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Alice e o Direito sem o império do indivíduo

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O problema de Alice e do direito, finalmente, é um desafio comum: é a possibilidade de poder alterar a ordem das coisas, interferindo em seu próprio destino e, conseqüentemente, na extensão dessa interferência.

INTRODUÇÃO

"A autopoiesis é igualmente condição e resultado da evolução, é assim a forma da evolução da evolução".1

"As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender".2

"O que é direito, sempre e somente pode ser decidido pelo próprio sistema jurídico".3

"Realidad es solamente aquello que es observado". NL.

Há uma transformação em curso na ciência, no pensamento, enfim, em amplos setores da sociedade. As modificações geram em muitos uma mal estar, levando-os a reagir às mudanças que se processam, e a um estranhamento generalizado que busca resistir na defesa do tradicional.

No sistema jurídico não é diferente, já que é perceptível uma certa resistência a tudo aquilo que se apresenta com força de "novo". Alguns dos conceitos que o formam, estão se transformando no ritmo destas modificações, outros não. Mas, não se pode compactuar com esse discurso que resiste as mudanças no sistema jurídico. O direito também está ao abrigo dos efeitos do tempo, isto é, de tudo aquilo que acompanha o movimento histórico e suas alterações.

Muitos são os que não aceitam o fato de que os tradicionais paradigmas estão vivendo uma crise, e essa crise significa a necessidade de se abandonar explicações já consagradas para buscar uma outra forma de compreender o espaço social em todas as suas manifestações, isto é, econômicas, políticas, jurídicas e ideológicas.

Muitos limites precisam ser ampliados para se permitir um novo espaço a uma nova forma de observação, superando as velhas verdades, os velhos e tradicionais papéis.

Como já se afirmou, esse é o caso do direito, ainda preservado por muitos e embolorado numa lógica que remonta ao passado, e que olha, através dos olhos daqueles que não entendem o novo, assustado para um novo século que teima em derrubar o que muitos consideravam como um saber "quase sagrado".

Todavia, aos poucos, esse saber tradicional que ainda impera sobre as universidades, como, igualmente, sobre o sistema jurídico como um todo, está sendo provocado, irritado, desafiado por "novos" significados, novas compreensões que buscam uma nova forma de construir o pensamento, e em especial, a análise jurídica.

O objetivo deste texto é fazer uma aproximação entre a obra "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll e a Teoria dos Sistemas, conforme a análise realizada por Niklas Luhmann, a partir de alguns conceitos que são importantes para se compreender essa teoria e os seus efeitos sobre o direito.

A comparação entre essas duas obras, em um primeiro momento tão desiguais, se justifica na medida em que, como na obra de Carroll, os trabalhos de Luhmann significam uma importante ruptura com aquela forma de pensar o direito como quer a tradição a partir das idéias de Kant, ou mesmo, a partir das de Kelsen.

Da mesma forma que o personagem de Alice que decidiu correr atrás do Coelho Branco e, assim, mergulhou com ele na abertura da grande toca que conduzia ao "País das Maravilhas", rompendo com a linguagem convencional e, dessa maneira, construindo uma crítica aos que se agarravam apenas naquilo que parecia ser a única compreensão do mundo real, Niklas Luhmann, igualmente, nos convida a imergir sobre uma nova linguagem jurídica onde os dogmas são confrontados, e onde a própria compreensão que explica precisa ser reanimada para aceitar o sistema jurídico como diferente, isto é, enquanto um sistema autopoiético.O direito é um discurso muito mais rico, surpreendente, dinâmico e não pode continuar sendo amarrado a uma visão que tem dificuldades em explicar o seu significado. Apresentado a partir de dogmas tradicionais que estão a sofrer com os efeitos da crise da pós-modernidade, o direito como está apresentado, tem muitas dificuldades na sua capacidade em compreender o que não está no direito, bem como legitimar aquilo que está no direito; de ser compreendido e compreender, já que não consegue mais nessa perspectiva tradicional estabelecer uma comunicação sem ruído.

O direito não é um campo estanque, imobilizado pela armadura conceitual que nos acostumamos a vestir sem questionar. O direito é um sistema parcial, vivo, auto-reflexivo e auto-reprodutivo, e se deve entendê-lo sob o prisma de operações que acontecem faticamente, isto é, enquanto comunicações dele com ele mesmo, e com outros sistemas parciais que formam o espaço social, bem como com o ambiente que o envolve.

