6 A DESCONSIDERAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL
6.1 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO CÓDIGO CIVIL
Diante do que foi aduzido até aqui, nota-se que há perfeita consonância entre a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica e os princípios que sustentam a Lei n.º 10.406/02, o Código Civil.
MIGUEL REALE (2002), quanto às diretrizes adotadas para a elaboração do então anteprojeto do atual Código Civil, apontou a necessidade de modificação geral do Código Civil de 1916 "no que se refere a certos valores considerados essenciais, tais como o de eticidade, de socialidade e de operabilidade".
O primeiro princípio permite que se recorra "a critérios ético-jurídicos" permitindo "chegar-se à ‘concreção jurídica’, conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa" e também "resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto" (REALE, 2000).
A eticidade para MIGUEL REALE (2000) está baseada "no valor da pessoa humana como fonte de todos os valores".
Nota-se que, tornando o ordenamento um instrumento mais maleável, permite-se uma aproximação maior do ideal de justiça social.
Pode-se suscitar, de outro lado, que um sistema aberto ensejará injustiças, uma vez que, diante de situações idênticas poderão surgir decisões divergentes, máxime quando proferidas por juízes diversos.
Contudo, no sistema fechado que vinha vigendo até então esse mesmo problema já ocorria. Nessa linha, mostra-se válida, ainda que a título de tentativa, a alteração do CC. Aliás, caso não seja adequado, poderá novamente ser alterado, sempre buscando evoluir e, por conseguinte, melhorar, mesmo porque, para acompanhar a evolução social, ordenamentos rígidos se mostram lacunosos.
Voltando aos princípios adotados no novo CC, ressalta o jusfilósofo (2000) que, apesar de o socialismo não ter conseguido vencer, a "socialidade" teria conseguido, fazendo prevalecer valores coletivos sobre os individuais. Trata-se de um ideal que vem em reação ao individualismo que inspirou o CC de 1916.
Por fim, a operabilidade foi buscada com base na lição de JHERING de que o direito deve existir para ser aplicado, e não para confundir e impedir sua execução, conforme esclarece MIGUEL REALE (2000), citando o seguinte exemplo:
"Quem é que, no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer uma distinção nítida e fora de dúvida, entre prescrição e decadência? Há as teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa de outra. Devido a esse contraste de idéias, assisti, uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo negar uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava extinto por força de decadência; e, poucas semanas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se que o prazo era de prescrição, que havia sido interrompido! Por isso, o homem comum olha o Tribunal e fica perplexo. Ora, quisemos pôr um termo a essa perplexidade, de maneira prática, porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado."
Uma simples análise do Código Civil leva à constatação da influência desses princípios também no âmbito das pessoas jurídicas. Iniciando-se pelo art. 422 do referido diploma legal, tem-se que:
"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."
Como é cediço, as sociedades, em regra, são constituídas por contrato. Em uma análise mais ampla, é inquestionável que toda e qualquer pessoa jurídica é instituída por ato de vontade. Daí o art. 113 do Código Civil ampliando ainda mais a aplicação da boa-fé nos institutos de que trata:
"Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração."
Conclui-se, destarte, que a eticidade estará presente sempre que for analisada a utilização da pessoa jurídica. A operabilidade garantirá flexibilidade ao aplicador da lei para a realização de tal análise. E a socialidade fundamentará a proteção da sociedade contra a defesa de interesses particulares egoísticos e escusos.
Sendo certo que é nesse sentido que caminha o ideal perseguido pela legislação civil, as condutas contrárias à esperada justificam a sanção contida no art. 50 do Código Civil:
"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."
A propósito, SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:303) ressalta que a "despersonalização é aplicação de princípio de eqüidade trazida modernamente pela lei."
Vale ressaltar que o fato de o dispositivo em questão mencionar que o juiz "poderá" atribuir efeitos de certas relações a bens dos sócios retrata bem a operalidade, pois deixa uma margem flexível para uma decisão justa conforme o caso apresentado.
