Ativismo judicial

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3.  ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL  

O termo ativismo judicial, foi utilizado pela primeira vez pelo historiador americano Arthur Schlesinger, com a publicação de um artigo na revista americana Fortune, numa reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos no New Deal. Na ocasião, o historiador narra a postura tomada, naquele período, por alguns juízes da Suprema Corte, que em dadas ocasiões, se furtaram de enfrentar casos essenciais à sociedade.[19]

No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, e os acontecimentos dos já mencionados problemas de ordem estrutural dos demais poderes (tópico anterior), surgiu o fenômeno do ativismo judicial.

Luis Roberto Barroso[20] conceitua o ativismo como uma postura adotada pelo magistrado com relação à interpretação das leis e da Constituição, a qual possibilita sua ampliação sobre o alcance das normas decorrentes, sobretudo, de possível retraimento do papel do Poder Legislativo.

Vanice Regina Lírio do Valle[21], em sua obra “Ativismo Juridicional e o Supremo Tribunal Federal”, apresenta cinco concepções de ativismo judicial: procedimento que faculta aos magistrados legislarem; contestação de atos constitucionais oriundos de outros poderes; decisões que se desviam dos cânones de inferência das normas; julgamentos com fins predeterminados e estratégia a fim de não recorrer aos precedentes.

José de Ribamar Ribeiro Soares[22] utiliza a expressão “o juiz como protagonista público”, para conceituar o ativismo judicial.

Dimitri Dimoulis[23], busca explicar o surgimento do fenômeno: 

(...) afirma-se que a principal característica da experiência jurídica brasileira após a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi o fortalecimento do Poder Judiciário, segundo uma tendência que se manifesta em vários países, mas adquiriu particular intensidade no Brasil. O Judiciário concretiza a Constituição, aplicando-a diretamente em casos concretos, de acordo com aquilo que os Tribunais consideram como conteúdo dos princípios constitucionais.  Isso criou o referido protagonismo do Poder Judiciário, simbolizado pela recente midialização do Supremo Tribunal Federal, cuja atuação cotidiana tornou-se notícia central, sendo frequentes reportagens e entrevistas sobre os posicionamentos políticos e até mesmo sobre a vida privada de seus integrantes.

Essa mudança no equilíbrio entre os poderes estatais tornou a atividade desenvolvida pelo Judiciário mais próxima da atuação do legislador positivo. O Judiciário muitas vezes supre lacunas deixadas pelo legislador ou até decide contrariamente ao estabelecido nos textos legais, suprindo também omissões do Legislativo. Temos uma situação, rotulada de ativismo judicial, que recebe os aplausos de grande parte da doutrina nacional, sendo minoritárias as críticas.  

O ativismo judicial se expressa no Brasil por diversas linhas de decisão, cite-se como exemplo: aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto; declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador; imposições de condutas ou abstenções ao Poder Público, tanto em casos de inércia do legislador, como no de políticas públicas ineficientes.[24]

O ativismo judicial vem para tentar suprir casos em que não houve edição ou complementação de normas que assegurem os direitos fundamentais, passando a escolher e implementar diversas políticas públicas.

O Supremo Tribunal Federal, em Sede de Arguição de Descumprimento Fundamental, ADPF 45, já fixou orientação no tocante a possiblidade de tal controle pelo Judiciário. Confira-se:

Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederam com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível, consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético – jurídico – , a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusado pelo Estado.[25]

Assim, a partir do momento em que o Administrador opta pela inércia, a Administração Pública se sujeita ao controle do Poder Judiciário.[26]

Os críticos ao Ativismo Judicial aduzem que o Poder Judiciário pode transbordar o núcleo essencial de sua função, transformando-se em uma espécie de legislador concorrente.

Ocorre que, admitir um intérprete engessado, que apenas aplica o fato à norma, sem a análise minuciosa que as peculiaridades que um dado caso concreto necessita, é o mesmo que pacificar que a lei é pronta e acabada e não atende aos reclamos da sociedade, uma vez que esta evolui e àquela não.