A teoria dos sistemas supera muitas das dificuldades que ao longo das décadas nos acostumamos a conviver sem enfrentar. Aceitamos algumas máximas que, hodiernamente, não se consegue mais justificar. E o resultado dessa manutenção da tradição é o desenrolar de uma crise de identidade que impera na atual dogmática jurídica.

É essa crise que afasta o discurso jurídico de amplos setores da sociedade, mas, igualmente, é através desse conceito de crise, posto nessa época de pós-modernidade, que está criada a necessidade de se buscar novas formas de compreensão para aquilo que seja o direito e para aquilo que venha a ser o seu papel enquanto direito, bem como enquanto instituto pertencente ao sistema social.

Da mesma forma em Alice, também se construía uma crítica velada ao mundo tradicional e autoritário de Oxford, bem como ao pensamento vitoriano, predominante naquele momento na Inglaterra e que permitiu a uma sociedade acreditar-se superior em relação ao restante do mundo, mas que no ocaso do século XIX foi teimosamente contrariada pelos eventos históricos que aconteciam ao longo do império e que indicavam o início do fim, apesar da alienação por parte dos súditos da coroa britânica.

Alice é o resultado do momento austero, e ao mesmo tempo vitorioso que a sociedade anglo-saxônica britânica experimentava. A tensão entre essa austeridade e a arrogância criava um ambiente sufocante, a tal ponto, que parecia submergir qualquer originalidade destoante do tradicional. Alice é uma linguagem que choca porque não se enquadra no modelo cultural vigente.

O problema de Alice e do direito, finalmente, é um desafio comum: é a possibilidade de poder alterar a ordem das coisas, interferindo em seu próprio destino e, conseqüentemente, na extensão dessa interferência.

Se Alice precisa se perder para, então, se encontrar, a Teoria dos sistemas, por seu turno, precisa libertar o sistema jurídico daquela forma de pensar que faz do domínio do indivíduo a essência de toda compreensão do mundo jurídico. O desafio é mudar esse paradigma, e dessa forma, não deixar o direito ser visto como uma mera observação de um sujeito privilegiado, quase que divinizado em sua capacidade de interferir no mundo do ser, ao mesmo tempo em que delineia o mundo do dever-ser. O sistema jurídico não pode mais continuar a ser tratado como o resultado da percepção e observação dos indivíduos.

O direito é compreendido como um sistema autopoiético, auto-referencial, e tem em si mesmo a capacidade de determinar a sua própria evolução a partir da interação dos elementos que o formam, e que são produzidos e maturados por essa interação circular e recursiva que lhe dá existência. Para que isso possa acontecer, é necessário que o direito enquanto sistema venha a ser compreendido como um sistema fechado, enclausurado, pois somente assim será possível ao próprio sistema do direito definir-se, escolhendo a sua programação, seleção e evolução.4

Não é um mundo de faz de contas como em Alice, que critica uma razão que não traz mais em si a capacidade de justificar os significados, mas no caso de Luhmann uma teoria dos sistemas que sem prescindir do indivíduo5, não aceita ficar condicionado/entregue a esse como única justificativa para a sua razão existencial.

Tal como na história de Alice, aqui não se trata de constatar o fato de que o direito é dependente frente a irrevogabilidade e a inevitabilidade do ambiente, do sujeito, do olhar tradicional, ao contrário, é através dos conceitos de sistema, clausura, redução da complexidade e diferença, para citar apenas alguns, que o direito tem a possibilidade, como pretende Luhmann, de fazer-se independente e livre da interferência dos inputs vindos do ambiente e que sempre o reduziram como uma mera manifestação de um observador-criador.

Luhmann nos conduz, portanto, a uma caminhada onde ao direito se abrem inúmeras possibilidades. O direito é um sistema que por si só ocupa um espaço e onde não quer ver a interferência do sujeito, da sociedade, mas sim, quer ver a interferência do direito mesmo, para que dessa forma o sistema jurídico possa ser revigorado, entendido como um conceito mais elástico na medida em que busca estabelecer uma compreensão com o ambiente sem que isso signifique fazê-lo ser uma mera observação de um indivíduo em particular, ou como afirma Luhmann, ser o resultado de uma observação de 1º grau.6

O que esse autor nos oferece é a possibilidade de se antever o sistema jurídico como auto-reflexivo, atuante, capaz de romper com a visão de um direito fadado a uma existência meramente contemplativa, entregue aos desígnios dos indivíduos, ou, quando muito, justificado pela vontade obscura da visão do direito jusnatural, tão próximo da providência divina.

