9. Princípio republicano e ADI 1.600-8/DF
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 1.600-8/DF, que reconheceu a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, encontra-se consentânea com o ditame republicano, elevado à pedra de toque do suntuoso edifício constitucional pátrio (CF, art.1o, caput).
Mas o mesmo não podemos dizer a respeito da ADI 2.669/DF, porque o decisum aí proferido, além de não ter se debruçado a respeito das principais alegações de inconstitucionalidade da Confederação Nacional de Transporte, solapou o princípio republicano.
Deveras, dentre os fundamentos da República brasileira, estampados no Título I da Carta Magna, está o pórtico republicano, que estabelece a forma de governo do Brasil.
Consagrou-se, por seu intermédio, a ideia de que os juízes, assim como quaisquer membros dos demais Poderes de Estado, devem, necessariamente, considerar e primar pela observância dos direitos e prerrogativas comezinhas da cidadania, a exemplo da igualdade e da capacidade contributiva.
A força do vetor republicano ressoa sobre toda a ordem jurídica. Basta ver que ele não pode sofrer emendas constitucionais, haja vista o limite implícito no art. 60, § 4o, I, da Carta de 1988.
Seu acatamento é obrigatório por parte até dos entes federativos, a começar pela União (CF, art. 34, VII, a).
Do simples cidadão ao Presidente da República, todos devem respeitá-lo.
Sua importância é enorme. Basta ver que quaisquer atos governamentais, legislativos ou judiciais só serão legítimos se forem praticados sob a sua égide.
Mas o pórtico republicano nem sempre é levado às últimas consequências.
O constituinte reformador brasileiro, por exemplo, fulminou-o ao admitir reeleição para cargos públicos unipessoais (EC n. 16/97, que deu nova redação aos arts. 14, § 5o; 28, caput; 29, II; 77, caput; e 82 da CF).
Ora, república contrapõe-se à monarquia, onde tudo pertencia ao Rei, que governava de modo absoluto e irresponsável.
A res (coisa) publicae (povo) foi um brado contra a realeza, em homenagem ao governo responsável e de muitos, inclusive daquilo que se convencionou chamar de governo de juízes, não raro presente na vida constitucional dos Estados.
10. Conclusões
Ao cabo das premissas e digressões acima expendidas, chegamos às seguintes conclusões a respeito do assunto:
a) É preciso ocorrer uma viragem jurisprudencial da matéria correlata à ADI 2669/DF, haja vista a notória inconstitucionalidade dos arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996.
b) A observância atenta do princípio da proporcionalidade evidencia que o setor de transporte de passageiros está livre da cobrança de ICMS, tal como ventilado na ADI nº 1.600-8/DF. É irrazoável não se beneficiar a frota terrestre com os benefícios concedidos à malha aérea. Ora, quando se sustenta a tese de que o transporte terrestre não se sujeita ao pórtico geral da isonomia (CF, art.5º, caput), se está ferindo, em última análise, o primado da razoabilidade. Não é razoável, para fins de aplicação direta e integral do vetor da isonomia, discutir se o transporte é aéreo ou terrestre. A única coisa que importa nesse campo é o bom senso.
c) Se, por um lado, as atividades desempenhadas pelas empresas de transporte terrestre não são idênticas àquelas exercidas pela companhias aéreas, por outro não se pode chegar à tese equivocada de que os arts. 4º, 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87/1996, são inconstitucionais apenas para casos contingenciais. Isto porque, é um despautério declarar uma norma inconstitucional para certo segmento, e, noutro, de notória envergadura, não. Incide, aqui, o princípio fundamental do Estado de Direito Democrático (CF, art. 1º, caput), que, na concreção de seu alcance, fulmina, por completo, o cancro da inconstitucionalidade “contingencial”.