O intérprete, em vez de determinar o sentido objetivo do texto, passaria a reproduzir fórmulas antigas, esquecendo-se das variações compostas pelo momento histórico e circunstâncias sociais, aplicando a fria letra da lei aos casos concretos, sem adaptar às normas as finalidades humanas, tão somente reproduzindo e aplicando textos prontos, ou agindo por meio de ideias pré-concebidas.[27]

O aplicador do direito não deverá apegar-se exacerbadamente à norma, de forma a pautar-se, no momento da aplicação, na estática forma escrita da lei, sem contextualizá-la com o momento presente, deixando, desta forma, de analisar a situação concreta e real necessidade humana. Mas também não deverá deixar-se levar por suas pré-concepções. Porém, tal equilíbrio mostra-se distante da realidade jurídica, eis que sempre o jurista irá tender para um dos dois lados, sendo-lhe difícil quedar-se no centro da corda bamba.[28]

Do exposto, de se concluir que a função do intérprete, não é o de legiferância, mas o de aplicação de uma interpretação bem pautada, analisada e alicerçada, diante das omissões legislativas.


4. ATIVISMO JUDICIAL COMO PILAR DE EFETIVIDADE DA RESOLUÇÃO DA CRISE DEMOCRÁTICA COM BASE NA FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS 

4.1. Algumas atuações ativistas pelo STF: 

4.1.1 ADPF 347: 

O Partido Socialista e Liberdade (PSOL) ajuizou ADPF (347) pleiteando ao STF a declaração de que a situação atual do sistema penitenciário brasileiro tem violado preceitos fundamentais da Constituição Federal e, em especial, direitos fundamentais dos presos. Requerem adoção de providências, dentre elas, que o STF reconheça a existência do "Estado de Coisas Inconstitucional".

Carlos Alexandre de Azevedo Campos[29] assim explana sobre o Estado de Coisas Inconstitucionais: 

Quando declara o Estado de Coisas Inconstitucional, a corte afirma existir quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais, decorrente de atos comissivos e omissivos praticados por diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia continuada dessas mesmas autoridades, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público podem modificar a situação inconstitucional. Ante a gravidade excepcional do quadro, a corte se afirma legitimada a interferir na formulação e implementação de políticas públicas e em alocações de recursos orçamentários e a coordenar as medidas concretas necessárias para superação do estado de inconstitucionalidades. 

Assim, a violação massiva dos direitos fundamentais, agravada pela inércia das instituições legislativas e administrativas em resolver a situação, legitima a atuação ativista do Judiciário para superação do estado de inconstitucionalidades: 

No entanto, o Plenário entendeu que o STF não pode substituir o papel do Legislativo e do Executivo na consecução de suas tarefas próprias. Em outras palavras, o Judiciário deverá superar bloqueios políticos e institucionais sem afastar, porém, esses poderes dos processos de formulação e implementação das soluções necessárias.[30]  

Pois bem. Conhecendo-se bem as críticas que o encarceramento merece, acredita-se que os princípios de sua progressiva humanização e liberalização interior são a via de sua permanente reforma.

A prisão na forma hoje utilizada é uma instituição que se comporta como uma verdadeiramente máquina deteriorante: superpopulação carcerária, alimentação paupérrima, estabelecimentos sem infraestrutura mínima necessária, material e humana para o cumprimento da pena, falta de higiene, salubridade e assistência sanitária.

