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Fundamentos constitucionais da desobediência civil como instrumento do direito de greve

27/08/2020 às 16:45
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O artigo refere-se ao instituto da desobediência civil como forma legítima do direito de greve, com fundamento na Constituição Federal de 1988.

Os direitos sociais fundamentais assegurados na Constituição Socialista de 1988, frutos do processo de redemocratização ocorrido após os 21 anos de ditadura ao qual o Brasil foi submetido através do golpe militar de 1964, foram duramente conquistados e finalmente constitucionalizados.

Em que pesem entendimentos contrários, a Carta Magna de 1988, foi cunhada num momento histórico onde se trabalhou a firmação desses direitos, que envolvem trabalho decente e proteção social ampla, de forma a que todo trabalhador possa ter uma vida digna (leia-se alimentação, vestuário, saúde, educação, lazer etc.). A Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1988, ocupou-se de desenhar sistemas previsionais sustentáveis e justos, que permitissem inclusão social e diminuição das desigualdades sociais.

Durante a era FHC, esses direitos sofreram duro ataque, notadamente quando se fala da edição da EC n. 20, de 1998, que, além de ferir direitos, tratou os sistemas previsionais de forma a dar respostas ao mercado financeiro, sob as linhas mestras do Consenso de Washington. À época foi também encaminhada ao Congresso Nacional a chamada Lei de Terceirização (PL 4302/1998), que não recebeu votação, mas não foi arquivada.

Sobre o Consenso de Washington, é de bom alvitre lembrar, que suas medidas (seus dez mandamentos) foram pinceladas num quadro pintado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que recebeu moldura do Banco Mundial (documento Envelhecer sem Crises, de 1994, que priorizava privatizações sem preocupação com a disseminação da pobreza). As medidas eram direcionadas para os países em desenvolvimento, que seriam “salvos” pelas ultrajantes e maquiavélicas políticas neoliberais, em detrimento aos direitos dos trabalhadores (para neoliberais convictos e conservadores, trabalhadores devem ser tratados como força geradora de riqueza, não como seres humanos providos de direitos).

No entanto e sequencialmente, percebeu-se que na realidade o quadro não passava de um grande borrão, pintado em cinza, que necessitava da injeção de cores, para ter vida. Foi então que surgiu o Consenso de Brasília, que o redesenhou e lhe deu nova moldura. A política dos direitos sociais passou a ser uma vertente, procurando-se caminhos que não o sufragassem, numa leitura correta da Carta Socialista de 1988. O próprio criador da expressão Consenso de Washington, John Williamson, desiludido com os rumos da sua criação, que fugiu ao seu controle (tal como o monstro criado por Victor Frankenstein) assim sentenciou: “Claro que eu nunca tive a intenção que meu termo fosse usado para justificar liberalizações de contas de capital externo... monetarismo, supply side economics, ou minarquia (que tira do Estado a função de prover bem-estar social e distribuição de renda), que entendo serem a quintessência do pensamento neoliberal.”.

Acontece que o mercado financeiro, esse grande Mefistófeles que rouba a dignidade do ser humano e que lhe tolhe a liberdade, ressurge (com o desiderato de apagar as cores), de forma voraz, com o golpe patrocinado no Brasil em 2016, liderado por marionetes a seu serviço. Com a nova artimanha capitalista, vêm sendo propositadamente propostas reformas no ordenamento normativo brasileiro, sendo as de maiores expressões a Reforma da Previdência, a Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização (Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017), bem como o congelamento dos investimentos públicos (EC n. 95, de 15.12.2016). 

Sublinhe-se que as referidas proposições são marcadamente draconianas, na medida em que não apenas cortam, abalam e rasgam direitos consagrados na Constituição Federal de 1988, mas também criam deveres desumanos, com crueldade escravocrata.

Tais medidas contam com o apoio da grande mídia (a mesma que apoiou incondicionalmente o golpe de 1964) e são patrocinadas com um discurso falacioso de que os sistemas previdenciários são deficitários e que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) está caduca e, por isso, deve ser flexibilizada. No entanto, o discurso midiático tem o condão de enganar, de iludir, de não deixar transparecer a verdadeira intenção por detrás das investidas reformadoras, que é o lucro de uma elite que domina o capital e que não se compadece do sofrimento do trabalhador, que é usado e massacrado como forma de atender aos ganhos financeiros.

No entanto, apesar das garantias sociais firmadas através do contrato social em 1988, estamos vivendo e vivenciando, hoje, verdadeira crise de efetivação desses direitos, que, no dizer de Bonavides: “A crise da estatalidade social no Brasil não é a crise de uma Constituição, mas a da Sociedade, do Estado e do Governo; em suma, das próprias instituições por todos os ângulos possíveis.” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2015).