d) As empresas de transporte rodoviário desempenham uma função social. A isonomia, a capacidade contributiva e a livre concorrência condicionam-lhes a atividade, imiscuindo-se no pórtico da função social das empresas. Qualquer pessoa jurídica, inscrita nos órgãos competentes, tem uma função social a realizar, por força do que determinam os arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186, caput, da Lex Mater. À luz da função social da empresa não paira dúvidas: ou se preserva o seu funcionamento regular, num esforço conjunto de todos os segmentos organizados, incluindo-se aí os Poderes Estatais, ou se atropela direitos prioritários de cidadãos inermes, formada e erigida ao seu derredor. Trazendo esse magistério para o centro da nossa análise, cobrar ICMS de transporte rodoviário de passageiros é matar as necessidades sociais que as empresas de transporte terrestre devem cumprir.
e) Ocorreu algo inaceitável no julgamento da ADI 2.669: o completo menosprezo à livre concorrência. Para o transporte aéreo, adotaram um entendimento, e, para o transporte terrestre outro. Nada se falou, nas manifestações dos votos vencedores, sobre os primados da capacidade contributiva e, sobretudo, da seletividade. Também há que se observar a inexistência de qualquer parâmetro lógico para, na ADI 1.600-8/DF, invalidar-se a cobrança do ICMS, e, na ADI 2.669, admitir a possibilidade. Nesse contexto, subverteram o princípio da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, cujo uso foi equivocado. Isto porque, criou-se uma situação, no mínimo, constrangedora: a existência de duas ações diretas de inconstitucionalidade, apontando como inconstitucionais preceitos idênticos da Lei Complementar nº 87, de 13-9-1996, para se chegar a resultados diversos.
f) É indiscutível a ofensa perpetrada pelos arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, contra os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), a livre iniciativa (CF, art. 1º, IV) e a livre concorrência (CF, art.170, IV). Com efeito, as empresas possuem o direito constitucional de beneficiarem-se de todos esses princípios nodulares da República, fazendo jus, por exemplo, à igualdade de concorrência, à liberdade de contratar e à liberdade de instalar estabelecimento comercial, observados os limites impostos pela legislação ordinária.
g) Não há dúvidas de que os arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, sujeitam-se a requisitos de forma, subjetivos e objetivos, a serem verificados no exame de sua constitucionalidade. De outro lado, os arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, violaram, substancialmente, a Constituição Federal.
h) A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 1.600-8/DF, que reconheceu a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, encontra-se consentânea com o ditame republicano, elevado à pedra de toque do suntuoso edifício constitucional pátrio (CF, art.1o, caput). Mas o mesmo não podemos dizer a respeito da ADI 2.669/DF, porque o decisum aí proferido, além de não ter se debruçado a respeito das principais alegações de inconstitucionalidade da Confederação Nacional de Transporte, solapou o princípio republicano.
Notas
[1] Algumas referências: Carlos Roberto Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1989; Rodney L. Mott, Due process of law, Ed. Bobbs-Merril, 1926; Raquel Denize Stumm, Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1995; Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília, Ed. Brasília Jurídica, 1996; Willis Santiago Guerra Filho, Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997; Gilmar Ferreira Mendes, A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Repertório IOB de jurisprudência, São Paulo, n.23, p.470, dez., 1994;Paulo Armínio Tavares Buechele, O princípio da proporcionalidade e a interpretação da Constituição, São Paulo, 1999; Maria Paula Dallari Bucci, O princípio da razoabilidade em apoio à legalidade, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política,16:173.
[2] Magistério Doutrinário: “este conceito — que é seguramente um dos conceitos-chave da CRP — é bastante complexo, e as suas duas componentes — ou seja, a componente do Estado de direito e a componente do Estado democrático — não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático” (...) “Esta ligação material das duas componentes não impede a consideração específica de cada uma delas, mas o sentido de uma não pode deixar de ficar condicionado e de ser qualificado em função do sentido da outra” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3. ed., Coimbra, Coimbra Ed., 1984, p. 73).
[3] Le Fur, Droit individuel et droit social, in Archives de philosophie du droit et sociologie juridique, Paris, 1934, p. 34; Josserand, Évolutions et actualités, Paris, 1937, p. 159; Gustav Radbruch, Introducción a la ciencia del derecho, Barcelona, 1932, p. 108.
[4] Conferir: Belen Alonso Garcia, El regimen jurídico de la protección social del minusvalido, Madrid, Ed. Civitas, 1997.