O deputado Federal Domingos Dutra, relata o que apurou no decorrer da CPI do Sistema Carcerário. Vejamos: 

Nas unidades prisionais diligenciados, constatou-se que os estados não fornecem uniformes, colchões, lençóis ou cobertores, que são levados pelas famílias. Também não fornece material de higiene, que igualmente são levados pelos familiares ou comprados nas mercenarias das cadeias a preços superfaturados. Os estabelecimentos são escuros pela economia de energia elétrica. As celas e outros espaços de uso dos presos mais parecem masmorras, pelo estado de sujeira e mau cheiro. A falta de água é frequente em várias unidades e racionada em outros. Como racionamento, é distribuído um limite de 6 litros por cela ao dia. Essas celas são ocupadas, em média, com 30 homens. No verão, a temperatura chega aos 35 graus. Os banhos são com água sem aquecimento, para a economia de energia elétrica. Em geral, os estabelecimentos são insalubres, sem a mínima condição de abrigamento humano. Ademais, já se chegou ao ponto (e pasmem) de presos passarem a ser encarcerados em contêineres (recipiente destinado originalmente ao acondicionamento e transporte de mercadorias). Retrato fiel da coisificação do ser humano![31]  

Lógico que a cadeia não deve ser concebida como um “hotel cinco estrelas”, mas deve-se observar a dignidade da pessoa humana (princípio reitor da estruturação dos direitos humanos e fundamentais).

A pena deve ser cumprida com o rigor que a própria condenação à privação de liberdade impõe e sem regalias que o dinheiro compra, todavia o condenado merece receber tratamento digno.

Tratamento humanitário não é privilégio, é dever do Estado assegurar a tantos quantos mantém sob sua custódia.

Na atual situação, a superpopulação carcerária não permite que haja uma seleção dos internos estabelecida pela natureza e gravidade dos crimes praticados, obrigando o condenado a conviver diretamente com assaltantes profissionais, sequestradores, traficantes perigosos, fazendo com que ele ingresse numa “escola de vida”, que não regenera, mas lhe aprimora em técnica criminal. Isto dificulta qualquer trabalho, por maior boa vontade que exista por parte da direção e funcionários de um estabelecimento penal.

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É uma falácia dizer que uma unidade prisional possa funcionar como um reintegrador social. Quiçá os dispositivos de monitoramento. Fala-se muito em “reeducando”, quando a maior parte dos presos nunca teve educação e sempre viveu na marginalidade social. Ou do contrário, se rico, sempre foi hiperssocializado, não se tendo que falar em ressocialização.

Mougenot Bonfim, em sua obra Direito Penal da Sociedade, ao falar sobre os ricos e os pobres e as diferenças de tratamento que são dadas a eles, assim assevera: “O rico é hiperssocializado e não teria porque ser readaptado na sociedade a qual comanda; e o pobre, dela sempre foi excluído, nunca integrou-se verdadeiramente, então como o cárcere o ‘reintegraria’ a algo que sempre esteve alheio?”.[32]

Portanto a prisão não educa, nem reeduca. A prisão existe como um instituto de segurança social. E se dentro do próprio sistema prisional o Estado não consegue reinserir socialmente estas pessoas, imagine com elas expostas a rua sem qualquer política de reinserção social? Ou seja, os dispositivos eletrônicos também são meros paliativos que não resolvem os problemas, apenas os minoraram por algum tempo.  

Não existe por parte do governo interesse em investir no sistema penitenciário, nem da população em cobrar tal investimento. Cabe à prisão “guardar” os criminosos para proteger a sociedade. Este desinteresse leva: à demora do sistema; à superpopulação carcerária; ao número insuficiente de funcionários, acarretando descrença no próprio sistema e na Justiça, gerando um círculo vicioso, fato este que impede as mínimas tentativas de mudanças que, provavelmente, seriam benéficas se postas em práticas.

Não basta aplicar a pena, é imprescindível que ela seja rigorosamente cumprida. Uma pena mal cumprida é igual a um curso mal ministrado. Um condenado mal tratado é semelhante a um aluno mal formado. Se este sai um mau profissional, aquele, com toda certeza, porque já ingressou com vício e, com ele conviveu, sairá desprovido de todo e qualquer valor, até mesmo humano.  

Atualmente o condenado tem a certeza de que não cumprirá corretamente e integralmente a pena imposta.

Diante dessa realidade, as penas estão perdendo o seu caráter intimidativo.

