Capa da publicação ICMS em transporte terrestre de passageiros: inconstitucionalidade
Capa: Marcos Bezerra / FolhaPress
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Inconstitucionalidade da cobrança de ICMS em transporte terrestre de passageiros

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24/01/2018 às 13:18
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6. Dois pesos e duas medidas?

Ocorreu algo inaceitável no julgamento da ADI 2.669: o completo menosprezo à livre concorrência.

E mais: usaram dois pesos e duas medidas no exame da matéria.

Para o transporte aéreo, adotaram um entendimento, e, para o transporte terrestre outro.

Nada se falou, nas manifestações dos votos vencedores, sobre os primados da capacidade contributiva e, sobretudo, da seletividade.

Também há que se observar a inexistência de qualquer parâmetro lógico para, na ADI 1.600-8/DF, invalidar-se a cobrança do ICMS, e, na ADI 2.669, admitir a possibilidade!

Não iremos fazer aqui uma dissertação sobre o vetor da isonomia e o seu cabal menosprezo no caso vertente.

Apenas queremos adentrar no âmago da questão: o uso equivocado, pelo Supremo Tribunal Federal, do princípio da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto.

Equivocado, porque criou-se uma situação, no mínimo, constrangedora: a existência de duas ações diretas de inconstitucionalidade, apontando como inconstitucionais preceitos idênticos da Lei Complementar nº 87, de 13-9-1996, para se chegar a resultados diversos.

 Criou-se uma situação teratológica, porque a Corte partiu da premissa de que o transporte aéreo não se compara ao transporte terrestre de passageiros.

Resultado: na ADI 1.600-8/DF declararam a inconstitucionalidade sem redução do texto, de modo a invalidar os preceitos da referida Lei Complementar nº 87, apenas, para o transporte aéreo. 

O princípio da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto é a técnica decisória que possibilita à Corte Suprema excluir determinadas hipóteses de aplicação de um programa normativo.

Sem empreender qualquer alteração gramatical dos textos legais, permite que o Supremo aplique uma lei, num determinado sentido, a fim de preservar a sua constitucionalidade.

Tanto a Lei nº 9.868/1999 (art. 28, parágrafo único) como a Lei nº 9.882/1999 (art. 10) estipulam a competência para a Corte Excelsa declarar, parcialmente, a inconstitucionalidade sem redução do texto.

Ao afastar, parcialmente, a aplicação da norma, o instituto busca a clareza dos textos normativos e a existência de decisões judiciais abalizadas e coerentes, algo que não ocorreu no caso em comento.

A declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto apresenta eficácia erga omnes (contra todos) e efeito vinculante, relativamente aos órgãos do Poder Judiciário, da Administração Pública federal, estadual e municipal (Lei nº 9.868/1999, art. 28, parágrafo único).

No Brasil, foi Lúcio Bittencourt quem primeiro vislumbrou, em 1949, a importância da declaração parcial sem redução do texto. Ensinou que uma lei pode ser válida quanto a certo número de casos ou pessoas e inválida em relação a outros. Concluiu, enfim, que algumas leis, redigidas em linguagem ampla, eram inaplicáveis a fatos pretéritos, embora se aplicassem a situações futuras[7].

O Supremo Tribunal Federal vem utilizando a categoria desde a década de sessenta.

Em tema de leis tributárias, que instituíam tributos e começavam a cobrá-los no mesmo exercício financeiro, a Corte aplicou o instituto. Argumentou que essas leis eram compatíveis com o Texto Magno, em todo o conteúdo, exceto pela inobservância do princípio da anterioridade. Decidiu, então, mantê-las no ordenamento, autorizando que fossem aplicadas, sem qualquer mácula, no exercício financeiro seguinte[8].

Noutra feita, a Corte, examinando a aplicação de leis relativas à correção monetária, entendeu que elas não poderiam desrespeitar situações consolidadas. Nesse ínterim, resolveu apenas declarar a inconstitucionalidade das hipóteses contrárias à Carta Magna, sem proceder, contudo, a alterações em seus programas normativos[9].

Assim, em vez de cassar a lei, a Corte prefere aplicá-la sem nenhuma mácula, preservando-a para uso futuro[10].

