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Voto impresso e o 'direito da sociedade'

03/02/2018 às 13:35
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Aborda-se o avanço da votação, apuração e totalização de votos por meio eletrônico na Justiça Eleitoral brasileira, a introdução do voto impresso nas eleições de 2018 e a determinação do TSE de sua realização parcial.

A introdução do sistema eletrônico de votação, apuração e totalização de votos significou uma mudança de paradigmas sem precedentes, no ambiente político-eleitoral brasileiro. O emprego da tecnologia como ferramenta de aperfeiçoamento do sistema eleitoral não é ideia recente, que se possa creditar exclusivamente ao panorama da sociedade em vias de midiatização. (1).

O art. 57 do Código Eleitoral de 1932 especulava em torno do uso das máquinas de votar. Nos anos de 1985 e 198,6 houve a consolidação do cadastro nacional de eleitores pela Justiça Eleitoral -  marco de enorme relevância em razão da unificação e da segurança propiciada no tratamento das informações sobre os eleitores brasileiros. No ano de 1989, na cidade de Brusque (SC), em caráter experimental, o eleitorado brasileiro teve seu primeiro contato com a urna eletrônica. O Tribunal Superior Eleitoral, em 1994, utilizou o processamento eletrônico para alcançar o resultado das eleições com inédita celeridade. Desde 1996, as urnas eletrônicas foram incorporadas aos pleitos eleitorais, completando duas décadas de serviços à democracia brasileira. (2).

O objetivo é de aprimoramento permanente. Se comparado o sistema eletrônico com o procedimento de votação antediluviano da cédula de papel e apuração com mapas e boletins, haverá um aceno saudosista à fraude, incompatível com o ideal republicano. No modelo antigo, mas ainda previsto expressamente no Código Eleitoral (art. 146, V, IX, “a”, “b” e “c” e X), o eleitor recebe uma cédula única de papel do presidente da mesa receptora, devidamente rubricada. Dirige-se até a cabine indevassável, faz as suas escolhas com assinalações no quadrilátero de seus candidatos, preenche o nome dos candidatos ou seus números em eleições proporcionais ou indica o nome do partido, se for o caso de voto apenas na legenda. Em seguida, deposita a cédula na urna de lona e encerra o seu ato de votar. (3).

Aqui a primeira possibilidade de fraude: a hipótese do eleitor trocar as cédulas, levando consigo a cédula autenticada, para a entrega a outro eleitor que, sob coação ou corrupção passiva, vota manipulado por terceiros, mas de forma aparentemente válida para o sistema. A cédula depositada na urna pode ser um dos modelos de cola com número e nome de candidatos. Repetido esse procedimento em cadeia, há margem para fraude relevante, não detectável no momento da votação ou apuração.

Na apuração, o quadro é mais melindroso. O procedimento só pode ser iniciado no dia seguinte às eleições, com prazo de 10 dias para encerramento – art. 159, Código Eleitoral. O transcurso entre a noite do domingo das eleições e a segunda-feira imediatamente posterior, com as cédulas dos votos armazenadas em urnas de lona, suscita com certeza especulações de toda a ordem. Perde-se a fidúcia quanto à inviolabilidade. (4)

A apuração pelas Juntas Eleitorais na votação em cédulas de papel é ainda mais delicada. Com a abertura da urna deve ser verificado se o número de cédulas oficiais é coincidente ao número de votantes. Se não for, não haverá nulidade da votação, salvo se comprovada a fraude (art. 166, § 1º, Código Eleitoral) (5). 

Ora, uma situação veemente de fraude é tratada como nulidade relativa, ensejando séria desconfiança no sistema e acirrando ânimos políticos no momento de grande exposição dos nervos eleitorais de candidatos, correligionários e adeptos dos diversos grupos. No ato de apuração, os partidos por intermédio de seus fiscais e delegados e os candidatos podem apresentar impugnação – art. 169, 173 a 178, Código Eleitoral. Porém, as intervenções dos eleitores nas cédulas podem ser dúbias. Assinalação da cruz no espaço mediano entre os quadriláteros dos candidatos às eleições majoritárias resulta em dúvida insolúvel quanto à intenção. Instala-se uma verdadeira algaravia para a captura daquele voto. E nenhuma solução - que a Junta Eleitoral expresse - fornece segurança jurídica mínima para questão de tão alto relevo (identificar com precisão a vontade do eleitor). (6).