Como Alice, uma das soluções possíveis é despertar. Despertar para a sua capacidade interna e com condições de se autodeterminar. O mundo de situações extraordinárias prossegue em sua lógica; o direito precisa lutar para se afastar de seu papel tradicionalmente manifesto, isto é, da lógica que o reduz, pois "Agora, os perigos surgem em grande parte a partir do próprio direito. Por isso as trincheiras contra o perigo não podem mais ser erigidas no terreno da oposição entre o legal e o ilegal; elas atravessam o próprio direito como regulamentação e distribuição dos riscos...".7

Destarte, nessa aproximação que se faz ao tema da Teoria dos Sistemas e mantendo a comparação com a obra de Lewis Carroll, vamos analisar o capítulo 2, do livro "El Derecho de La Sociedad", de Luhmann, destacando os conceitos que fundamentam essa verdadeira revolução/transformação do sistema jurídico, e, em assim o fazendo, buscar romper com aquelas certezas históricas da tradicional dogmática jurídica, a qual quer que as cartas do baralho tornem a ser tão somente cartas do baralho, como queriam, igualmente, os muitos críticos de Alice.


I. UMA APROXIMAÇÃO AO CONCEITO DE SISTEMA – O DIREITO SEM O IMPÉRIO DO SUJEITO: O Rei e a Rainha de Copas.

"- Pode me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?

- Isso depende do lugar para onde você deseja ir.

- O lugar para onde desejo ir? Francamente, para mim tanto faz.

- Nesse caso, tanto faz o caminho que você seguirá".8

"Por ‘sistema’ no entendemos nosotros, como lo hacen muchos teóricos Del derecho, un entramado congruente de reglas, sino un entramado de operaciones fácticas que, como operaciones sociales, deben ser comunicaciones, independientemente de lo que estas comunicaciones afirmen respecto al derecho. Esto significa entonces que el punto de partida no lo buscamos en la norma ni en una tipología de los valores, sino en la distinción entre sistema y entorno". NIKLAS LUHMANN

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Alice não tem idéia para onde está indo. Em um primeiro momento, ela segue o coelho branco, preso a um compromisso em que somente ele conhece a sua razão de ser. Depois, abandonada a sua própria sorte num universo que teima em desafiar a sua lógica, se vê obrigada a aceitar o novo, o diferente desse mundo, para finalmente, descobrir que até mesmo ali, há um rei e uma rainha de copas que exercem, de forma caricatural, aquele controle enfadonho da razão autoritária que a fizeram correr atrás de um coelho com um relógio de bolso.

Nesse caminho em que ela mergulha num misto de curiosidade, medo e desejo de compreender o inusitado, Alice conhece vários e estranhos personagens que são caricaturas de personalidades da história da Grã-Bretanha. Por exemplo, quando ela se vê frente ao pote de geléia de laranja, Carroll está falando do símbolo do protestantismo, Guilherme de Orange, tão importante para a ascensão da Inglaterra. Da mesma forma, quando descreve a batalha entre os cavaleiros Branco e Vermelho, está se referindo ao embate famoso de Thomas Huxley e o Bispo Samuel Newman.

O que está posto no fundo em Alice, dessa forma, não é apenas uma inocente história, porque de inocente ela não tem nada. Através de uma linguagem figurada Carroll rompe com muitos valores afirmados de sua sociedade, mas ao mesmo tempo, ao romper com esses valores através do uso dessa linguagem repleta de metáforas, quer que se compreenda que a Inglaterra vista de forma rigorosa e racional precisa perceber que há algo mais além da imagem que se reflete no espelho. A sociedade não é aquela afirmação mecânica de valores já determinados e inexoravelmente inquestionáveis.

Já o sistema, nó górdio do campo teórico de Luhmann, é observado como um conjunto de operações fáticas que, enquanto operações sociais são comunicações, operações comunicativas.

Distintamente do que faz a dogmática jurídica, Luhmann não pretende compreender o sistema do direito a partir de regras ou normas previamente postas que definem o que é direito ou não, mas essa compreensão está determinada por aquilo que se apresenta como a diferenciação entre o sistema do direito e o ambiente.

A diferenciação do sistema é o resultado da sua própria formação enquanto sistema auto-reflexivo e recursivo que no seu próprio interior reconhece e elabora a diferença entre ele e o ambiente.

Reconhecer a diferença como fundamento à auto-reflexão é admitir que é o direito, e não o ambiente que define o que é conforme ao direito/e o que não é conforme ao direito. Quanto mais elaborada for a definição dessa diferenciação com o ambiente, quanto mais auto-reflexivo o sistema se construir, maior será a sua capacidade de observação, isto é, de redução da complexidade, e nesse sentido, maior será a sua capacidade de compreender-se bem como de compreender os outros sistemas parciais e o próprio ambiente.