A crise que ora se instala no Brasil nos afigura (na esteia de Bonavides), marcadamente, de ingovernabilidade e inconstitucionalidades. Não se está respeitando o pacto social firmado em 1988, que consagrou direitos fundamentais humanos e sociais, que estão a ser transgredidos e/ou mitigados, na medida em que as reformas propostas lhe tiram o verdadeiro sentido. Entrementes, não se pode olvidar que, numa democracia verdadeira, o poder é exercido pelo povo. Sendo o povo o titular do poder originário, bem como da res publica, é o povo que deve modificar o estado das coisas, se insurgindo contra os avanços neoliberais, valendo-se de mecanismos contra a repressão, a violação de direitos, o arbítrio e a ditadura que se instala. E pelas investidas recentemente patrocinadas, o povo está dando respostas, que tendem a se intensificar.

É a própria história da humanidade, se corretamente colhida e lida, que indica com clareza os caminhos a serem tecidos e trilhados para a reafirmação de direitos conquistados. Numa democracia, onde o poder deve ser exercido pelo povo, vindo do povo e para o povo, a luta pela justiça assume feições com base em mecanismos legítimos postos a serviço do povo.

Como já tivemos oportunidade para abordar (artigo A quebra do Contrato Social firmado na nossa Constituição Socialista), para coibir desmontes de direitos e libertar o povo da opressão, líderes mundiais se valeram do instituto da Desobediência Civil, como direito de resistência e que tem como principal fundamento de existência a restauração do Estado Constitucional Social Democrático.

Nascida com a Revolução Francesa em 1789, quando foi positivada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Desobediência Civil tem sido utilizada quando não restam instrumentos aptos que restabeleçam a ordem normativa-jurídica.

Nesta linha de ilação, é forçoso lembrar que o governo brasileiro, de forma tirânica, não tem sequer observado as determinações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), notadamente no que diz respeito às Convenções que tratam do trabalho decente, das normas mínimas sobre seguridade social e ainda sobre o Diálogo Social, especialmente Recomendação n.º 202, sobre o Piso de Proteção Social de 2012, que, em linhas gerais, reflete claramente as ligações existentes entre a proteção social e o diálogo social, na medida em que a sua adoção foi precedida de um processo tripartido e participativo e, por outro lado, para o desenvolvimento de sistemas de prestações de proteção social são necessárias formas contínuas de diálogo social. O conceito de base de proteção social enfatiza não só a importância de uma estratégia baseada no ciclo de vida para lutar contra a pobreza e a vulnerabilidade, mas também que essa estratégia deve ser determinada à escala nacional. Em ambos os domínios, o diálogo social deve envolver não só os parceiros sociais tradicionais, como elemento central, mas também outras partes interessadas, como as ONGs, as cooperativas e as entidades que asseguram os microsseguros.

Portanto, sem Diálogo Social, sem participação do povo, não resta alternativa senão a promoção da Desobediência Civil, que pode e deve ser tomada como ferramenta contra todas as formas de ilegitimidades e em defesa dos direitos fundamentais. Neste contexto, podemos defini-la como sendo o direito de resistência do povo diante do poder ilegítimo e da lei injusta, com o intuito de restabelecer o bem comum e pôr fim aos conflitos nascidos  pelo desequilíbrio entre as partes (de um lado, o povo e, de outro, empresários e governo aliado).

A despeito de invocar a Desobediência Civil, não é enfadonho relembrar a luta de Henry David THOREAU, (guerra travada pelos EUA contra o México), Mohandas Karamchand GHANDI (Índia contra Inglaterra) e Martin LUTHER KING Jr. (emancipação dos negros nos EUA). Os três expoentes da Desobediência Civil se valeram do instituto como direito de resistência às normas e tratativas impostas contra o povo.

Com fincas na premissa de que a Desobediência Civil é antes uma exigência do Estado Constitucional Democrático, não sendo essencialmente um ato de agressão ao poder ou violência contra as leis, o Prof. Pedro Paulo Christovam dos Santos, da UFMG, ao prefaciar o livro de Fernando Armando Ribeiro (RIBEIRO, Fernando Armando. Conflitos no Estado Constitucional Democrático: Por uma compreensão jurídica da Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004), assim nos esclarece: “O direito à desobediência civil consolida e aperfeiçoa a democracia, garante a justiça do bem comum, manifesta o reconhecimento mútuo das liberdades e o consenso nacional. Constitui-se como denúncia ético-social e resistência técnico-jurídica à legitimidade do Poder e à injustiça da Lei, na ausência de instrumento hábil à solução de violação da obrigação política legitimadora da normatividade do Estado Constitucional Democrático. Como ideia a priori da razão prática, a desobediência civil é uma forma atípica e necessária de participação democrática, uma garantia extrainstitucional e intrassistêmica do Estado Constitucional Democrático.”.