Realizada a contagem dos votos, a formalização do resultado deve ser feita pela transcrição dos quantitativos em mapas, que são utilizados para fins de oficialização e ainda a expedição de boletins de urnas – art. 179, Código Eleitoral. É mais uma providência tensa e frágil quanto aos mecanismos de controle e transparência. A transcrição indevida por erro ou má-fé pode implicar em sérias distorções dos resultados. (7).

Essa aproximação entre os sistemas de votação por cédulas e eletrônica converge para uma acolhida das urnas eletrônicas como forma superior e que merece ser preservada. Evidentemente, o procedimento não deve ficar à margem de críticas, sugestões ou denúncias de fragilidades. O Tribunal Superior Eleitoral, cumprindo com o regime de transparência e eficiência da votação eletrônica, vem pautando ações de divulgação e auditorias dos sistemas, justamente para conferir o controle pertinente e permitir o seu aprimoramento.

A legislação eleitoral é mobilizadora nesse sentido, reconhecendo uma diversidade de legitimados para acompanhamento e questionamento quanto aos sistemas adotados pela Justiça Eleitoral. A sociedade é titular do interesse no sistema eleitoral eficiente, sólido e transparente, que atinja o objetivo de assegurar a normalidade das eleições no país.

Mesmo com esse diagnóstico, o voto eletrônico tem sido admirado, mas com uma discreta e deselegante desconfiança. Após o resultado das eleições presidenciais de 2014, esse quadro se intensificou, com o uso predatório da Justiça Eleitoral, questionando os resultados das urnas (8). Uma das alternativas legislativas colocadas a serviço do aprimoramento do voto eletrônico foi a introdução do ‘voto impresso’, depois de um período de tentâmen, como noticia Gomes (2016) (9).

O art. 59-A da Lei 9.504/97 (Lei das Eleições), com redação conferida pela Lei 13.165/2015, determina que a urna imprima o registro do voto para ser depositado automaticamente e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado, sendo ainda, vedado o encerramento do processo de votação antes da confirmação pelo eleitor do conteúdo de seu voto e o registro impresso que a urna emitirá.

O novo procedimento para a votação divide opiniões. Para uns, é ocioso e não agrega nenhuma qualidade na segurança e provoca retardamento desnecessário no ato de votar, além de impor ônus financeiro enorme para adaptação das urnas. Para outros, é significativo em termos de transparência (10).

Na tarefa de administração das eleições, o Tribunal Superior Eleitoral anunciou a limitação da adoção do voto impresso a 5% do conjunto das urnas eletrônicas (30 mil de um universo de aproximadamente 600 mil urnas). A motivação foi centrada nas restrições orçamentárias (11).

A legitimidade dessa decisão pode ser afirmada com base na autonomia do sistema jurídico, a partir da concepção de Luhmann ao articular a teoria dos sistemas, especialmente inserindo o sistema jurídico como autopoiético, eis que a resolução da questão se vale suficientemente do parâmetro de controle lícito / ilícito. Essa autonomia - que Varela, evocado pelo autor, designa fechamento operativo de um sistema - autoriza concluir que o apontamento pela legalidade da determinação do TSE não opera com elementos do ambiente interno do direito ou externo à sociedade. (12)

A assertividade pela licitude está imbricada pela natureza programática da norma do voto impresso – art. 59 A, Lei das Eleições. Necessário o seu descobrimento, a retirada das folhas de cobertura para que suas projeções sejam mostradas plenamente. O voto impresso não irá produzir um retorno anacrônico à apuração com cédulas de papel, seu intento não é fornecer um recibo ao eleitor ou dotá-lo de um meio para comprovar o seu voto a outrem. 