Ainda, o sistema prisional é desprovido de pessoas habilitadas e equipamentos adequados para orientar e acompanhar o sentenciado durante o cumprimento de sua pena.

Como não se dispõe de pessoal e tampouco material para tal fim, conclui-se que, tão logo seja a pena cumprida, o egresso é “devolvido” a sociedade sem qualquer orientação e sem qualquer tipo de acompanhamento. Pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que o retorno, da quase totalidade dos egressos à sociedade, se dá de forma muito pior, comparando-a com a do seu ingresso no presídio.

Enquanto não houver preocupações efetivas e um enfrentamento mais direto dos problemas que norteiam o sistema penitenciário e enquanto não houver posicionamentos mais realistas acerca do assunto, nada de concreto será efetivado, mais e mais medidas paliativas serão criadas e poderão resultar em um caos sem fim e resolução.

Enquanto os problemas sociais foram tratados como problemas penais, dificilmente algo de concreto e efetivo poderá ser realizado.

No caso em análise, cabe agora ao Judiciário a missão de pensar novas políticas públicas, coordenar os demais poderes e tirar da inércia também a sociedade, promovendo debates e novas ações.

Enfim, cabe ao Judiciário incentivar a retomada dos demais poderes de seu papéis, com a consequente quebra de paradigmas e efetiva prioridade, por parte do Estado, ao fortalecimento das políticas públicas de atendimento à sociedade, tudo, como forma de reverter a trajetória do caminho escolhido por aqueles que decidem entrar em conflito com a lei.

4.1.2 Transporte escolar. Implementação de políticas públicas:

O Ministério Público, buscando provimento do Judiciário a fim de que o Estado-membro desenvolvesse política pública de transporte escolar, ajuizou Ação Civil Pública em desfavor do Estado da Bahia, o qual, em defesa, argumentou ocorrência de violação ao princípio da separação de poderes e também invocou o princípio da reserva do possível.

Assim, o STF, no agravo regimental em recurso extraordinário com agravo 728.255 BA, decidiu: 

Direito Constitucional e administrativo. Ação Civil Pública. Educação. Transporte de alunos. Implementação de políticas públicas. Princípio da separação de poderes. Ofensa não configurada. Acórdão recorrido publicado em 13.8.2008. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de Poderes. Precedentes. Agravo regimental conhecido e não provido. (STF, Agravo Regimental em Recurso Extraordinário com Agravo: 728255 BA, relatora: Ministra Rosa Weber, Data de julgamento: 06/06/2014, Primeira Turma, DJe – 122 DIVULG 23-06-2014, PUBLIC 24-06-2014). (Grifou-se).

Com relação ao princípio da reserva do possível a relatora, Ministra Rosa Weber, fundamentou:

Não socorre ao agravante o argumento de sujeição ao princípio da “reserva do possível”, porquanto o Supremo Tribunal Federal entende que não é permitido ao Poder Público invoca-lo com o propósito de inviabilizar a implementação de políticas públicas estabelecidas pela própria Constituição Federal, como ocorre no presente caso (p.4).

No caso em comento, visualiza-se que o Judiciário ao compelir o Estado – membro a implementar política pública direcionado ao transporte escolar, visa garantir direito fundamental de prestação de educação à criança e adolescentes.

Isto porque, segundo preconizam os artigos, 208, VII, da Constituição Federal e 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente, é defeso a qualquer dos entes federativos se exonerar da responsabilidade de prestar a educação e, nesse conceito, se compreende também a oferta de transporte escolar gratuito de crianças e adolescentes, quando não existe escola pública próxima de sua residência. (TJBA, RE nº 293412, fls. 444-5).

Ademais, o Estado não pode invocar a cláusula do reserva do possível com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais.

Portanto, cabível ao Poder Judiciário, quando da omissão no desempenho adequado e satisfatório de políticas públicas voltadas ao resguardo da dignidade da pessoa humana, em sua função típica de preservação da Constituição Federal, a atuação jurisdicional positiva – como ocorreu no caso em comento – como forma de solucionar a lesão a direito fundamental que estava ocorrendo.  

