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Aplicabilidade da pena de perda do cargo público na Justiça comum ao policial militar:

inconstitucionalidade

06/03/2005 às 00:00
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Irresignado com o descaso dado ao presente conflito, onde o Direito Castrense nem de longe tem pautado as discussões, onde o STF tem decidido num sentido e o STJ, infelizmente, noutro, gerando por conseguinte uma verdadeira insegurança jurídica institucionalizada sobre doutrinadores castrenses e cerca de 250 mil policiais militares em todo Brasil, é que, ousamos lançar sobre o tema, em curto artigo, data vênia aos entendimentos adversos, o presente instrumento prefacial e pacificador. Contudo, seria mera quimera, esgotar em tão poucas linhas o presente conflito, vez que este comporta diversos outros comentários e, sobretudo um apurado debate de âmbito nacional entre magistrados, promotores, doutrinadores e assessores de unidades militares em todo Brasil.

Paira o conflito em prever as leis ordinárias que cuidam dos delitos de abuso de autoridade e tortura, a sanção penal de perda do cargo público na justiça comum ao policial militar infrator, quando na verdade, nos termos da Magna Carta vigente, possui este um procedimento específico perante o "Tribunal de Justiça competente" em seu Estado para decidir sobre a perda de seu posto, patente ou graduação. No caso de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça Militar, nos demais Estados da federação o próprio Tribunal de Justiça seria o competente.

No que tange à topologia legal, reside o conflito em ter sido recepcionado ou não, o dispositivo infraconstitucional do Art. 6º, § 3º, alínea "c" (1ª parte– perda do cargo) da Lei n.º 4.898/65 (Lei do Abuso de Autoridade) e sobre ser constitucional ou não, a inteligência do Art.1º, § 5º (1ª parte - perda do cargo) da Lei n.º 9.455/97 (Lei de Tortura), frente à norma constitucional esculpida no Art. 125, § 4º (2ª parte) da CF/88, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que determina a competência da Justiça Militar para a decretação da perda do posto, patente ou graduação do policial militar, mediante um procedimento específico e sui generes.

Em síntese, pode o juiz singular aplicar a pena de perda do cargo público na justiça comum ao policial militar infrator das leis de abuso de autoridade e tortura, já que, nos termos da redação final do parágrafo 4º, do Art. 125 da CF/88, "compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei, cabendo ao Tribunal Competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças ?!"

Exemplificando, o policial militar em rádio patrulhamento noturno, sob condições pouco amistosas, que usando de força física para dominar indivíduo foragido, de corpo avantajado, vindo a causar-lhe em decorrência da quebra de resistência lesões corporais de natureza grave, pode vir a ter a perda do cargo público decretada na justiça comum (que desconhece seu modus operandi), via procedimento sumaríssimo, por infringência ao Art. 3º, alínea "i" (atentado à incolumidade física do indivíduo) da Lei n.º 4.898/65 ou Art. 1º, Inc. I (constranger alguém com emprego de violência, causando-lhe sofrimento físico) da Lei n.º 9.455/97? Imaginem a insegurança que essa possibilidade (para não citar inúmeros exemplos) causa nos militares quando do policiamento preventivo e ostensivo ?!

O problema não é tão simples como aparenta à primeira vista e possui diversos reflexos na sociedade como um todo, devendo doravante ser tratado não só como antinomia normativa, mas também como uma questão urgente de política criminal, isto porque, policiamento acuado e pusilânime é sinônimo de criminalidade reinante e difundida.

Embora não haja menção expressa, acreditamos que as soluções e fundamentos aqui explicitados para o tema, servem também de base para o estudo da pena de perda do cargo público na justiça comum ao militar estadual, aplicada como sucedâneo do Art. 92, inc. I (1ªParte) do CPB, ou seja, como efeito imediato da condenação penal.

A maioria dos nossos tribunais, dentre eles o STJ, TJSP e o TJMG, e ainda, a grande parte dos magistrados e promotores de todo Brasil, quando se deparam com o presente conflito, adotam o que chamamos de "corrente da unicidade", fazendo uma interpretação textual declarativa, restritiva e única do § 4º, do Art. 125 da CF/88, que tem como resultado final o condicionamento, incontinente, da 2ª parte do referido parágrafo a sua 1ª parte. Isso porque, segundo essa corrente, o conteúdo do parágrafo 4º, embora expresso em texto constitucional é de Direito Penal e como tal deve ser interpretado.

Fixada essa idéia, malfadadamente, concluem o problema: "Ora, é perfeitamente aplicável a pena de perda do cargo público na justiça comum ao policial militar, em caso de abuso de autoridade ou tortura, visto que, a uma, não são estes crimes militares, ex vi do art. 9º do CPM, a duas, que somente se submeterá o policial militar a julgamento no Tribunal de Justiça Militar para decretar a perda do posto, patente ou graduação, quando crime militar for, conforme dispõem o próprio art. 125, § 4º, da CF/88, na sua inteireza" [1].

