Introdução
Nos últimos tempos multiplicou-se intensamente o número de ações que discutem contratos avençados sob a égide do Sistema Financeiro da Habitação. Tais ações têm em comum a premissa de que o valor das prestações bem como do saldo devedor vem sendo calculado de forma lesiva aos mutuários.
Não deve passar despercebido que as ações inicialmente aforadas em geral não abordavam a evolução do saldo devedor, certamente porque os contrato mais antigos contavam com cobertura do Fundo de Compensação de Variações Salariais – FCVS. Tais contratos garantiam ao mutuário que o imóvel lhe seria adjudicado com o pagamento da última prestação avençada, independentemente da existência de resíduo. O mutuário contribuía com o FCVS e, assim, ficava livre de qualquer responsabilidade para com o saldo devedor ainda existente depois do pagamento da última prestação. Bastava a esse mutuário, portanto, discutir o valor da prestação, pouco lhe importando o que ocorreria com o saldo devedor.
Depois de algum tempo o FCVS foi extinto para os novos contratos, pelo que o mutuário passou a assumir o resíduo contratual. Desde então as ações aforadas abordam diretamente a evolução do saldo devedor, combatendo-lhe a forma de reajuste, tanto quanto combatem o valor das prestações cobradas.
Basicamente o que se tem é que o critério de reajuste do valor das prestações do financiamento difere do critério de reajuste do saldo devedor, de modo que se estabelece a impossibilidade de amortizar, com os valores que são pagos mês a mês, o próprio saldo devedor. Se, por um lado, é verdadeiro que a Matemática Financeira garante o fechamento das contas em quaisquer sistemas de amortização, é também absolutamente verdadeiro que somente assim se dá desde que tudo transcorra de acordo com o rigor desses sistemas matemáticos, que, ressalte-se, não prevêem um índice para o reajuste das prestações e outro índice para correção do saldo devedor.
Equivale a afirmar que o Sistema Financeiro da Habitação por si só, ainda que consideremos todas as variantes que sucederam-se através do tempo, tem em sua origem a trinca oculta e interna que após algum tempo de operação leva a alavanca inapelavelmente ao cisalhamento e à quebra.
Façamos uma pequena imagem.
Imagine-se um muro a ser edificado, somente podendo-se dar por encerrada a obra quando todos os tijolos tiverem sido usados. A cada mês mais tijolos são trazidos para que o operário trabalhe, sendo que apenas aqui e acolá outro trabalhador chega para ajudar na construção. É claro que enquanto chegarem tijolos novos com aumento não correspondente do número de operários será impossível chegar-se ao fim da obra.
Mas imaginemos ainda um pouco mais.
Além da carga nova de tijolos todo mês, a quantidade de tijolos, em períodos que dependem de outros fatores, como a necessidade do Governo em manter os empregos nas olarias, também aumenta, impondo-se cotas ainda superiores. O número de operários na construção do muro só vez por outra aumenta, e sempre em proporção muito abaixo da taxa de aumento de tijolos que são trazidos.
É óbvio que um sistema como esse levará rapidamente à impossibilidade do nosso imaginário muro ser dado como terminado.
Se é assim, por justiça e mesmo por bom senso, o homem médio certamente perguntaria: mas... quando combinaram fazer o muro, não imaginaram qual seria um tamanho mínimo suficiente? E aí é que está um dos pontos importantíssimos, desnudado por meio de nossa simplória parábola. Ninguém contrata a construção de um muro, nem se deixa contratar, sem que se fixe o quanto deva ser feito para que se repute cumprida a tarefa.
Veja-se que pouco importa que aqui se exemplifique com uma simbólica avença de empreitada. Sim, é claro que o contrato de financiamento imobiliário tem suas características particulares. Todavia, o bom-senso que há de imperar em toda a Ciência Jurídica enraíza em princípios comuns que não podem ser abstraídos quer se cogite de um empréstimo, quer de uma edificação. O fato é que não é juridicamente correto que o agente financeiro pretenda que o mutuário pague, na prática, ao sabor de circunstâncias alheias e sob riscos que superam a possibilidade de análise até mesmo dos mais renomados analistas financeiros. O conceito de "risco", aliás, chega às raias da ironia quando o assunto é financiamento pelo SFH. O risco vem se tornando não conceitualmente um "risco", mas sim uma certeza de distorção.