4.1.3 Supremo julga inconstitucional lei cearense que regulamenta vaquejada (ADI 4983): 

A Lei 15.299/2013, do estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado, foi julgada inconstitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, através da ADI 4983.

Para o relator, Ministro Marco Aurélio, a lei impugnada não encontrava respaldo no Texto Maior, violando o disposto no artigo 225, § 1º, inciso VII, da Carta. Reportou-se a estudo da Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba, revelador de lesões e danos irreparáveis sofridos por animais utilizados na atividade. Afirmou, ante os dados empíricos, implicar a vaquejada tratamento cruel e desumano às espécies animais envolvidas.

Usando a técnica da ponderação para resolver conflito específico entre manifestação cultural e proteção ao meio ambiente, ponderou pela prevalência da norma constitucional de preservação do meio ambiente e, respectivamente, correspondente imposição de limites jurídicos às manifestações culturais, ante a crueldade dispensada aos animais.

No início do julgamento da ação, o procurador-geral da República, Rodrigo Janota, afirmou que o STF deveria ter posicionamento contramajoritário para vencer situações consolidadas pelo tempo, citando como exemplos a farra do boi e rinhas de galos. Para ele, “a crueldade intrínseca a determinada atividade não desaparece nem deixa de ser ética e juridicamente relevante pelo fato de uma norma jurídica a rotular como ‘manifestação cultural’”.

Realmente, não é porque uma norma foi rotulada de “manifestação cultural”, que os direitos dos animais e o princípio da sustentabilidade do meio ambiente devam ser violados.

No caso em comento, portanto, o ativismo judicial foi um fenômeno efetivo de preservação de práticas sustentáveis.

Senão vejamos:

A sustentabilidade pode ser conceituada como: 

“(...) um princípio sistêmico a orientar as decisões judiciais e a legitimar a atuação criativa do juiz, principalmente se considerada a responsabilidade do homem com as gerações futuras. Assim, a atuação jurisdicional é fundamental para o fomento de ações sustentáveis, conformando a autonomia, de certa forma, às metas de sustentabilidade”. [33]  

Segundo Fiorillo[34]:  

O princípio de desenvolvimento sustentável tem por conteúdo a manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje a nossa disposição.  

Portanto, a sustentabilidade pode ser alcançada com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico.

Na 1ª. Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente (Conferência de Estocolmo), realizada de 05 a 16 de junho de 1972, o principal objeto de discussão foi o limite de exploração dos recursos naturais e do meio ambiente em prol do desenvolvimento econômico. O ápice da Conferência foi a criação do Programa da Organização das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, que estabelece um sistema próprio para proteção do meio ambiente propiciando o desenvolvimento sustentável.[35]

O segundo ato ambiental de direitos humanos é denominado de “Relatório Brundtland” – em homenagem a Primeira Ministra da Noruega, Gro Blrundtland, que chefiava, na época a Comissão Municipal sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – o qual se pautou pela noção de desenvolvimento sustentável, trazendo também, noções de preservação do equilíbrio global, avaliação do custo – benefício das medidas, utilização equitativa dos recursos, dentre outros.[36]

A legislação ambiental brasileira, na Lei 6.938/81 (Política Nacional de Meio Ambiente), em seu art. 4º dispõe: “A Política Nacional do Meio Ambiente visará à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”, de acordo com seu inciso 1º”.

Por sua vez, a declaração do RIO/92, no seu princípio n° 4: "Para se alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção do meio ambiente deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente em relação a ele".

Ainda, o artigo 170, VI, da Constituição Federal dispõe:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003).

Em outras palavras, o país não só pode, como deve se desenvolver econômica e socialmente desde que, encontre um ponto de equilíbrio entre as atividades econômicas e culturais e a utilização racional do meio ambiente, a fim de preservar o meio ambiente para a presente e as futuras gerações.

