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Os negócios processuais atípicos e os contratos da Administração Pública

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16/02/2018 às 14:00
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3. Os contratos da Administração Pública e o art. 190 do CPC

Partindo-se do princípio de que o art. 190 do CPC pode ser empregado pela Fazenda Pública, este trabalho passará a evidenciar a ampla possibilidade de uso das convenções processuais pelo Estado nas suas relações com particulares.

Afinal, se tal premissa é um truísmo no âmbito dos negócios processuais estruturados no deslinde do feito judicial, isso também ocorre previamente a uma demanda judicial específica. Uma vez que a contratualização é instrumento usado à saciedade no cotidiano administrativo, esses ajustes podem implementar negociações processuais, que incidam em futuras lides.

3.1. A ampla contratação pela Fazenda Pública

Como cediço, o Estado possui grande influência no dia-a-dia dos indivíduos. Sua esfera de atuação é deveras ampla. A doutrina administrativista, em geral, acentua a existência de três grandes atividades estatais, quais sejam, o fomento, a polícia administrativa e o serviço público[28].

Sem embargo de essas atividades gozarem de várias das características alocadas no bojo do regime jurídico administrativo, em especial a relação de verticalidade entre o Estado e o particular, a concretização dessas ações administrativas muitas vezes pressupõe instrumentos de contratualização com o particular – isto é, mesmo com elementos derrogatórios do regime público, o acordo de vontade ainda seria pressuposto para consolidação dessas atividades.

Detalhemos.

A atividade de fomento consubstancia-se como a conduta administrativa de incentivo à iniciativa privada, com o mister de atender específico desiderato público.  Benefícios fiscais, subvenções ou empréstimos são exemplos de fomento[29]. Para concretização dessas condutas, muitas vezes acordos de vontades com particulares são imprescindíveis. À título de ilustração, pode-se lembrar respectivamente: (i) a formalização de isenção individual pressupõe iniciativa do particular e concordância da autoridade tributária (art. 179 do Código Tributário Nacional); (ii) o recebimento, por um beneficiário do programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), de subvenção econômica que ensejará diminuição do valor de aquisição do futuro imóvel, pressupõe celebração de contrato do particular com o agente financeiro do programa (art. 2º, I, do Decreto nº 7.499, de 2011); e (iii) a União celebrou contrato de empréstimo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com base no art. 1º da Lei nº 11.948, de 2009, a fim de que o BNDES promovesse mútuos com agentes produtores nacionais, intentando desenvolver setores econômicos específicos.

Por sua vez, a prestação de serviço público tem como escopo solver necessidades concretas dos indivíduos, configurando uma atuação comissiva do Estado (ou entidade delegada) a fim de conceder uma utilidade específica ao usuário. Como cediço, o serviço público pode ser prestado sem ter usuários determinados (serviço público universal), enquanto que na prestação de serviço público uti singuli, o usuário paga uma determinada contraprestação e, em recompensa, recebe uma prestação que o beneficiará de forma concreta.

Na primeira hipótese, o serviço público é prestado de forma direta pelo Estado. Serviços de iluminação pública ou serviço de limpeza das ruas são ilustrações emblemáticas dessa hipótese. Nesses casos, processos de contratação pública são necessários a fim de fornecer insumos necessários para sustentar tal prestação, a exemplo, respectivamente,  de contratos para fornecimento de postes ou contratos para fornecimento de postos de trabalho (terceirização).

No caso da prestação de serviço público uti singuli, geralmente se promove delegação do exercício do serviço público, mediante celebração de contratos de concessão ou permissão de serviço público (art. 175 da Constituição Federal). O futuro concessionário ou permissionário materializará a prestação do serviço público, percebendo, em regra, dos usuários tarifa específica, tudo nos termos delineados pelo ajuste público.