A compleição da norma é uma alvíssara à dúvida sobre a regularidade do voto eletrônico. É uma prevenção auditora. Não há dicção nela expressa que ventile o que deverá ser feito com o manancial de votos impressos.

É o TSE que deverá fazê-lo, disciplinando uma forma para o seu aproveitamento como recurso dirigido à segurança e transparência da votação, autorizado pelo art. 105, Lei das Eleições e art. 23, IX, XII e XVIII, Código Eleitoral.  A realização do voto impresso de forma parcial em relação ao conjunto das urnas eletrônicas é providência perfeitamente assimilável pela legalidade. (13)

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A comunicação jurídica instrumentalizada a partir da questão do voto impresso (dúvida sobre a possibilidade do mecanismo não ser utilizado na totalidade de urnas eletrônicas) resulta concretamente na utilização do código (lícito) para a aceitação do mecanismo de auditagem parcial (não utilização do voto impresso para percentual além daqueles definidos pelo TSE). Prosseguindo na subsunção à teoria de Luhmann, os programas acima descritos (legislação eleitoral) se caracterizam como finalistas, ou seja, buscam a realização de eleições em condições de lisura.

É essa a expectativa da operação do sistema jurídico como um dos sistemas sociais, permitindo a imunidade e proteção da sociedade. A dimensão do consenso é cogitada sob esse viés. Havendo necessidade de incremento na produção de controles para uma crescente autenticação dos procedimentos eletrônicos nas eleições, que se percorra essa caminhada sob os faróis do sistema jurídico, como artífice central das garantias à sociedade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Segundo Gomes (2017):  Hoje, a humanidade está vivendo uma mudança epocal, com a criação de um bios midiático que incide profundamente no tecido social. Surge uma nova ecologia comunicacional: um bios virtual. Mais do que uma tecno-interação, está surgindo, conforme já dito, um novo modo de ser no mundo, representado pela midiatização da sociedade. Esse modo de ser no mundo assume o deslocamento das pessoas do palco (onde são sujeitos e atores) à plateia (onde sua atitude é passiva). Aqui aparecem, já, elementos que apontam para a questão ética.

Assumindo-se a midiatização como um novo modo de ser no mundo, supera-se, crê-se, a mediação como categoria para se pensar a mídia hoje, tanto a tradicional quando a digital. GOMES, Pedro Gilberto, In Dos Meios à Midiatização, Editora Unisinos, São Leopoldo/RS, p. 66.

(2) http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Janeiro/serie- urna-eletronica-conheca-a-historia-da-informatizacao-do-voto-no-brasil

(3), (4), (5), (6) e (7) www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4737.htm 

(8) http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2015/Novembro/plenario-do-tse-psdb-nao-encontra-fraude-nas-eleicoes-2014

  (9) GOMES, José Jairo, In Direito Eleitoral, Editora Atlas, 12ª edição, São Paulo/SP, p. 67/9.

(10) RAMALHO, Flávio Rogério de Aragão. Urna eletrônica e sua falibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 407, 18 ago. 2004. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4667>. Acesso em: 2 fev. 2018.

RÊGO, Cláudio Andrade. A importância do voto impresso como validador de uma eleição eletrônica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 407, 18 ago. 2004. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/5596>. Acesso em: 1 fev. 2018.

(11) http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tse-restringe-voto-impresso-em-2018-a-5-das-urnas,70002105173

(12) LUHMANN, Niklas, In O direito da sociedade, Editora Martins Fontes, 2016, São Paulo/SP, p. 82/3.

(13) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm

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Sobre o autor
Amaury Silva

Juiz de Direito. Juiz Eleitoral. Magistrado no Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Humanos). Doutor em Ciências da Comunicação interface com Direito Professor na Graduação e Pós-Graduação (Direito Penal, Processual Penal e Direito Eleitoral). Autor de diversas obras jurídicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Amaury. Voto impresso e o 'direito da sociedade'. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5330, 3 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63871. Acesso em: 29 mar. 2024.

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