A intervenção federal e a suspensão do processo legislativo de emenda constitucional

19/02/2018 às 15:09
Leia nesta página:

No dia 16/02/2018, o Presidente da República decretou intervenção federal, que suspende o processo de emenda constitucional. Em entrevista, afirmou que o decreto será suspenso no momento da votação da PEC da previdência, o que subverte regra constitucional.

No dia 16 de fevereiro de 2018 o atual Presidente do Brasil decretou pela primeira vez na vigência da atual Constituição Federal brasileira de 1988, a medida excepcional de intervenção federal da União em um Estado-membro da Federação.

A intervenção federal é um instrumento previsto no artigo 34 da atual Constituição Federal brasileira, e, este artigo, traz uma redação de expressivo significado, determinando em seu caput que: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para”.

A peculiaridade da redação consiste no fato de que proíbe a decretação da medida como regra geral ao afirmar que “a União não intervirá”, permitindo sua decretação tão somente de forma excepcional.

A excepcionalidade surge quando satisfeitos alguns princípios e requisitos. Primeiro, a temporariedade, pois que, por ser excepcional, a medida deve durar o menor período possível. Outro, a extensão da medida, que somente deve atingir área e instituições determinadas e não o Estado-membro todo ou todas as suas instituições. Necessidade, pois somente deve ser decretada se a necessidade for premente e a medida de intervenção o último recurso de que se lança mão, tendo falhado todos os outros meios disponíveis. A necessidade está ligada diretamente à duração, extensão e a certas situações descritas na própria Constituição, nos incisos de I a VII do artigo 34. A decretação da intervenção somente pode ocorrer caso uma dessas situações se mostrem, não sendo possível a decretação em outros casos, sendo esta relação taxativa, ou seja, definida em numerus clausus.

É certo que os incisos, notadamente o III (“pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”), traz uma redação aberta (numerus apertus), o que corrompe de certa forma a natureza excepcional do instituto da intervenção federal.

A intervenção federal, por fim, pode ser decretada de forma espontânea pelo Presidente da República ou depender de provocação. Quando a intervenção depender de provocação, o Presidente da República somente pode agir quando esta estiver presente. A provocação torna-se uma condição para a decretação da intervenção. A provocação, ainda, pode ser uma solicitação, ou seja, um pedido, ou pode ser uma requisição judicial. Quando a intervenção depender de provocação por requisição judicial, o Presidente da República elaborará o decreto de forma vinculada. Quando a intervenção depender de provocação na forma de solicitação ou for espontânea, o Presidente da República atuará com certa discricionariedade, mas o decreto precisa ser apreciado e aprovado pelo Congresso Nacional.

Observando-se o Decreto presidencial n. 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, que instituiu a intervenção federal, principalmente seu artigo 1º, parágrafo 2º, percebe-se que o mesmo utilizou como base legal o acima citado inciso III do artigo 34 da atual Constituição Federal brasileira: “Art. 1º, § 2º. O objetivo da intervenção é pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”. Trata-se, assim, de uma intervenção federal decretada de forma espontânea pelo Presidente da República, que depende de aprovação pelo Congresso Nacional, na forma dos artigos 84, X e 49, IV, ambos da atual Constituição Federal brasileira: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: X - decretar e executar a intervenção federal”; e, “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: IV - aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas”.

Este artigo, no entanto, não tem por objetivo discutir a constitucionalidade do Decreto de intervenção, sua conveniência ou oportunidade, mas a declaração seguinte do Presidente da República, que afirmou:

"Ajustamos ontem [quinta, 15] à noite, com participação muito expressiva do presidente Rodrigo Maia e do presidente Eunício Oliveira a continuidade da tramitação da reforma da Previdência, que é uma medida também extremamente importante para o futuro do país. Quando ela estiver para ser votada, segundo avaliação das casas legislativas, eu farei cessar a intervenção. No instante que se verifique, segundo critérios das casas legislativas, que há condições para votação, reitero, farei cessar a intervenção", disse. (CARAM, Bernardo; MAZUI, Guilherme. Temer diz que vai suspender intervenção no RJ durante votação da reforma da Previdência. Mazui, G1, Brasília, 16 fev. 2018, 13h38, atualizado há 3 horas. Acesso em: 16 fev. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/temer-diz-que-vai-cessar-a-intervencao-no-rj-durante-votacao-da-reforma-da-previdencia.ghtml>).