Acontece, porém, que a situação em estudo possui especificidades.

Em primeiro lugar, a legislação complementar não sopesou o caráter específico do transporte terrestre e interestadual de passageiros.

Não determinou o marco, no qual se dá o ponto de partida, onde se inicia a prestação do serviço de se levar pessoas nos cantos e recantos do País.

Numa palavra, a Lei Complementar nº 87 não estipulou o marco, o ponto de partida mesmo, do qual deflui a prestação dos serviços de transporte terrestre de passageiros.

Esse é o contexto em que a Corte Suprema julgou procedente, em parte, a ADI 1.600-8/DF, declarando a inconstitucionalidade, sem redução do texto, de preceptivos da Lei Complementar nº 87, de sorte a não se cobrar ICMS do segmento aéreo intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e de cargas.

Não levou em conta, porém, que todos esses preceitos declarados inconstitucionais em nada regulamentaram as nuances da malha terrestre.

Quer dizer, o uso, pelo Supremo Tribunal, do princípio da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto criou um quadro anômalo para as empresas de transporte terrestre, porque baseou-se em dois pesos e duas medidas.

O fato é que o mau uso, no caso vertente, do princípio da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto culminou no cancro da interpretação constitucional de preceitos inconstitucionais.

Muitas vezes, os atos dos Poderes Públicos e dos particulares estão de desacordo com a constituição.

Mesmo assim, o intérprete confere às normas constitucionais um entendimento que valida atos contrários à Lex Mater.

Estamos diante da exegese constitucional de preceitos inconstitucionais.

Ou seja, a lei ou ato normativo estão em absoluta contrariedade com a constituição, e, nada obstante, o exegeta confere-lhe um significado que a torna constitucional.

No Brasil, é corriqueira a praxe de se interpretar de modo constitucional as leis e atos normativos inconstitucionais.

Embora muitas leis estejam em absoluto antagonismo com o Texto de 1988, recebem uma exegese distorcida, equivocada, ensejando uma interpretação que lhes convalida.

Essas leis passam a ser cumpridas mediante a suposição de que são constitucionais, quando, verdadeiramente, não o são.

As exegeses constitucionais de preceitos inconstitucionais fulminam a vida das constituições.

Os efeitos provocados por essas deformações variam em grau e em profundidade e podem vulnerar a Carta Suprema, em maior ou menor extensão.

Vários são os exemplos de exegeses constitucionais de preceitos inconstitucionais.

Impossível seria enumerá-los exaustivamente, pois é incomensurável a pletora de casos que chegam, todos os anos, ao Supremo Tribunal Federal, inclusive em sede de embargos de declaração.

Tais violações, mais ou menos intencionais, derivadas de uma interpretação maliciosa ou sub-reptícia, podem provocar mudanças eventuais ou, até, permanentes, suspendendo, por algum tempo, a produção de efeitos da norma constitucional.

Na vigência da Constituição brasileira de 1946, por exemplo, tivemos a exegese constitucional de leis ordinárias inconstitucionais.

O constituinte deixou sob os auspícios da lei o encargo de erigir critérios para a feitura de concursos públicos (art. 186).

Nesse ínterim, leis ordinárias foram editadas admitindo a efetivação de servidores extranumerários ou interinos sem concurso. Outros diplomas normativos chegavam a anunciar a abertura de certames que nem se realizavam.

Outorgavam, de antemão, benefícios aos extranumerários, impedindo a aprovação de candidatos que estivessem fora do serviço público.

Essas práticas, corriqueiras no curso de nossa trajetória constitucional, e que desbordam as técnicas de controle de constitucionalidade, devem ser repelidas, venham de onde vierem.

Em vez de adaptarem as constituições ao influxo do fato social cambiante, fulminam-lhes a forma e o conteúdo.


7. Trabalho, livre iniciativa e livre concorrência

No caso vertente, é indiscutível a ofensa perpetrada pelos arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, contra os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), a  livre iniciativa (CF, art. 1º, IV) e a livre concorrência (CF, art.170, IV), vetores fundamentais do arcabouço constitucional da República.