Por sua vez, convém trazer à baila a noção de polícia administrativa, qual seja, “toda atividade de execução das chamadas limitações administrativas, que são restrições impostas por lei ao exercício de direitos individuais em benefício do interesse coletivo”[30]. Como grande distinção em relação ao serviço público, percebe-se que nesta não há a outorga de uma comodidade a um específico individuo (ou grupo), mas uma conduta de restrição de liberdade, com o mister de garantir um bom convívio social.[31]

O exercício do Poder de Polícia, conforme tradicional entendimento doutrinário, é indelegável a entidades privadas, já que não é possível, sob pena de manifesto desrespeito ao princípio da isonomia, que indivíduos restrinjam atitudes empreendidas por outros, ensejando, na prática, que uns exercessem supremacia sobre outros. Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal (ADI nº 1717). Não se impede, contudo, que atos meramente executórios, prévios e necessários para consubstanciar atos restritivos do exercício de liberdade e propriedade, sejam praticados por entidades privadas, uma vez que seriam apenas instrumentos para embasar o aludido ato restritivo, ato este que é praticado pela autoridade estatal e, por conseguinte, não é delegado[32].

A título de exemplo, convém citar os controles de velocidade instalados nos logradouros das cidades, os quais geralmente pertencem a entidades privadas. No instante em que a máquina verifica o excesso de velocidade, há transmissão automática da aludida informação ao órgão estatal, o qual, verificando a violação de norma cogente, aplica a multa devida. O liame entre o Estado e essas entidades privadas que prestam serviços acessórios do poder de polícia é um contrato administrativo, em regra precedido de certame licitatório, cujo instrumento define desde já as regras da futura avença administrativa.

Continuando, deve-se lembrar que o fornecimento de bens e serviços à Administração Pública pressupõe a celebração de contratos administrativos. A despeito da notória existência de cláusulas exorbitantes em ajustes públicos, derivados da relação de verticalidade existente no bojo do regime administrativo público, não se pode expurgar a premissa de que a prestação de serviços (ou fornecimento de bens) ao Estado sempre pressupõe voluntariedade do particular, de participar de um certame ou de celebrar um ajuste com o Poder Público.

Dentro, portanto, dessa grande amplitude de acordo de vontades empreendido entre um particular e o Estado, nada obstaria que a Administração Pública empreendesse negócios processuais dentro desses ajustes, com o fito de delinear questões relacionadas com eventual demanda judicial. Isso já existe bastante na realidade administrativa, podendo-se registrar, por exemplo, a cláusula de foro obrigatória em contratos administrativos (art. 55, §2º, da Lei nº 8.666, de 1993). O que se pretende apontar nesta sede é que a cláusula geral de negociação processual, constante no art. 190 do CPC, pode ser empregada no âmbito dos ajustes contratuais realizados pelo Poder Público.

Mas, então, quais seriam os limites de emprego dessa cláusula geral? É o que veremos a seguir.

3.2. O uso da negociação processual pela Administração Pública: incidência e limites.

Mercê da ampla contratualização existente na seara pública, não há óbice que tais ajustes públicos contenham cláusula específica cujo objeto se relacione com o procedimento de futura demanda judicial. Esse empreendimento, como se sustentou nesta sede, está embasado no art. 190 do CPC.

Sabe-se que grande parte dos contratos celebrados pelo Poder Público pressupõe certame licitatório. É o que estabelece a Constituição Federal (art. 37, XXI). Nesses casos, o instrumento convocatório (edital ou carta-convite, conforme o caso) tem o condão de divulgar o interesse de uma determinada prestação de particular, mas também é elemento “veiculador de normas que disciplinam o certame e a contratação subsequente”[33].

Assim, o instrumento convocatório pode trazer, em seu bojo, comandos que derivem negócios processuais. Isso já ocorre, decerto, no caso da cláusula de foro, tendo em vista exigência normativa expressa, já abordada outrora. Cláusula arbitral também pode constar no edital (art. 1º, §1º, da Lei nº 9.307, de 1996). Sem embargo, outras condições que influenciarão rito de futura demanda relacionada com contrato administrativo podem ser estabelecidas casuisticamente, com espeque no art. 190 do CPC.

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Por exemplo, o edital (ou a minuta de contrato que o subsidia) de uma licitação de concessão de determinado serviço público pode estabelecer uma cláusula que veda pedido, pelo concessionário, de execução provisória de uma decisão judicial relacionada à futura delegação, ou conter acordo de ampliação ou redução de prazos processuais concernentes a futuro processo. Outrossim, em contrato administrativo cujo objeto é a prestação de serviços de natureza continuada (art. 57, II, da Lei nº 8.666, de 1993), nada impede que seja estabelecida cláusulas de confidencialidade de determinadas informações obtidas pelo particular na execução da avença, impossibilitando, assim, seu emprego como instrumento de prova (tornando ilícito, de forma convencional, o uso de específica prova em demanda judicial).