Cabe bem destacar, por outro lado, que há uma gama bastante grande de ações judiciais em trâmite por todo o Brasil, tendo-se estabelecido um sem-número de entidades de defesa dos mutuários, cada qual com centenas de associados. Contudo, a situação de cada mutuário não pode ser considerada exatamente a mesma, como se estivéssemos diante de uma discussão acerca de um direito constitucional difuso ou coletivo, rigorosamente com os mesmos limites e características para todos. O Sistema Financeiro da Habitação nasceu há algumas décadas e mudou muitíssimo desde então. Cada contrato firmado pode estar ou não sob fortes distorções que reclamam corrigenda conforme a época, a duração, a existência ou não de FCVS e até mesmo consoante a categoria profissional do mutuário (Categorias profissionais fortes e evidentes por si sós deixavam sob clareza solar o exato percentual de reajuste dos salários, enquanto que as milhares de outras categorias profissionais menos representativas da massa de trabalhadores não poucas vezes viam-se brindadas com reajustes "estimados" para o valor das prestações). Enfim, não se cuida de uma questão de direito difuso ou de direito coletivo, mas sim de direito obrigacional que vincula as partes contratantes com as peculiaridades de proteção constitucional que oportunamente serão destacadas.
Valor da Causa
A primeira conseqüência prática para o processo diz respeito ao critério adotado para a fixação do valor da causa.
Ao tempo dos contratos com cobertura do FCVS sedimentou-se o entendimento de que, por se discutir apenas o valor das prestações e não a evolução do saldo devedor, justo seria considerar o critério de uma anuidade, abstraindo-se o valor do contrato. Assim o equivalente a doze prestações compunha o montante a ser considerado para a causa.
Corrente ainda mais liberal passou a considerar que o valor da causa corresponderia à diferença entre o valor cobrado e aquele reputado devido pelo mutuário. Dessarte chegou-se ao critério do montante duodecimal da diferença entre o quanto cobrado e o quanto entendido devido pelo mutuário.
Todavia a mudança nos contratos, ao obrigar os mutuários à discussão do saldo devedor, levou também à alteração do conteúdo econômico da lide. Assim, por se perseguir a revisão do contrato de modo abrangente, tornou-se adequado o critério do valor do próprio contrato, isto é, da dívida. Circunstancialmente, na maioria das vezes o Judiciário prefere continuar com o critério anterior como forma de maior distribuição de justiça social.
A Essência do SFH
A Lei fundamental do Sistema Financeiro da Habitação, conquanto muito tenha-se alterado desde sua edição, continua sendo a Lei 4380/64.
É de sua ementa:
Institui a Correção Monetária nos Contratos Imobiliários de Interesse Social, o Sistema Financeiro Para a Aquisição da Casa Própria, Cria o Banco Nacional de Habitação (BNH), e Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e dá outras Providências.
Já no artigo 5° ficava disposto que (...) os contratos de vendas ou construção de habitações para pagamento a prazo ou de empréstimos para aquisição ou construção de habitações poderão prever o reajustamento das prestações mensais de amortização e juros, com a conseqüente correção do valor monetário da dívida toda vez que o salário mínimo legal for alterado.
Eis aí a semente plantada no solo do Direito, oriunda da política habitacional que o Governo resolvera aplicar para fazer frente ao caos que o País vivia em termos de casa própria para seus cidadãos. A componente social era tão óbvia que não era vinculação primeva da norma de regência senão o próprio salário mínimo. O Legislador cuidou de deixar assente também que o reajustamento basear-se-ia no índice geral de preços mensalmente apurado ou adotado pelo Conselho Nacional de Economia que reflita adequadamente as variações no poder aquisitivo da moeda nacional (art. 5°, § 1°, Lei 4380/64). Ainda outra regra que ficou na mente de todos os que cuidam do assunto é o intervalo estabelecido para a vigência do novo valor da prestação: 60 (sessenta) dias. Eis o texto:
§ 3 - Cada reajustamento entrará em vigor após 60 (sessenta) dias da data de vigência da alteração do salário mínimo que o autorizar e a prestação mensal reajustada vigorar até novo reajustamento. (art. 5° - Lei 4380/64)
Mas nenhuma regra da Lei em comento mais evidencia a essência do Sistema Financeiro da Habitação em sua primeira versão do que o parágrafo 5° do artigo 5°:
§ 5 - Durante a vigência do contrato, a prestação mensal reajustada não poderá exceder, em relação ao salário mínimo em vigor, a percentagem nele estabelecida.