Se em Alice as descobertas a empurram para buscar a fuga do mundo que encontra, em Luhmann, ao contrário, se segue a diferença como um fio condutor que permite anotar ao direito uma capacidade de auto-organização, de compreender-se a partir de determinados elementos que estabelecem relações, tanto com o próprio sistema, quanto com o ambiente.

Essas relações do sistema são constituídas, principalmente entre si, mas não raro dirigem-se, igualmente, aos outros elementos que estão alocados nos outros sistemas parciais como naqueles presentes no ambiente.

O direito é, assim, um dos sistemas parciais presentes no sistema social global e tem o seu limite estabelecido por esse sistema que o engloba, mas que não o determina/domina. Autopoiético, a Teoria dos sistemas não prescinde do ambiente, ou do indivíduo, mas não admite ser o resultado desses.

Da mesma forma que Carroll enfrenta os julgamentos dos que não entendem as suas metáforas críticas, Luhmann é acusado de afastar do direito e da sociedade a figura do indivíduo, criando uma teoria onde a sociedade está abandonada ou despojada da presença supostamente fundamental desse. Tal crítica não tem nada de verdadeiro.

Luhmann compreende que na diferenciação sistema/ambiente, o sistema, e não o indivíduo, empreende o desafio em seguir com a evolução, isto é, ao diferenciar-se do ambiente e não estando mais determinado por ele o sistema pode decidir aquilo que lhe é ou não importante, e dessa forma passa a ter condições de agir reduzindo a complexidade dos dados/fatos, podendo oferecer uma melhor compreensão dos significados que importam para ele (sistema) e, também, para o ambiente ou mesmo para os outros sistemas parciais. E, em agindo dessa forma comunicar-se com o ambiente, e inclusive com o indivíduo.

Assim, esses elementos que dão sustentação à capacidade auto-referencial do sistema permitem-lhe consolidar o conceito de diferença, pois é nesse conceito que se funda uma das grandes novidades trazidas pela teoria de Luhmann.

A diferença é móvel que permite aos sistemas justificar a sua importante distinção com o ambiente, e é através do reconhecimento dessa distinção que se pode admitir que o sistema é autopoiético.

Compreendido a partir de sua capacidade comunicacional calcada em seus elementos internos, o sistema parcial do direito se auto-organiza, estabelecendo, fundamentalmente, uma operação/comunicação interna entre aquilo que o forma, e sempre que necessário, com aqueles elementos que estão além de seu próprio espaço sistêmico, mas que possibilitam no caso do sistema abrir-se para o ambiente e, dessa maneira, dinamizar o seu próprio movimento. Dinamizar, mas não determinar.

Dessa maneira, o sistema jurídico, a partir dessa capacidade autopoiética, estabelece as condições para se tornar um sistema de grande complexidade, e que "contém em si, as condições de sua própria mobilidade".9

Auto-referente, o sistema escolhe aquilo que é importante para a sua própria evolução, para a sua própria existência, orientando os elementos que lhe pertencem para a execução de todas aquelas operações fáticas.

E, na produção e execução dessas operações fáticas, o sistema encontra a potencialidade para impingir-se em uma própria dinâmica que auto-reprodutiva, permite buscar a evolução nos movimentos de seleção/codificação que faz de tudo aquilo que estabelece alguma comunicação com ele.

Para ser possível preservar a evolução, o sistema parcial do direito ainda que devendo manter-se comumente enclausurado, deve optar abrir-se ao que lhe irrita para depois, voltar a se enclausurar. Na abertura, o sistema pode encontrar elementos que ajudam a manter a dinâmica interna, e codificando-os, processá-los através do movimento de suas operações fáticas.

Diferente de Alice, em que a rainha é uma força de ordem que gera a desordem no país das maravilhas, e que não admite ser contestada, sendo por assim dizer a constatação da presença de certo ruído do discurso racional no universo imaginário de Carroll, a diferença é uma rainha positiva em Luhmann, é origem e fonte para o auto (re) conhecimento do sistema.

Para Alice, a rainha gera o desejo de retornar ao ambiente monótono, mas seguro da razão, e não por acaso ela consegue despertar depois de fugir da voz estridente daquela. Na Teoria dos sistemas, a diferença, ao contrário, desperta uma certeza: não é a norma que funda o direito, dizendo o que é ou não o direito, mas, é a compreensão de que o sistema jurídico por ser diferente do ambiente traz em si mesmo a reflexão para decidir o que é ou não conforme ao direito.