Isto porque, algumas atividades econômicas e culturais causam impactos como efeito estufa, poluição das águas, extinção das espécies, erosão do solo, que reduzem o potencial do meio ambiente.

Por isso, faz-se necessário uma conscientização universal, em que todos estejam compromissados com o desenvolvimento sustentável e preservação do meio ambiente para as gerações futuras.   

Explica Silva[37], que o conceito de meio ambiente traz três aspectos distintos:

I– meio ambiente natural, ou físico, constituído pelo solo, a água, o ar atmosférico, a flora, enfim, pela interação dos seres vivos e seu meio, onde se dá a correlação recíproca entre as espécies e as relações destas com o ambiente físico que ocupam.

II- meio ambiente artificial, constituído pelo espaço urbano construído, consubstanciado no conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral: espaço urbano aberto);

III- meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que, embora artificial, em regra, como obra do homem, difere do anterior (que também é cultural) pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou;

Dentre os atos ambientais de direitos humanos, importante mencionar, ainda, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em 15 de Outubro de 1978 pela Liga Internacional, Ligas Nacionais e pelas pessoas físicas que se associam a elas, foi aprovada pela organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e posteriormente, pela Organização das Nações Unidas (ONU) [38]. Nela se preveem princípios a serem obedecidos no respeito aos direitos dos animais, a título de exemplo, entre outros:

Art. 1º - Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência.  

Art. 2º

1. Todo o animal tem o direito a ser respeitado.

2. O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais.

3. Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem.  

Art. 3º

1. Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis.

2. Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia.

(...) 

Art. 8º

1. A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação.

2. As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas. 

Art. 10º

1. Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem.

2. As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal. 

No Brasil, o direito dos animais estão protegidos constitucionalmente no artigo 225, § 1º, inciso VII.[39]

De todo o exposto, pode-se concluir que, o Supremo, ao julgar inconstitucional a lei cearense que regulamenta vaquejada (ADI 4983), o fez visando a efetivação dos direitos dos animais e do princípio do desenvolvimento sustentável do meio ambiente natural.

Isto porque, não se trata apenas de apenas uma questão de proteger a vida silvestre e seus ecossistemas, a conservação do meio ambiente vai muito além, trata-se de preservar as condições de sobrevivência da espécie humana.

Em que pese todo esforço do STF, é de se mencionar que a EC 96/2017 acrescentou ao 7º do artigo 225 da CF, o qual passou a prever:

“não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 96, de 2017)”.

O real objetivo desta emenda foi o de superar decisão aqui discorrida.

Trata-se do denominado fenômeno “efeito blacklash” do ativismo judicial: 

o efeito backlash do ativismo judicial, que é uma espécie de efeito colateral das decisões judiciais em questões polêmicas, decorrente de uma reação do poder político contra a pretensão do poder jurídico de controlá-lo. O processo segue uma lógica que pode assim ser resumida. (1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão.[40] 

No caso em análise, de se concluir ter havido um retrocesso jurídico que culminou por criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, uma vez que houve a desconsideração dos direitos dos animais e do princípio do desenvolvimento sustentável do meio ambiente natural em prol de direito a cultura (que apesar de ser um direito, ao ser ponderado com relação aos outros, protegeria bem menos aquilo que àqueles visam proteger).

No entanto, é de se refletir se a EC 96/2017 não seria inconstitucional.

Isto porque, a proibição de que os animais sofram tratamento cruel (225, §1º, VII da CF) enquadra-se em uma garantia individual, e portanto, cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, IV).

No entanto, o que nos resta, é aguardar as cenas do próximo capítulo (do STF) acerca do tema.  

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Sobre a autora
Daniela Costa Queiróz Medeiros

Advogada. Especialista em Direito e Processo Contemporâneo pela Faculdade de Telêmaco Borba (FATEB). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Currículo em: http://lattes.cnpq.br/7387827966250219

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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