Portanto, não é a simples resistência ao direito positivado, mas contra a ilegitimidade na feitura do mesmo. Não se trata de descumprimento das normas, mas sim da oposição à injustiça elaborada. Trata-se da estabilização da ordem política e normativa que sofre violação diante do poder exercido ilegitimamente e sem respaldo constitucional.

No posicionamento curial de Ribeiro, temos que “Na análise de alguns autores, no curso da História Moderna, um dos sinais de solidez democrática é a ‘institucionalização da resistência’, vale dizer, a incorporação ao ordenamento jurídico de mecanismos de protesto diante de normas consideradas injustas, sem precedente em sistemas anteriores. Alguns direitos, como a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião e de associação, e alguns mecanismos jurídicos de garantia dos direitos, como o recurso de amparo, ou de próprios recursos atinentes ao controle de constitucionalidade, seriam exemplos desse processo.”. (RIBEIRO, ob. citada, 2004).

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Revelando-se a Constituição Federal como corpo normativo vivo e garantidor de direitos e instrumento de justiça, temos que “a desobediência civil invoca os princípios das democracias constitucionais, apelando à ideia dos direitos fundamentais ou da legitimidade democrática. A desobediência civil é, destarte, um meio para reafirmar o vínculo entre a sociedade civil e a política (ou entre a sociedade civil e a econômica), quando as tentativas legais de exercício de influência da primeira sobre a segunda tenham efetivamente falhado, tendo se esgotado outras vias.” (COHEN, 1995).

Para o Prof. Joaquim Carlos Salgado, “o poder legítimo não é aquele outorgado pelo povo, como transferência, por ato formal de poucos segundos e que depois desaparece. A legitimidade do Estado está na vontade do povo, que dá origem ao poder, mas está também no exercício do poder, permanente ação do povo na relação de poder, quer através de instrumentos políticos (como plebiscito, destituição, resistência, etc.) quer através de mecanismos administrativos, do que se chama administração participativa, que é um direito fundamental.” (SALGADO, 1998).

Partindo-se da premissa de que a Desobediência Civil é um instrumento válido na democracia, que tende a valorar os ideais de justiça social, é incontestável sua atuação frente a série de proposituras legislativas que se impõem, sem qualquer compromisso com as diretrizes constitucionais traçadas em 1988. Afigura-se assim como um ato consciente e intencional, que fundamentadamente busca a defesa da ordem constitucional que está sendo maculada.

Nesta liça, temos que a GREVE GERAL é, sem sombras de dúvidas, um dos maiores exemplos de aplicação da Desobediência Civil. Recorrendo-nos mais uma vez a Ribeiro, temos que: “Há várias formas sob as quais a desobediência civil pode apresentar-se. A primeira delas é a pressão, caracterizada pelo objetivo de provocar a autoridade competente para perpetrar a mudança visada pela ação desobediente. Pode também apresentar-se como confrontação, a qual traduz também uma forma de pressão, que todavia persegue a eficácia de maneira mais direta e se faz descrente quando à resposta das autoridades no sentido de modificar-se a norma tida como injustiça.” (RIBEIRO, ob. citada, 2004).

Desta forma, temos que a GREVE GERAL, que, no meu entender, abrange todas as categorias de trabalhadores (inclusive policiais civis e militares), além de não se sujeitar aos limites impostos para continuidade dos serviços públicos (30%), que deve ser associada à manifestação popular, conjuga as duas formas citadas por Ribeiro: pressão e confrontação, com validade acobertada pela Constituição Socialista de 1988, notadamente conforme o parágrafo único do seu art. 1º ("Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição"), bem como o rol extenso de direitos e garantias fundamentais dispostos no texto magno, que protegem o povo contra o despotismo e o vilipêndio de suas garantias sociais que tomam o ser humano como detentor do direito a uma existência digna. 

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Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe”, Procuradora de Estado, Advogada, ex-Diretora Jurídica da Alagoas Previdência. Diretora Nacional de Previdência Social da Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST) e da Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB). Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA (a melhor da América Latina e a 51ª primeira do mundo), Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORENO, Rosana Colen. Fundamentos constitucionais da desobediência civil como instrumento do direito de greve. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6266, 27 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64316. Acesso em: 2 nov. 2024.

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