Com o conceito de diferença se pode compreender a necessidade de se reduzir a complexidade da relação entre o sistema/ambiente, que ocorre na medida em que quebra a velha ordem da noção de input/output. O reconhecimento da diferença é reflexão que o sistema faz de si mesmo em contraste com tudo aquilo que não lhe pertence, mas que ao mesmo tempo mantém com ele uma comunicação e não dominação, o que na teoria de Luhmann é reconhecida com o conceito de operação fática.

As operações fáticas são, assim, comunicações do resultado do reconhecimento das diferenças que permitem o entendimento do processo entre o sistema e o ambiente. Da mesma forma elas são o entendimento para os acoplamentos estruturais entre os subsistemas, pois nesses se obedecem as mesmas condições da comunicação entre o ambiente/sistema.

Importa destacar que é através do conceito de operações fáticas que Luhmann pode romper com o império da estrutura, pois como ele afirma, "las estructuras, como enlazamientos altamente selectivos, son necesarias para que se lleven a cabo las operaciones, mas el derecho no adquiere realidad por alguna idealidad estable, sino finalmente por aquellas operaciones que producen y reproducen el sentido especifico del derecho".10

Assim, Luhmann rompe com a tradição estruturalista ao se permitir colocar o conceito de estrutura em um segundo plano, mas não querendo dizer com isso que prescinde desse conceito. Não pretende, diferentemente do que acontece no país das maravilhas visitado por Alice em que o coelho branco está preso ao tempo que escoa, ou que tem na rainha uma voz estridente e que ameaça o próprio mundo que ela conheceu, permitir que a velha dogmática jurídica e estruturalista determine o sistema do direito de forma tão linear, vindo a subverter essa nova linguagem jurídica representada pela Teoria dos sistemas.

Como ele afirma, "Las comunicaciones establecen condiciones de enlace para operaciones subsiguientes y con ello confirman o modifican, a la vez, las estructuras dadas. De esta manera los sistemas autopoiéticos son siempre sistemas históricos, que parten del estado inmediatamente anterior que ellos mismos han creado. Lo que hacen por primera y por última vez. Las comunicaciones jurídicas tienen, siempre, como operaciones del sistema del derecho una doble función: ser factores de producción y ser conservadores de las estructuras".11

Dessa maneira é o reconhecimento da diferença que permite admitir-se a existência de uma relação entre os sistemas e desses com o ambiente.

O abandono do principado do conceito de estrutura se deve ao fato de que esse conceito dá uma idéia de imutabilidade e de estabilidade que reduzem o espaço do sistema jurídico, retirando-lhe a carga potencial de autoreprodução.

Isso ocorre porque com tais conceitos Luhmann pode construir uma certeza de dinâmica e mobilidade ao direito autopoiético, percebendo-o a partir dele mesmo, e de sua capacidade em realizar a autoreflexão desse intenso processo na busca de uma melhor seleção para a sua evolução, bem como evoluindo, permitir ao sistema reduzir tanto a complexidade do seu interior como aquela do ambiente.

Não cabe ao sujeito, então, compreender o direito para que o sistema jurídico alcance a existência. O sistema jurídico se compreende na sua própria imagem, importando mais a sua observação sobre aquele que o observa do que a desse sobre ele. Logo, não é o ambiente que diz o que é o direito, mas é o direito que diz o que é o direito. É o sistema, através dos conceitos de diferença e operação que sem precisar ordenar "cortar as cabeças", realiza a seleção daquilo que lhe é ou não relevante. E, enquanto organismo autoreflexivo o sistema tem capacidade de memória, quer dizer, "o que hoje se perde, amanhã se pode achar".

Em Alice o Rei é condescendente, subjugado pela Rainha autoritária. Em Luhmann as operações fáticas12, tanto quanto o conceito de diferença exerce um papel ativo, estabelecendo o procedimento pelo qual se dá a comunicação entre os sistemas e o ambiente.

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Sobre o autor
Antonio Marcelo Pacheco de Souza

advogado criminalista do escritório Amadeu Weinmann, em Porto Alegre (RS), professor de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional em cursos preparatórios para exames de Ordem e concursos, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciado e bacharel em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Antonio Marcelo Pacheco. Alice e o Direito sem o império do indivíduo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 605, 5 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6360. Acesso em: 29 mar. 2024.

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