Não fosse o caráter autônomo do Direito Penal Militar que muitos insistem em desprezar, e a peculiar hermenêutica que envolve a interpretação das normas constitucionais, até que se poderia prosperar a corrente unitarista devido a sua razoabilidade lógico-dedutiva, contudo, ao nosso parco entender, a realidade técnico-jurídica do tema é deveras outra. Senão vejamos.

Preliminarmente, urge salientar que certamente não são os crimes de abuso de autoridade e tortura, ainda que praticados em serviço, crimes de natureza militar, pois, conforme entendimento majoritário, crime militar é somente aquele defino em lei militar como tal, seja ele propriamente ou impropriamente militar, conforme dispõe a inteligência do Art. 9º do CPM [2].

Contudo, não se trata de discutir a pena de perda do cargo do policial militar, cuidando da natureza dos crimes abuso de autoridade e tortura. Esse é o maior erro que magistrados, promotores e advogados têm cometido. Equívoco manifesto que este estudo almeja reparar. Pois, em curtas palavras, não se discute aqui se a justiça comum é a competente para conhecer dos delitos de abuso de autoridade ou de tortura praticados por militares estaduais, mas se ela é a competente para aplicar a pena de perda do cargo público a estes infratores. São situações distintas e que foram albergadas de forma diferenciada pelo legislador. Daí se entende que não estamos aqui defendendo privilégios aos militares estaduais. Que sejam aplicadas com todo rigor as penas cabíveis ao policial militar infrator, mas que o seja então no juízo competente, em atenção ao consagrado due of process of law.

E mais, ao interpretar o § 4º, do art.125, da CF/88 de forma declarativa e restritiva, como manda a boa hermenêutica da "norma penal", restringindo o procedimento específico para a perda do cargo público no Tribunal de Justiça Militar, somente para os crimes militares definidos em lei, ao argumento, repita-se, que se trata de norma de conteúdo penal, esquece a corrente unitarista, como bem salientou o catedrático José Afonso da Silva, "Que todas as normas que integram a Constituição Federal, pouco importando o seu conteúdo específico, são normas constitucionais e como tal devem ser interpretadas" [3].

Assim, afastada a corrente unitarista, porque equivocada quanto à hermenêutica aplicada aos institutos, cumpre-nos ressaltar como deve ser interpretado o parágrafo 4º, e, por conseguinte, como se resolve o presente conflito em debate. Neste diapasão, não é necessário um grande esforço mental, sabendo-se pela boa técnica jurídica que a norma constitucional é interpretada de forma sistêmica e extensiva.

Pela interpretação sistêmica temos que, o valor axiológico expresso no multicitado parágrafo, está perfeitamente consoante com todo o acervo constitucional e principalmente com a vontade finalista do constituinte originário, que foi submeter os militares estaduais a um procedimento análogo ao dos oficias das Forças Armadas quanto à perda do cargo público, conforme se depreende do Art.142, § 3º, incisos VI e VII da CF/88, in verbis:

"VI - o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra; VII - o oficial condenado na justiça comum ou militar à pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior." (Grifamos)

Veja claramente que, da redação dos incisos não consta "que somente se submeterá o oficial a julgamento na justiça militar, para perda de seu posto ou patente, se crime militar for", aliás, os incisos nem menção fazem a crime militar. Assim, não há que se interpretar o Art. 125, § 4º (in fine) de forma diferenciada do art. 142, § 3º, incisos VI e VII da CF/88, condicionando sua 2ª parte somente aos crimes militares como anseia a corrente unitária, sob pena de se ferir de morte os princípios da legalidade e da isonomia consagrados na Magna Carta. Afinal, porque se teria um tratamento para os militares federais e outro para os militares estaduais? Seriam aqueles melhores que estes? Certamente que não houve este espírito discriminatório no Constituinte de 1988, que olvidou igualar uns e outros, embora se esquecera, não se sabe porque, dos praças (sargento, cabo e soldado) das forças armadas quando da redação do art. 142, da CF/88, ao contrário do que fez com os praças da milícia estadual no art.125, da CF/88.

E antes que se levantem alguns sob falsa interpretação declarativa, dizendo que o Art. 142, § 3º, incisos VI e VII da CF/88, só se aplica aos oficiais das Forças Armadas, transcrevemos o Art. 42, § 1º, da CF/88, que não faz diferenciação entre oficias e praças das policias militares: "Aplicam-se aos Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vir a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º, do art. 40, § 9º, e do art. 142, §§ 2º e 3º (...)." (grifamos)

Analisemos tudo isso agora à luz da interpretação extensiva. Pois é através desta hermenêutica que se busca o máximo de sentido axiológico e eficácia normativa que se pode obter de um comando constitucional. Sob esta ótica interpretativa, cada norma constitucional é classificada segundo um nível de eficácia e aplicabilidade que pode produzir desde a sua entrada em vigor.

