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Do princípio da identidade física do juiz no processo penal com o advento do novo Código de Processo Civil: uma interpretação à brasileira

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02/02/2018 às 10:00
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4. Do princípio da identidade física do juiz no processo penal com o advento do novo código de processo civil: interpretação “à brasileira” 

Complicada a questão a ser enfrentada no presente tópico, haja vista as (delicadas) consequências jurídicas que pode causar no campo prático. Seu enfrentamento, no entanto, afigura-se cogente. Pois bem. Como anunciado alhures, quando se implementou o princípio da identidade física do juiz no campo penal, nos idos de 2008, optou-se por fazê-lo sem qualquer exceção, de modo que, tal como posto, pelo menos a priori, indicava ser uma regra de caráter absoluto, sem qualquer mitigação.

Conquanto parte da doutrina tivesse sustentado o caráter absoluto da norma em questão, logo a jurisprudência optou, por analogia, pela mitigação da regra, fazendo alusão às exceções contidas no artigo 132, do Código de Processo Civil, o qual passou a ser, quando ainda em vigor o antigo diploma processual civil, a fundamentação a excepcionar a regra também no campo penal.

Não se pode perder de perspectiva, porém, com estribo nas lições de Elpídio Donizetti, que o Novo Código de Processo Civil, ao entrar em vigor, “sequer menciona a necessidade de ser proferida a sentença pelo juiz que colheu a prova”.[18]Vale dizer, na vigência do novel diploma, deixa de haver a regra da identidade física do juiz, bem como desaparecem, por via de consequência, as exceções que eram utilizadas, por analogia, no processo penal.

Diante desse cenário, parte da doutrina passou a defender que, mesmo revogado, o artigo 132, do antigo Código de Processo Civil, continuaria a viger, numa espécie de “ultratividade” ad aeternum. Nesse panorama, ao se debruçar sobre o tema, antes mesmo da efetiva revogação do Código de Processo Civil de 1973, Renato Brasileiro, antecipando-se às discussões que inexoravelmente se apresentariam, assim se manifestou:

Diante da iminente revogação do art. 132 do antigo Código de Processo Civil, e o silêncio do novo CPC acerca das hipóteses que autorizam a mitigação ao princípio da identidade física do juiz, certamente surgirá o seguinte questionamento: será que as ressalvas à aplicação do referido princípio dele constantes – convocação, licença, afastamento por qualquer motivo, promoção ou aposentadoria –, continuam válidas para o processo penal (CPP, art. 399, § 2º)? A nosso juízo, a resposta é afirmativa. A despeito de o art. 132 do CPC estar na iminência de ser revogado pelo novo CPC, que não contempla o princípio da identidade física do juiz, é evidente que, em qualquer ressalva outrora listada pelo referido dispositivo, cessa a competência do magistrado instrutor para o julgamento do feito.[19]-[20]

Para o respeitável autor – com o qual se concorda em diversos posicionamentos –, não há óbice na utilização, como fundamento para mitigação da identidade física do juiz no processo penal, do revogado artigo 132, do Código de Processo Civil. Contudo, nesse aspecto, com ele não se pode concordar.

Ora, basta ver que a prolação de sentença por juiz diverso do que conduziu o feito, se não fundamentada nas hipóteses – ao menos por ora, não mais utilizáveis![21] – do artigo 132, do Código de Processo Civil, conduz à nulidade absoluta do decisum. Nesse sentido, aliás, veja-se precedente do Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS – TRÁFICO DE DROGAS – PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ – JUIZ SENTENCIANTE DIVERSO DO RESPONSÁVEL PELA CONDUÇÃO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL – AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO DAS HIPÓTESES PREVISTAS NO ART. 132 DO CPC – NULIDADE CONFIGURADA – LIBERDADE PROVISÓRIA – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA – CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO

1- Com o advento da Lei nº 11.719/2008, o magistrado que presidir a instrução criminal deverá sentenciar o feito, ou seja, o juiz que colher a prova fica vinculado ao julgamento da causa.

2- Esta Corte Superior de Justiça tem se orientado no sentido de que deve ser admitida a mitigação do princípio da identidade física do juiz nos casos de convocação, licença, promoção, aposentadoria ou afastamento por qualquer motivo que impeça o juiz que presidiu a instrução de sentenciar o feito, por aplicação analógica da regra contida no artigo 132 do Código de Processo Civil.

3- Verificado que foi prolatada sentença penal condenatória por juiz diverso do que presidiu toda a instrução e que não está configurada nenhuma das hipóteses previstas no artigo 132 do Código de Processo Civil, impõe-se a concessão da ordem para que seja anulada a sentença, determinando que outra seja proferida, dessa vez pelo Juiz titular da Vara ou por seu sucessor, conforme o caso.