A questão surge em razão dos limites ao poder de reforma constitucional.

Nosso texto constitucional é rígido quanto à estabilidade, pois exige para sua alteração um procedimento especial, diferente e mais rigoroso do que aquele adotado para a confecção de normas infraconstitucionais.

Assim, existem limites ao poder de emenda e isto ocorre em razão de certos fatores. Primeiro, a reforma não pode atingir o que é essencial em uma Constituição, seu núcleo essencial, aquilo que lhe caracteriza e personaliza. Isto ocorre pois, assim agindo não se estaria reformando a Constituição, mas dando origem a uma nova ordem constitucional. E o poder de reforma não é suficiente para isto. O único poder capaz de dar nascimento a uma nova Constituição é o poder constituinte originário, que tem por titular o povo e surge de uma revolução. Revolução no sentido de inversão dos valores de uma sociedade.

A reforma, fruto do poder constituinte derivado, somente pode realizar alterações superficiais, portanto.

E a reforma é necessária por sua vez, pois como toda norma, fruto da capacidade intelectual limitada do ser humano, envelhece perdendo seu momento histórico e possui lacunas, falhas, incorreções e contradições.

Sendo assim surge a pergunta: o que é possível de se alterar em uma Constituição por meio do poder constituinte derivado de reforma (emenda constitucional)?

Os limites estão expressos e implícitos em nossa atual Constituição. São limites expressos os materiais, formais, temporais e circunstanciais.

Os limites materiais são as cláusulas pétreas, previstas no artigo 60, § 4º da atual Constituição Federal brasileira, ou seja, assuntos que não podem ser abolidos do texto constitucional:

“Art. 60. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais”.

As cláusulas pétreas, como se observa, podem ser emendadas, não podendo, porém, ser abolidas da Constituição Federal brasileira atual.

O limite formal é o próprio processo legislativo de emenda, que possui nas fases de iniciativa e discussão e votação (fase constitutiva de deliberação legislativa) regras muito mais restritivas que a prevista para a elaboração de uma lei ordinária e de uma lei complementar:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

[...]

§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem”.

O limite temporal, que não existe propriamente na Constituição brasileira de 1988, pois seria uma regra que permitiria a emenda constitucional tão somente dentro de determinado período, por exemplo a cada 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos.

No entanto, próximo a isso, a atual Constituição brasileira estabelece que: “Art. 60. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. Tal regra é um exemplo um tanto distante, mas que ainda pode ser considerado um limite temporal.

Por fim, os limites circunstanciais, que significam que em determinadas circunstâncias o texto constitucional não pode ser alterado: “Art. 60. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio”.

Desta forma, decreta a intervenção federal não se pode realizar emendas à Constituição Federal, o que conflita diretamente com a afirmação do atual Presidente da República.

Ainda temos os limites implícitos, que podem ser reduzidos a dois. Primeiro, não se pode alterar o titular do poder constituinte derivado de reforma, o qual pertence ao Congresso Nacional. E tanto pertence ao Congresso Nacional que o Presidente da República participa do processo legislativo de criação das emendas constitucionais, no máximo, na iniciativa, quando apresenta uma proposta de emenda constitucional. Mas, diferente das leis ordinárias e complementares, as emendas não vão ao Presidente da República para sanção ou veto e nem mesmo para a promulgação e publicação, a qual é realizada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e Senado Federal.