Nesse sentido, quem bem classificou as normas constitucionais foi o festejado José Afonso da Silva, que as ordenou quanto a sua eficácia em plena, contida e limitada [4]. Atualmente, seguindo esta classificação, doutrinadores da lavra de Jorge Alberto Romero, ministro aposentado do STM, e o próprio STF, têm entendido que a 2ª parte do parágrafo 4º, do Art. 125 da CF/88, é de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Vejamos:

STF: "EMENTA: Militar: Praças da Polícia Militar Estadual: Perda da Graduação: Exigência constitucional de processo específico (CF 88, Art. 125, § 4º, parte final) de eficácia imediata: O artigo 125, § 4º, in fine, da Constituição, subordina a perda de graduação dos praças das Polícias Militares, à decisão do Tribunal competente, mediante procedimento específico, não subsistindo, em conseqüência, em relação aos referidos graduados o artigo 102 do Código Penal Militar, que a impunha como pena acessória da condenação criminal a prisão superior a dois anos. A nova garantia constitucional dos graduados das Polícias Militares é de eficácia plena e imediata." [5] (Grifamos)

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Isso implica dizer, ainda citando o mestre José Afonso da Silva, que se a "norma é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, desde a entrada em vigor da Constituição, produz, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais relativamente aos interesses, comportamentos e situações que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular".

Conclui-se então que, se a segunda parte do multicitado parágrafo 4º, do Art.125 da CF/88, é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, como bem decidiu o STF, não cabe dizer que somente se aplica o "procedimento específico perante o Tribunal Militar Estadual, para decretar a perda do cargo público do policial militar, nos crimes militares definidos em lei (como diz a primeira parte do § 4º), mas sim, em todo e qualquer tipo de infração penal, ainda que, julgada na justiça comum". Do contrário, como visto, estaríamos mediante uma interpretação declarativa e restritiva, condicionando, incontinente, o âmbito de eficácia e aplicabilidade de uma norma constitucional que em essência já nasceu pronta para produzir todos os seus efeitos. Ademais, em que pese os argumentos contrários, onde não restringiu o legislador não cabe de modo algum ao interprete fazê-lo.

Posto isto, resta afirmar, sem prejuízo de embargos declaratórios, que não fora recepcionado a pena de perda do cargo público prevista na Lei nº 4.898/65, bem como seja inconstitucional a mesma previsão constante da Lei nº 9.455/97, ambas, frise-se, quando aplicadas no âmbito da justiça comum ao agente público militar estadual. Do contrário, estaremos admitindo que leis infraconstitucionais violem competência funcional e absoluta regulada pela Magna Carta.

Ressalte-se finalmente, que andou bem o constituinte ao estipular um tratamento diferenciado quanto à perda do cargo público do militar estadual, pois nenhuma outra autoridade está tão susceptível ao liame subjetivo existente entre a conduta legal e arbitrária, do que o chamado "Braço Forte" do Estado, e em assim sendo, possuindo estes agentes públicos especiais deveres para com o Estado, é mister que leis especiais também os reja, puna e resguarde diferentemente, pois não é razoável que justo o homem que tem o dever de proteger e socorrer a sociedade, estando diuturnamente em situação de risco pessoal só agindo em situações críticas e em local de conflito, esteja excluído dos benefícios do Estado, em razão de uma interpretação que lhe é negativa. Seria o escravo que planta, colhe e não pode servir-se.


Notas

1 RT 589/443, RTJ 109/79, RT 544/354, 548/341.

2 Decreto–Lei n.º 1001 de 21. 10. 1969 – Código Penal Militar.

3 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 39.

4 SILVA, José Afonso da. Op. cit. p. 101.

5 STF-RE nº 121.533-MG, in RTJ 133/1342-7, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Nesse sentido ainda: HC n.º 72.755-9, Rel. Min. Néri da Silveira

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Sobre o autor
Gylliard Matos Fantecelle

Doutorando pela Unisinos/Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mestrado pela Unida/Universidade Federal do Espírito Santo. Especialista em Ciências Criminais pelo LFG/UNAMA. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela FADIVALE. Professor titular em Direito Penal e Processual Penal nas Faculdades de Direito da DOCTUM. Professor nos cursos de pós-graduação da FADIVALE. Coordenador do Najur-Núcleo Avançado de Estudos Jurídicos. Ex. Assessor do TJMG. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FANTECELLE, Gylliard Matos. Aplicabilidade da pena de perda do cargo público na Justiça comum ao policial militar:: inconstitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 606, 6 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6362. Acesso em: 27 dez. 2024.

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