O critério de reajuste das prestações foi sendo aperfeiçoado através do tempo, restando três, por assim dizer mais comuns e que abrangem a grande maioria das avenças hoje existentes.
Basicamente temos o critério da equiparação salarial na modalidade categoria profissional, na modalidade comprometimento de renda e o sistema de amortização crescente.
São o PES/CP, o PES/CR e o SACRE.
Qualquer deles pode ser o do contrato hoje existente, já não mais havendo os que ostentem cláusula de cobertura pelo FCVS.
Outra coisa completamente diferente é o sistema de amortização que tenha sido adotado no contrato. O sistema mais comum é o da chamada "Tabela Price", sistema esse também conhecido como "francês". Mas há muitos outros. Há o sistema americano, mais comum para o mercado internacional, o hamburguês, o sistema de amortizações constantes, conhecido por SAC, e outros.
O que importa considerar é que o critério de reajuste das prestações não vincula obrigatoriamente a este ou àquele sistema de amortização, podendo haver contrato que adote o PES/CP e o sistema SAC, bem como que adote o PES/CP e o sistema francês. Na prática o que se tem é que há muitos contratos PES/CP sob o regime da tabela Price, mas, é bom que se destaque, o fato do contrato reger-se pelo critério PES/CP não o vincula obrigatoriamente ao sistema francês de amortização.
Se o mutuário pretender a modificação das cláusulas estabelecidas no contrato sob a premissa de que todo contrato PES/CP deve obedecer à tabela Price, deverá prevalecer o princípio pacta sunt servanda, já que ao mutuário não advém prejuízo tão-só em razão de ter-se este ou aquele sistema de amortização previsto na avença.
Veja-se que há plena liberdade para o mutuário discutir as cláusulas estabelecidas, abordando a correção ou não dos reajustes realizados, bem como os índices empregados, sem que, no entanto, possa pretender pura e simplesmente alterar a essência do contrato, descaracterizando cláusulas livremente estabelecidas.
É óbvio que se ambas as partes contratantes desejassem tal modificação poderiam simplesmente aditar o contrato originário. Mas unilateralmente, por intervenção do Judiciário, não é possível violentar-se o ente financeiro infligindo-lhe toda sorte de alterações só porque se trata de uma rica empresa pública de natureza bancária, como se tal circunstância pudesse alicerçar uma cerebrina presunção de abuso de poder econômico.
Não.
Bastas vezes o que ocorre é o arrependimento do mutuário que optou por um determinado regime contratual que não atendeu às suas expectativas. Conquanto a componente social da questão habitacional seja evidente, não se pode perder de vista que o ente financeiro somente pode continuar a financiar imóveis se houver cumprimento dos contratos estabelecidos.
A Essência das Distorções
A raiz de toda a problemática situação que se formou está na origem dos recursos dirigidos ao financiamento da habitação. Conquanto não caiba aqui aquilatar do acerto ou desacerto das políticas habitacionais adotadas na condução dos recursos, o fato é que o dinheiro usado para o financiamento da casa própria origina-se dos depósitos da poupança.
Ironicamente, a estabilização da moeda, em se prolongando no tempo, fez com que boa parte dos brasileiros, até então poupadores, simplesmente deixasse de fugir da inflação e se lançasse no mercado consumidor. Equivale a dizer que os depósitos em poupança foram diminuindo ao ponto de provocar a intervenção da equipe econômica do Governo.
Era imperativo atrair novamente o brasileiro à poupança, sob pena de faltarem recursos para, dentre outras coisas, financiar a casa própria.
Ocorre que para atrair depósitos em poupança só mesmo remunerando as aplicações realmente acima da inflação, já que a mera recomposição da moeda deixa de ser suficiente sedução quando há estabilidade econômica. Foi por isso que se adotou a Taxa Referencial – TR para a remuneração da poupança. Índice mais gordo, fez a poupança novamente interessante. Assim o governo contornou a falta de recursos para suas finalidades e, como já bem destacado, para o financiamento imobiliário.
Entretanto, a remuneração da poupança é paga pela entidade bancária, somente podendo existir encontro contábil que garanta o equilíbrio desse sistema se essa remuneração puder ser retirada dos financiamentos realizados com os recursos dessa mesma poupança. Eis aí a cruel verdade econômica que legitima o uso do índice da poupança para o reajuste dos financiamentos sob o regime do Sistema Financeiro da Habitação – SFH.