[...]

7- Ordem concedida para anular o Processo nº 130/10, da 7ª Vara Criminal de São Paulo, desde a sentença, determinando que outra seja proferida pelo Juiz que presidiu a audiência de instrução e julgamento, ressalvada a ocorrência das hipóteses do artigo 132 do Código de Processo Civil e com observância da vedação à reformatio in pejus indireta, bem como para conceder a liberdade provisória ao paciente, sem prejuízo da aplicação das medidas introduzidas pela Lei 12.403/2011 ou da decretação da prisão preventiva, se sobrevierem fatos novos que justifiquem a adoção dessas medidas.

(STJ – HC 185.859 – (2010/0174860-5) – 6ª T. – Rel. Min. Sebastião Reis Júnior – DJe 19/10/2011 – p. 1016)

Nesse diapasão, tendo em vista que, para se excepcionar a identidade física do juiz (a qual tem previsão no atual Código de Processo Penal e se repete no Projeto do Novo Código de Processo Penal[22]), fazia-se remissão ao Código de Processo Civil, de 1973, que não mais produz efeitos, pergunta-se: far-se-á, doravante, analogia a um dispositivo totalmente alheio à sistemática penal e que nem mais existência possui?

É essa a resposta (política) a ser dada pelos tribunais brasileiros, apenas por ser a saída mais fácil e viável?

Ao menos juridicamente, parece não ser essa a opção mais adequada. Isso porque a regra da identidade física do juiz existe no processo penal, sem qualquer exceção, aliás. Dessa forma, não se pode buscar emprestada a (imprestável) fundamentação – conveniente – de um código inexistente, ainda mais quando o legislador criminal demonstra de forma clara e inequívoca a intenção de manter, mesmo no Novo Código de Processo Penal, o princípio em questão.

Nesse panorama, ao menos do ponto de vista jurídico, a partir da revogação do Código de Processo Civil, de 1973, e antes da entrada em vigor do Novo Código de Processo Penal ou de qualquer outra legislação que venha suprir essa “lacuna”, o princípio da identidade física do juiz deve(ria) valer em caráter absoluto, sem qualquer exceção, havendo a necessidade de declarar-se nula toda e qualquer decisão que o contrariar.[23]

Não obstante, como sói ocorrer em território brasileiro, quando um “erro” legislativo onera o Estado e a Administração Pública, relativizam-se os direitos daquele que ocupa o polo passivo da demanda penal, até mesmo porque uma “garantia” do acusado não pode ser, jamais, um “empecilho ou estorvo” à realização da “justiça”.

Destarte, à guisa de conclusão, na linha do que já vaticinava parte da doutrina, nota-se que os tribunais pátrios, valendo-se de uma interpretação “à brasileira”, têm excepcionado a princípio em análise, dando “vigência” ao (revogado e inexistente juridicamente) artigo 132, do vetusto Código de Processo Civil, de 1973. A título de ilustração, leia-se a decisão infratranscrita, prolatada após o advento do Novo Código de Processo Civil: 

RECURSO EM HABEAS CORPUS. ARTS. 33, 35, 40, I, TODOS DA LEI Nº 11.343/06. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. ART. 399, § 2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PLEITO DE ANULAÇÃO DE SENTENÇA PARA QUE OUTRA SEJA PROFERIDA. AUSÊNCIA DE IRREGULARIDADE. RECURSO IMPROVIDO

1. Não examinada pelo Tribunal de origem questão relativa à alegada incompetência do juízo que processou e sentenciou o feito, afasta-se a análise por esta Corte, sob pena de indevida supressão de instância.

2. Constatado que a sentença não foi proferida pela juíza que presidiu a instrução do feito, uma vez que se encontrava de férias, depois afastada para elaboração e defesa de trabalho de conclusão de doutorado, e novamente de férias, não se verifica qualquer irregularidade decorrente da sentença prolatada pelo magistrado que legalmente o substituiu. Precedentes.

3. Recurso em habeas corpus improvido. (STJ, ¨6T -  RHC 64655 RS, Rel. Min Nefi Cordeiro, DJE 07.04.2016).

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Ante o exposto, conclui-se que o tema, como de costume, embora apresente problemas jurídicos, acaba por receber uma resposta política. Se acertada ou não a posição, ao que tudo indica, com ou sem previsão legal própria, continuam/continuarão a valer, no campo do processo penal, pelo menos por ora, as exceções do multicidado (e abolido!) artigo 132, do antigo Código de Processo Civil, “revogado, mas em vigor”. É a conhecida hermenêutica “à brasileira”, mais uma vez, a “corrigir” os “erros” do legislador, sempre em prejuízo do réu, é claro!


CONCLUSÃO

À vista de tudo quanto exposto, verifica-se o princípio da identidade física do juiz, tanto no campo penal como cível, sempre buscou potencializar, ao máximo possível, os princípios do contraditório e da ampla defesa, partindo da (correta) premissa de que o juiz que instrui feito e colhe, pessoalmente, as provas reúne melhores condições para entregar um provimento jurisdicional com mais acerto.

No processo civil, notou-se que referido princípio foi instituído bem antes do processo penal, o qual, por sua vez, depois dos reclames da doutrina pátria, passou a contar com a garantia em questão somente nos idos de 2008, quando da edição da Lei 11.719.

Com efeito, com a implementação do princípio da identidade física do juiz no processo penal, constatou-se que o legislador se “olvidou”[24] de positivar as exceções à regra em questão, o que acabou por impulsionar a doutrina e jurisprudência pátrias a tomarem “emprestadas” do antigo Código de Processo Civil, por analogia, as hipóteses excepionadoras da vinculação do juiz que preside a instrução à prolação da sentença.

Nesse cenário, como visto, a matéria passou a ser regulada por analogia, num verdadeiro diálogo entre o Código de Processo Penal (art. 399, §2º) e o Código de Processo Civil (art. 132). Até aí, então, nada de absurdo havia.

Contudo, percebeu-se que, com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, o artigo 132 foi abolido, sem que tivesse havido a repetição de norma semelhante em nenhum outro dispositivo, o que indicou, à evidência, que o legislador havia extirpado do campo processual cível a regra outrora festejada, a qual vinculava o magistrado que encerrava a instrução ao julgamento da lide.

Por conseguinte, restou evidenciado que a abolição do princípio entelado projetou seus efeitos de forma imediata no processo penal, porquanto o rol de exceções à identidade física do juiz encontrava referencial direto no artigo 132, do, hoje revogado, Código de Processo Civil.

Nessa contextura, verificou-se que não mais havia necessidade de se observar a regra da identidade física do juiz no juízo cível, o que não ocorria, todavia, no processo penal, na medida em que, neste último, permaneceu intacto referido postulado, de modo que a problemática antes resolvida por meio da analogia voltou à tona.

Diante do (grave) problema gerado, quem sabe, por um vacilo legislativo, a jurisprudência e parte da doutrina brasileiras entenderam, por meio de uma posição política – com a qual, ao menos juridicamente, não se pode concordar –, que continua a valer, mesmo após a revogação do antigo Código de Processo Civil, as exceções à identidade física do juiz, previstas no artigo 132, do antigo códex.    

O que se nota, em conclusão, é que se buscou por meio desse entendimento evitar a anulação de decisões proferidas por juízes que não instruíram o feito, já que, agora, à vista da ausência de exceção nesse tocante, a regra da vinculação passa a ter caráter absoluto, pelo menos enquanto não entrar em vigor o Novo Código de Processo Penal – que a prevê – ou outra lei que sane a problemática.

A resposta, como asseverado alhures, fruto de uma interpretação “à brasileira”, é mais política do que jurídica e vem sanar (mais) um erro do legislador, o fazendo, como sempre, em desfavor do réu.

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Sobre o autor
Filipe Maia Broeto Nunes

Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Mestre em Direito Penal (sobresaliente) com dupla titulação pela Escuela de Postgrado de Ciencias del Derecho/ESP e pela Universidad Católica de Cuyo – DQ/ARG. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Internacional de La Rioja – UNIR/ESP e em Direito Penal Econômico e da Empresa pela pela Faculdade de Direito da Universidade Carlos III de Madrid - UC3M/ESP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e também Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM, em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional – IDEPEI e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association). Foi aluno do curso “crime doesn't pay: blanqueo, enriquecimiento ilícito y decomiso”, da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca – USAL/ ESP, e do Módulo Internacional de "Temas Avançados de Direito Público e Privado", da Universidade de Santiago de Compostela USC/ESP. Membro da Câmara de Desagravo do Tribunal de Defesa das Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico - IBDPE; do Instituto de Ciências Penais - ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT; Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses - IAMAT e Diretor da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Filipe Maia Broeto. Do princípio da identidade física do juiz no processo penal com o advento do novo Código de Processo Civil: uma interpretação à brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5329, 2 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63654. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

O presente artigo foi elaborado e apresentado à Universidade Cândido Mendes, como requisito intermediário para aprovação no curso de pós-graduação em Ciências Penais.

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