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O trabalho, certamente, dignifica a existência terrena, e, quando livre e criativo, liga o homem a Deus. Daí a Constituição enfatizar o respeito e a dignidade ao trabalho em diversos lugares (arts. 5º, XIII, 6º, 7º etc.), para dizer que a garantia ao trabalho engloba empregados e empregadores, autônomos e assalariados.

Aliás, para lograr o seu desígnio constitucional, o labor deve ser livre. Daí o constituinte tê-lo encampado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, IV).

Quando o Supremo Tribunal concebeu, na literalidade, a terminologia “navegação aérea” como sendo algo diferente de “transporte” acabou matando os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), porque criou uma situação exdrúxula para os prestadores de serviços de transportes terrestres intermunicipais, interestaduais e internacionais.

Exdrúxula, porque os mesmos vícios que solapavam o setor aéreo, declarados inconstitucionais, foram considerados “lícitos” para o transporte rodoviário.

Desse modo, a desigualdade, a irrazoabilidade, o desprezo à capacidade contributiva e à seletividade tributárias, inadmitidos pela Corte na seara do transporte aéreo, não foram consideradas, por ela mesma, na esfera da malha terrestre!

Certamente, não há como o labor ser livre, face a uma situação desse jaez, onde o desequilíbrio na concorrência compromete da neutralidade tributária das pessoas jurídicas de direito privado.

Moral da história: o segmento aéreo foi beneficiado ao menoscabo da via terrestre.

O respeito à capacidade contributiva e à livre concorrência, argumento de base da ADI 2.669/DF, ajuizada pela Confederação Nacional de Transporte, ficaram à míngua.

E, ao prescrever os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a Constituição aduziu que a ordem econômica se funda nesse primado, valorizando o labor humano em relação à economia de mercado, nitidamente capitalista.

Priorizou, pois, a intervenção do Estado na economia, para dar significado aos valores sociais do trabalho. Estes, ao lado da iniciativa privada, constituem um dos pilares do Estado brasileiro.

Certamente, “A livre-iniciativa está consagrada na ordem econômica constitucional e como fundamento da própria República Federativa do Brasil, podendo atuar o particular com total liberdade, ressalvadas apenas as proibições legais. Não se tolera restrição a tal liberdade, sem o devido respaldo legal”[11].

Sem dúvida, a livre iniciativa proíbe todo e qualquer posicionamento discriminatório quanto ao transporte terrestre, face à flagrante desigualdade em onerar com o ICMS tal setor produtivo.

As empresas possuem o direito constitucional de beneficiarem-se do princípio nodular da livre iniciativa, assim como da livre concorrência.  

Decerto, a livre concorrência, gizada no art.170, inciso IV, da Lex Mater, no posto de vetor basilar da ordem econômica, não constou nas constituições pregressas. No ordenamento constitucional anterior, por exemplo, ela vinha implícita na liberdade de iniciativa.

Homenageado pela Carta de 1988, a livre concorrência não se compactua com quaisquer tipos de discriminações.

Aliás, o Texto Magno estimula o exercício igualitário das relações mercantis.

O que enseja a intervenção estatal é o uso desmensurado e antissocial da livre concorrência.

Práticas abusivas, portanto, derivadas do capitalismo monopolista, dos carteis, dos oligopólios, não encontram respaldo constitucional, assim como não há supedâneo normativo para se quebrar a neutralidade do poder de tributar do Estado.

Seja como for, as companhias de transporte terrestre de passageiros fazem jus à igualdade de concorrência, à liberdade de contratar e à liberdade de instalar estabelecimento comercial, observados os limites impostos pela legislação ordinária.

Enfatize‐se que é muito difícil a tarefa de o legislador infraconstitucional regular a matéria da livre concorrência.

Daí as leis antitrustes não lograrem os efeitos desejados[12], exigindo-se bom senso, por parte do Poder Judiciário, no enfrentamento do assunto.

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Sobre o autor
Uadi Lammêgo Bulos

Advogado Constitucionalista. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Constitucional (SBDC), Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor de "Constituição Federal Anotada", "Curso de Direito Constitucional" e "Direito Constitucional ao alcance de todos" (Editora Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BULOS, Uadi Lammêgo. Inconstitucionalidade da cobrança de ICMS em transporte terrestre de passageiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5320, 24 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63658. Acesso em: 2 mai. 2024.

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