6.2 DEFINIÇÃO DAS HIPÓTESES
Quando se analisou o histórico da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica no tópico 2.2, verificou-se que, no Brasil, havia duas correntes sustentando sua aplicabilidade: a subjetiva, fundada no abuso de direito e na fraude; e a objetiva, fundada na irregularidade formal e confusão patrimonial.
Apesar dessa separação (teoria subjetiva e objetiva), o Código Civil enquadrou a confusão patrimonial e o desvio de finalidade como espécies de abuso, conforme se depreende da leitura do art. 50.
Como forma de deixar mais clara a análise do dispositivo, as hipóteses legais serão analisadas separadamente.
6.2.1 ABUSO
No Código Civil, o abuso se apresenta no art. 187 como um ato ilícito consistente no exercício de um direito, por seu titular, que "excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".
MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:129-130) assinala que a abusividade não é uma questão estrutural, mas funcional, de modo que sua caracterização não estaria na constituição da pessoa jurídica, mas na sua utilização.
Assere ELIZABETH CRISTINA CAMPOS MARTINS DE FREITAS (2002:220) que "o abuso de direito deve ser analisado à luz da teoria segundo a qual o Direito possui uma função social ativa que objetiva atingir os fins do Estado, que, antes de tudo, referem-se ao bem-estar da coletividade". E acresce, a seguir:
"De qualquer forma, o posicionamento pátrio dominante é no intuito de que o abuso de direito reflete prática que foge à normalidade, à regularidade com a intenção de causar prejuízo a outrem. Diante de tais metas, além da função social do Direito e de seu próprio conceito (que, de privatístico, hoje tenta harmonizar o privado com o público), não haveria como não ‘revisitar’ o conceito de pessoa jurídica. Devem-se diferenciar o livre-arbítrio e os poderes que o Estado se atribui, mediante a instituição de um ordenamento jurídico."
Anota SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:602) que o problema maior na aferição do abuso é que sua noção seria supra legal.
Embora o eminente doutrinador assim entenda, talvez essa flexibilidade adotada por influência dos princípios sociais do Código, determinando a conduta ética e protegendo a sociedade contra comportamentos egoísticos contrários ao bem-estar social, seja mais adequada do que o rigorismo de um sistema de tipicidade fechada.
Isso porque, apesar da alegada segurança que este sistema propiciava, ele deixava sem solução diversas hipóteses não previstas, conforme já assinalado no tópico 6.1 supra.
6.2.2 FRAUDE
A fraude, segundo SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:489) "é todo artifício malicioso que uma pessoa emprega com intenção de transgredir o Direito ou prejudicar interesses de terceiros".
Uma única ressalva quanto a esse entendimento é a intenção de prejudicar terceiros ou violar o Direito.
O que normalmente ocorre é a busca da satisfação dos próprios interesses. Mesmo quando se tenha em mira um prejuízo a terceiro, isso é feito para um deleite próprio.
Da mesma forma, a violação do Direito é apenas meio, e não o fim em si.
Tendo em vista que o Direito coíbe de certa forma a má conduta, a má-fé, o fraudador busca uma forma de seu objetivo ser alcançado com aparência de não violação da lei.
Aliás, fraude, em sua origem latina, fraudatio, é a "ação de enganar, má-fé". O fraudator, é o "embusteiro, trapaceiro, velhaco" (TORRINHA, 1982, p.347).
A fraude é um instrumento que o indivíduo utiliza para a satisfação de um interesse. Esse instrumento consiste na tentativa de enganar, de fazer passar por lícita ou legítima uma atividade ilícita ou ilegítima, com o objetivo de não ser impedido de alcançar seu interesse, ou ser mantido numa situação de satisfação.
A fraude à lei é uma espécie de fraude em que se tenta fazer parecer legal o que é ilegal. É a fraude utilizada no campo jurídico.