Os limites para uso do art. 190 do CPC em instrumentos convocatórios seriam aqueles tradicionalmente trazidos pela doutrina processualista para uso da cláusula geral, já abordados outrora, acrescentando-se, de qualquer sorte, a necessidade de que a convenção processual implementada no instrumento esteja embasada em motivação idônea, que evidencie específico interesse administrativo legítimo que a embase. Afinal, uma cláusula desse naipe pode configurar, ao fim e ao cabo, uma restrição competitiva ilícita, infringindo o disposto no art. 3º, §1º, I, da Lei nº 8.666, de 1993 (e o próprio art. 37, XXI, CF).

Afinal, caso se implemente, por exemplo, uma convenção processual no edital de concessão de serviço público, em que se estabeleça que demandas judiciais propostas pela futura concessionária que tratem de questões relacionadas com a execução do contrato administrativo sejam julgadas em instância única[34], poderia qualificar uma cláusula potencialmente restritiva de competitividade. Afinal, em tais espécies de contrato, em que há vultoso dispêndio de recursos pelo futuro particular, muitas vezes de origem estrangeira, a impossibilidade de apresentação de recurso judicial pelo futuro concessionário pode desestimular a participação de inúmeros licitantes na delegação da concessão, haja vista a instabilidade regulatória derivada desse requisito do edital, violando o primado da competividade, preceito tão caro à licitação.

A cláusula geral de negociação processual prevista no art. 190 do CPC deve ser usada com bastante parcimônia em licitações. O seu uso inclusive só soaria legítimo normativamente em certames de maior vulto, cenários em que a vulnerabilidade dos licitantes é bastante diminuta. Afinal, partindo-se do princípio de que todo certame licitatório tem aprovação jurídica pela advocacia pública (art. 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666, de 1993), apenas em tais espécies de licitações é que se verifica um efetivo assessoramento de advogados privados aos licitantes, já que nessa hipótese os particulares que disputam a licitação geralmente são grandes companhias e sociedades empresárias.

Tendo em vista tal fato, extrai-se a ilação de que ofenderia a literalidade do art. 190, parágrafo único, do CPC o uso da cláusula geral em licitações exclusivas para pequenos empreendedores, de que trata o art. 47, I, da Lei Complementar nº 123, de 2016. Afinal, em tais certames, de valor diminuto (até oitenta mil reais), nas quais participam microempresas e empresas de pequeno porte, o estabelecimento de convenções processuais atípicas iria de encontro ao impedimento de utilizá-los em face de atores vulneráveis.

De qualquer sorte, é bom anotar que o art. 190 do CPC não incide apenas em contratos administrativos derivados de licitação. Outras hipóteses de ajustes administrativos podem utilizar aquele comando. Contratos administrativos derivados de hipóteses de contratação direta gozam, inclusive, de maior flexibilidade no uso de negociações processuais atípicas, já que não traz em seu bojo preocupações relacionadas com a competividade, tratadas acima.

Ademais, instrumentos administrativos cujas partes sejam entes federativos, tais como contratos de garantia/contragarantia de operações de crédito (art. 167, §4º, da Constituição Federal; art. 40 da Lei Complementar nº 101, de 2000) ou convênios administrativos (art. 116 da Lei nº 8.666, de 1993 c/c art. 1º, §1º, I, do Decreto nº 6.170, de 2007), também podem empregar convenções processuais atípicas. Nesses casos, inclusive, não há que se falar, em geral, de situações de vulnerabilidade, haja vista que ambos os partícipes podem ter o assessoramento das respectivas advocacias públicas, os quais avaliariam a pertinência normativa das negociações processuais ali estabelecidas.

Extrai-se, portanto, que a cláusula geral de negociação processual, trazida pelo art. 190 do CPC, pode ser implementada em ajustes administrativos. Sem embargo, tal preceito não tem o condão de estimular convenções em desacordo com o interesse coletivo, bem como violadoras de preceitos normativos expressos. Apenas a casuística justificará a pertinência (ou ilegalidade) da convenção empreendida.

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Sobre o autor
Fabiano de Figueirêdo Araujo

Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília. Especialista em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas. Professor Universitário. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Fabiano Figueirêdo. Os negócios processuais atípicos e os contratos da Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5343, 16 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63976. Acesso em: 22 nov. 2024.

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