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A crise do direito penal

01/02/2018 às 11:30
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Diariamente inúmeras condutas criminosas são praticadas pelas chamadas “pessoas de bem”, que enxergam somente no outro a figura do criminoso.

De acordo com a doutrina, a função do direito penal reside na proteção de bens jurídicos visando a harmonização da convivência entre os indivíduos. É assim em Bettiol (1), Welzel (2) e outros.

Fala-se que é o ramo jurídico da "ultima ratio", ou seja, é o direito penal o “soldado de reserva”, que “entra em cena” quando os demais ramos fracassaram na solução de um conflito (caráter subsidiário).

Sua atuação se dá mediante a estruturação de tipos penais incriminadores, elaborados a partir da lógica do “CUSTOS VS. BENEFÍCIOS”.

Assim, no preceito primário do tipo penal (caput) prevê-se o benefício almejado por aquele que pretende delinquir, por exemplo, a “coisa alheia” no crime de furto, cuja obtenção propicia uma vantagem ao furtador que tem seu patrimônio aumentando sem ter que se submeter aos procedimentos regulares (numa palavra é o lucro fácil).

No preceito secundário, parte que comina a pena, tem-se como objetivo estabelecer o “preço a pagar” (os custos) pela obtenção do quanto previsto no caput. Em termos muito simples, é como se o recado fosse: se furtar, pena de reclusão de um a quatro anos; se roubar, pena de reclusão de quatro a dez anos; se estuprar, pena de reclusão de seis a doze anos; se fizer uso de documento falso..., etc.

Dessa forma, tem-se uma comunicação estabelecida entre o direito penal tecnicamente positivado e os cidadãos, transmitindo-se uma mensagem reveladora do custo de um benefício inadvertidamente almejado, esperando que o indivíduo  faça uma reflexão (que se daria no momento da cogitação da conduta criminosa) e se demova do propósito delitivo, tendo em vista concluir “não valer a pena”.

Ou seja, a função do direito penal conta com a lógica do “custos vs. benefícios” para promover o controle e pacificação social, confiante na ideia de que o indivíduo vai desistir da intenção delitiva, após concluir que o custo é alto em relação ao benefício.

Álvaro Pires explica que, no âmbito do direito penal, a lógica custos vs. benefícios remonta aos séculos XI, XII, e que a defasagem desse ramo jurídico é evidente, tendo em vista que a sociedade contemporânea está elaborada a partir da concepção do risco, sendo certo que “a racionalidade do risco não é a racionalidade da relação custo/benefício” (3).

Desse modo, os tempos mudaram e com eles o comportamento dos indivíduos. Se lá atrás o direito penal era suficiente para atender problemas criminais da sociedade (será?), atualmente, não mais.

É preciso ficar claro que, no âmbito criminal, raramente o cidadão do século XXI considera o custo do seu objetivo, mas os riscos da sua conduta e a probabilidade de sucesso na obtenção do resultado desejado. Em outras palavras, é ingênuo acreditar que alguém que resolve delinquir, passe antes numa livraria jurídica para compulsar um código penal e estimar se vale a pena ou não praticar a conduta criminosa.

Em verdade, tem-se uma fórmula diferente de funcionamento da racionalidade, na qual aquele que resolve delinquir avalia os “riscos/benefícios” do seu intento delitivo. Assim, o indivíduo analisa as chances de sucesso da sua conduta checando a possibilidade de ser descoberto ou vencido pela vítima ou pela polícia, além das possibilidades de fuga. Enfim, no máximo se faz uma avaliação dos riscos, ignorando-se os custos simplesmente pela crença no sucesso da empreitada criminosa ou na impunidade.

O grande problema é que o direito penal continua pautado sob a lógica anterior (arcaica, ultrapassada), tendo sua eficiência reduzida sobremaneira.

Se na média o indivíduo não considera a pena (custo) do delito que pretende praticar é preciso repensar o direito penal que se tem aplicado, pois é nesse ponto que está baseado o contraestímulo da conduta iníqua.

Por outro lado, é necessário encarar o fato de que deveria bastar a interiorização de valores éticos para que o indivíduo desistisse de qualquer propósito delitivo.

Outro fator que concorre para ineficiência do direito penal é a identificação do criminoso. Em outras palavras, é comum tratar o crime como um problema do outro. Criminoso é sempre o outro. Aqui vai uma provocação:

Diariamente inúmeras condutas criminosas são praticadas pelas chamadas “pessoas de bem”, que enxergam somente no outro a figura do criminoso. A título de exemplo tem-se: 1. Dirigir embriagado; 2. praticar ofensas pessoais; 3. utilizar software pirata; 4. utilizar Dvd pirata; 5. utilizar aparelho eletrônico que destrava canais de TV por assinatura; 6. fazer indicação falsa de infrator na notificação de infração de trânsito; 7. promover a sonegação de patrimônio na Declaração de imposto de renda; 8. adquirir peça de carro em estabelecimentos de idoneidade suspeita; 9. utilizar cartão de convênio de outra pessoa para atendimento médico; 10. médico, advogado, etc., que não emite nota fiscal do serviço prestado; 11. solicitar ao médico que emita recibo em nome de pessoa diversa do paciente, para reembolso; 12. achar “coisa” e não devolver ao seu proprietário ou autoridade; 13. utilizar folhas da empresa para impressão de trabalho escolar, da ; 14. dar falsa informação sobre rendimentos para obtenção de financiamento; 15. utilizar atestado médico falso para ausentar-se no trabalho etc. Ora, são práticas frequentes no cotidiano brasileiro, ou não?

A questão aqui colocada é muito séria. Enquanto o crime for tratado como um problema do outro, nada se resolve. Nesse sentido, é oportuna a reflexão sobre ética, com um autoexame de comportamento, pois a considerar as práticas relacionadas acima, quem é que pode ser tido como referência de pureza ética a ponto de poder corrigir/punir o erro alheio implantando valores éticos?

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A corrupção no sentido amplo, ou seja, estabelecida como deterioração de valores éticos não é “privilégio” de um grupo social, senão algo que pode estar espalhado por toda a sociedade, sendo errônea a atitude daquele que procura dividir os cidadãos entre os que são do bem e os que são do mal (e contra estes, direito penal).

Os questionamentos acima parecem indicar uma crise do direito penal e do sistema de punição. Contudo, não se pretende aqui defender o abolicionismo penal. Não! O objetivo é de chamar a atenção para o fato de que é preciso repensar a forma de encarar o crime e também a própria estruturação do direito penal e da punição.


Referência

  1. BETTIOL, Giuseppe. O problema penal. Coimbra: editora Coimbra, 1967, p. 47
  2. WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. Editora jurídica de Chile. 1970, p. 61
  3. PIRES, Álvaro. Os desafios do direito no séulo XXI. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/507993-os-desafios-do-direito-no-seculo-xxi-entrevista-especial-com-alvaro-pires.
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Sobre o autor
Rogério Neres

Rogério Neres é advogado criminal, sócio do escritório NERES, PRADO & NASCIMENTO sociedade de advocacia criminal; Professor, Mestre em Direito Penal pela PUC/SP; Pós graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim e Especialista em Processo Penal pela FMU. Associado ao IBCCRIM e membro do IDDD.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NERES, Rogério. A crise do direito penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5328, 1 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63818. Acesso em: 22 dez. 2024.

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