[5] Daniel E. Herrendorf, Los derechos humanos ante la justicia: garantia de la libertad inominada, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1998.
[6] Leon Duguit, Traité de droit constitutionnel, Paris, Ed. Fontemoing, 1921, t. 3, p. 86.
[7] O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, Rio de Janeiro, Forense, 1949, p. 128
[8] STF, RMS 11.853, Rel. Min. Luiz Gallotti, DJ de 17-8-1966; STF, RMS 16.588, Rel. Min. Victor Nunes Leal, DJ de 12-3-1968; STF, RE 61.102, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, DJ de 14-2-1968.
[9] STF, RMS 16.986, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, RTJ, 43:575; STF, RMS 16.661, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, RTJ, 59:185; STF, RE 63.318, Rel. Min. Victor Nunes Leal, RTJ, 46:205.
[10] STF, ADIn 319-4, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 30-4-1993, p. 7563.
[11] TRF, 5a Região, 2a T., AC 93.05.27765/CE, Rel. Juiz José Delgado, DJ, 2, de 27-9-1993, p. 40993.
[12] Legislação: arts. 1o, caput, 20, I, 21, VIII, 27, V, 54, caput, da Lei n o 8.884, de 11 de junho de 1994; e art. 52 do Decreto n o 2.594, de 15 de maio de 1998.
[13] Precedentes: STF, ADIn 103/RO, Rel. Min. Sydney Sanches, j. em 3-8-1995, DJU de 8-9-1995; STF, ADIn 1.279-MC/PE, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 27-9-1995, DJU de 15-12-1995; STF, ADIn 1.421-MC/DF, Rel. Min. Francisco Rezek, j. em 27-3-1996, DJU de 31-5-1996; STF, ADIn 864/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 25-4-1996, DJU de 13-9-1996; STF, ADIn 1.064/ MS, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 7-8-1997, DJU de 26-9-1997.
[14] Nesse sentido: STF, ADIn 1.262/TO, Rel. Min. Sydney Sanches, j. em 11-9-1997; STF, ADIn 458/ MA, Rel. Min. Octavio Galloti, j. em 8-6-1998.
[15] Posicionamento doutrinário: “Ainda na vigência da Constituição de 1946, pensávamos que essa jurisprudência merecia revisão. Com maior força julgamos que isso se impõe no regime constitucional vigente, muito cioso do resguardo do princípio da iniciativa privativa. As razões doutrinárias do nosso modo de pensar são, porém, as mesmas de ontem. Admitir o saneamento da falta de iniciativa do Executivo pela sanção leva-nos sempre a conclusões inaceitáveis. Sob certo aspecto, equivaleria a sustentar que a sanção tornaria o preceito da iniciativa exclusiva apenas diretório quando houvesse sanção. Aportaríamos à contradição de que a mesma cláusula seria ora mandatória ora não. Se ela é imperativa — e não teria sentido pensar de outro modo — trata-se de uma competência de direito público, que é indelegável ou irrenunciável na ausência de disposição em contrário” (Nelson de Sousa Sampaio, O processo legislativo, 2. ed. rev. e atual. por Uadi Lammêgo Bulos, Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 194-195).
[16] STF, ADIn 1.070/MS, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 23-11-1994, DJU de 15-9-1995.
[17] Marcelo Neves, Teoria da inconstitucionalidade das leis, São Paulo: Saraiva, 1988, p. 115-116.
[18] Lezioni di diritto costituzionale, 4. ed. Padova: CEDAM, 1976, v. 2, p. 337-338.
[19] STF, RE 18.331, Rel. Min. Orozimbo Nonato, j. em 21-9-1951, RF, 145:164.
[20] Liberdade de configuração normativa: “Não se deve falar de uma discricionariedade do legis- lador, senão de uma ‘liberdade de configuração’ normativa (Gestaltungsfreiheit des Gesetzgebers, na expressão usual do Tribunal Constitucional alemão)” (Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, Curso de direito administrativo, Madrid: Fundación Banco Bilbao Vizcaya/Civitas, 1997, p. 159).