Segundo, não se pode abolir os limites expressos, pois isto tornaria a Constituição menos rígida e, talvez, até a mudaria em flexível, alterando sua natureza e essência. Mas alterar a substância e identidade de uma Constituição é impossível por meio do poder constituinte derivado de reforma, como visto acima. Transmutar a Constituição de rígida para flexível é algo que somente compete ao poder constituinte originário.

O Presidente da República, a Sua Excelência Michel Miguel Elias Temer Lulia, advogado, professor de Direito Constitucional, autor de obras como Elementos de Direito Constitucional e Constituição e Política e um dos constitucionalistas mais citados nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, desta forma, não poderia de modo algum afirmar que continuará a apoiar o andamento da Proposta de Emenda Constitucional n. 287/2016 que trata da Reforma da Previdência, mesmo durante a vigência de intervenção federal, sendo a medida de exceção suspensa tão somente no momento da votação da emenda, retornando o Decreto a vigorar em seguida.

Tal atitude confronta o texto constitucional. O limite circunstancial impede não somente a votação mas também e, principalmente, a discussão de propostas de emenda constitucional, fase parlamentar constitutiva da emenda. E a razão para isto é que reformar a Constituição é uma atividade de tamanha responsabilidade que exige enorme solenidade no processo e atenção total dos parlamentares. Momentos de crise institucional que autorizam a decretação de intervenção federal, dividem a atenção dos parlamentares, tornando temerária a discussão e votação de proposta de emenda constitucional.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A Câmara dos Deputados e o Senado Federal devem suspender o andamento de todas as propostas de emenda constitucional imediatamente, como forma de se observar regra constitucional que trata dos fundamentos e natureza da Constituição brasileira de 1988, impedindo que se subverta limite expresso ao poder de emenda por manobra escusa e nitidamente incompatível com proibições constitucionais, implícita e taxativa.

A continuidade do processo legislativo de emenda, com a discussão das propostas de emenda constitucional simplesmente fere de morte o limite constitucional circunstancial, tornando mais flexível o texto constitucional, o que é radicalmente contrário ao entendimento que se tem quanto a Constituição ser a norma fundamental garantidora do Estado Democrático de Direito.

Espera-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal seja provocado a se manifestar sobre a questão e suspenda a tramitação de todas as propostas de emenda constitucional, dentre elas a Proposta de Emenda Constitucional n. 287/2016, durante o período de intervenção federal que segundo o próprio Decreto presidencial n. 9.288/2018 perdurará até 31 de dezembro de 2018 (“Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018”), fazendo valer o princípio do Estado Democrático de Direito e o princípio da força normativa da Constituição.

Ainda, caso o Presidente da República suspenda a intervenção federal com o objetivo de votar proposta de emenda constitucional que foi discutida pelas Casas do Congresso Nacional durante o período de vigência da medida excepcional, retornando a vigorar o decreto imediatamente depois da votação, estará nitidamente desviando a finalidade da intervenção federal. Usar o dever-poder de fazer cessar uma medida excepcional como a intervenção apenas para conseguir a aprovação de uma emenda constitucional é evidente desvio de finalidade. O poder existe tão somente para satisfazer o dever, que, neste caso específico, seria por fim ou suspender a intervenção por razões ligadas à própria razão do decreto, qual seja, grave comprometimento da ordem pública. Assim, até pelos mais simples princípios de funcionamento da teoria do poder em uma República, seria inconstitucional a medida de suspensão. 

A consequência da manobra é a tipificação de crime de responsabilidade previsto no artigo 85 da atual Constituição Federal brasileira, que prevê em seu caput como tal o fato do Presidente da República praticar atos que atentem contra a Constituição Federal, e inciso V do mesmo artigo, que atentem contra a probidade administrativa. Tal condenação pode levar, como ocorreu com os ex-Presidentes da República Fernando Affonso Collor de Mello e Dilma Vana Rousseff, a perda do cargo e inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judicias cabíveis (artigo 52, parágrafo único da atual Constituição Federal brasileira).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos