob pena de uma ostensiva sobrevaloração do bem negociado; se não pagou o bastante, ficando aquém do valor de mercado, deverá cumprir o contrato, independentemente de se discutir o acerto do valor das prestações, até que aquele valor seja atingido.

            Não será difícil para o Judiciário, através de verificação contábil, fixar o valor a ser atingido, quantas e de qual valor serão as prestações que faltam, atualizando-se o valor da dívida restante tão-somente por atualização monetária.

            Não mais se cogita de aplicação de índices vinculados à poupança, mas sim de correção monetária apenas, de forma a preservar o valor do imóvel para que não advenha excessivo prejuízo à CEF.

            Consoante a jurisprudência já assentou em outras plagas, não há direito adquirido a um determinado índice de correção ou de reajuste, pelo que a correção monetária é de ser feita pelo percentual oficial. Haverá mutuários que afirmarão nada terem conseguido de concreto com tal solução, é certo, mas, enfim, se o financiamento ficou em aberto de modo que não se atingiu o valor de mercado do imóvel, ao menos esse deverá ser atingido, sendo justo que esse valor seja preservado, a fim de não se afrontar o ente financeiro de modo incoerente com o critério fixado em defesa do mutuário.

            Ainda assim a vitória do mutuário será de fácil reconhecimento, uma vez que não mais submeter-se-á a um saldo devedor ilimitado, mas sim a um total que, mesmo sendo monetariamente corrigido, não poderá ser majorado.

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Sobre o autor
Marco Aurélio Leite da Silva

analista judiciário da Justiça Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marco Aurélio Leite. Sistema Financeiro da Habitação:: análise e proposta de solução. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 605, 5 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6353. Acesso em: 23 dez. 2024.

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