No concerto da macroeconomia cogitar-se de justiça social quase sempre implica em impasses como esse. A coisa toda se agrava se considerarmos que dificilmente haverá coincidência entre o poupador e o mutuário, de modo que a recuperação pela instituição bancária da remuneração do capital aplicado na poupança termina por recair sobre aquele que, no mais das vezes, de nada dispõe para poupar. Porém, ainda assim é preciso que o Judiciário tenha muita cautela quando o mutuário se apresentar com toda espécie de efetivas verdades não alinhavadas aos limites da lide, pedindo modificações essenciais do financiamento avençado perante a instituição bancária.
Há quem ataque a tabela Price com se fosse ela a grande culpada pelas mazelas da conjuntura habitacional.
Ingênua argumentação.
O sistema francês de amortização é uma ferramenta matemática que engloba a capitalização decrescente de juros e a amortização crescente do saldo devedor. Tem-se duas progressões geométricas, uma de razão direta outra invertida, de modo que os termos equivalentes, ao serem somados, resultem sempre no mesmo valor. Dessa forma a prestação é constante mas progressivamente se vai pagando mais amortização e menos juros.
A tabela Price por si só nada distorce, tampouco constituindo qualquer aberração o fato de haver capitalização de juros. O sistema é matematicamente concebido para zerar precisamente na última prestação.
No sistema de amortizações constantes, o chamado sistema SAC, a concepção matemática é outra. Diferentemente do que se dá com a tabela Price, o valor da amortização é que é constante. Basicamente, o valor da dívida é dividido pelo número de parcelas, resultando no valor constante a ser amortizado todo mês. Do saldo devedor subtrai-se a amortização e aí incide a taxa de juros, somada à amortização para compor o total da prestação. Como todo mês o saldo devedor é amortizado, o valor dos juros também vai progressivamente diminuindo, de modo que a prestação acompanha tal diminuição. Como característica comum de todo sistema e amortização, o saldo devedor reduz-se a zero quando do pagamento da última prestação.
O problema é que em financiamentos longos é preciso incluir uma fórmula de reajuste a fim de manter o equilíbrio econômico original, aquele do momento da assinatura do contrato, uma vez que a taxa de juros é pré-fixada e a inflação, mesmo em patamares menores, a bem da verdade não se dobra a previsões de vários lustros.
No Sistema Financeiro da Habitação tudo isso é verdade e há ainda a pior de todas as circunstâncias.
É que a política habitacional, desde o início do SFH, concebeu os financiamentos em que o mutuário pagaria em proporção direta com sua remuneração. Mas eis que o saldo devedor, dada a origem dos recursos do próprio financiamento, veio a ser reajustado de acordo com o índice da poupança.
Não é preciso analisar-se toda variante de contrato em cada época. Basta considerarmos que é impossível fechar uma conta em que os pagamentos são reajustados aqui e acolá por um índice limitado enquanto que o saldo devedor vai sendo periodicamente acrescido do índice da poupança.
Pouco importa o sistema de amortização adotado no contrato, como destacado.
Não há como zerar-se o financiamento se o reajuste da prestação ocorre ao descompasso do reajuste do saldo devedor. Essa sandice matemática só perdura porque, ao tempo da hiperinflação, no contexto do caos econômico quase equivaliam os reajustes salariais em comparação com a remuneração da poupança. A estabilidade da moeda apenas evidenciou aos brados o descompasso das dimensões e épocas dos reajustes das prestações e do saldo devedor.
Tanto faz considerarmos o critério da categoria profissional ou do comprometimento de renda, a limitação do reajuste das prestações, ao contrário de ser um benefício ao mutuário, termina por mais e mais agravar sua situação no contexto do contrato de financiamento.
Tanto assim que veio a lume o SACRE, que prevê reajustes anuais a fim de recuperar alguma força de amortização às prestações.
A situação, enfim, amolda-se a uma longa seqüência de circunstâncias que levaram o sistema habitacional a um labirinto cuja saída é tudo, menos fácil de se achar.
A Caixa Econômica Federal é a entidade gestora do Sistema Financeiro da Habitação, é certo, mas não foi ela quem criou o sistema, cumprindo-lhe administrá-lo nos limites das leis que cuidam da matéria. O mutuário ingressou no financiamento até por sedução da propaganda oficial e diante da óbvia necessidade de adquirir a moradia de sua família.