Note-se que, nessa linha de raciocínio, a simulação é uma espécie de fraude à lei.
6.2.3 DESVIO DE FINALIDADE
O desvio de finalidade pode ser analisado sob dois prismas, conforme assinalado no tópico 2.1 supra.
No primeiro deles, confronta-se com os fundamentos do instituto da personalização, para que se constate se é ou não útil, no caso concreto, a separação patrimonial. O desvio de finalidade sob esse ponto de vista se confunde com o abuso acima tratado, nos tópicos 6.2.1 e 2.1.
No segundo, toma-se o objeto social da pessoa jurídica para que se analise se ele está ou não sendo atendido, consoante análise de FABIO KONDER COMPARATO (1976:292), para quem "essa importância fundamental do objeto social, enquanto causa do negócio, que constitui a chave de interpretação da problemática societária, de modo geral".
6.2.4 CONFUSÃO PATRIMONIAL
Se há confusão patrimonial, a situação é tratada como se houvesse um único patrimônio.
Note-se, contudo, que, não se sabendo onde começa e onde termina determinado patrimônio, mesmo aplicando a desconsideração da personalidade jurídica, pode ocorrer que o patrimônio de um dos envolvidos nem venha a ser comprometido.
Ora, se não se sabe de quem é o patrimônio, não se pode dizer que é o patrimônio do sócio que foi atingido ou se é o patrimônio da pessoa jurídica.
Assim, a desconsideração vai ficar no nível do tratamento, e não no da aplicabilidade prática.
Nada obstante, segundo FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:362), se o próprio sócio, que é beneficiário da separação patrimonial e correspondente limitação de responsabilidade, não trata o patrimônio social como se fosse alheio, não se justifica manter a autonomia nas relações com terceiros.
7 ALGUMAS FIGURAS PARALELAS NO TRATAMENTO DA PESSOA JURÍDICA
Conforme explicitado no tópico 2.1 supra, em algumas hipóteses o ordenamento jurídico atribui responsabilidade ao membro ou sócio de modo a proteger os interesses de terceiros, independentemente de a pessoa jurídica ter sido utilizada de maneira abusiva.
Embora se possa dizer que nesses casos se está de certa forma "desconsiderando" o fato de os sócios não terem participado da relação jurídica original, é certo que isso não necessariamente implicará aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita.
Para esclarecer essas assertivas, serão analisados abaixo apenas alguns casos previstos no ordenamento para apontar as divergências em relação à doutrina desconsideração da personalidade jurídica.
Como o art. 50 do CC é a disposição que mais se aproxima do instituto, e tem ampla abrangência, seja com relação aos danos causados, seja no que pertine ao tipo de pessoa jurídica, ele será usado como parâmetro de comparação.
7.1 A SOLIDARIEDADE DENTRO DO GRUPO ECONÔMICO NO DIREITO DO TRABALHO
Costuma-se apontar o § 2.º do art. 2.º da CLT, como um exemplo no ordenamento brasileiro de previsão da desconsideração da personalidade jurídica (JUSTEN FILHO, 1987: 102; ALMEIDA, 2003: 189; FREITAS, 2002: 274). Eis o que dispõe o referido dispositivo legal:
"Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
[...]
§ 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas."
Esse dispositivo regula uma hipótese de relativização do princípio da autonomia patrimonial. Não cuida, todavia, de aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.
Tem-se, em realidade, simples imputação de solidariedade entre entes (TOMAZETTE,2002).
Vale lembrar que, de acordo com o art. 265 do CC, "a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes." Tem-se, portanto, simples caso de solidariedade resultante da lei.
O objetivo da norma insculpida no principal diploma trabalhista é assegurar um equilíbrio na relação empregatícia fundado no seguinte preceito: se todo o grupo econômico obtém, ainda que indiretamente, proveitos decorrentes da atividade do trabalhador, deve, por outro lado, responder por sua remuneração.
Com isso, na linha da ideologia adotada no Direito do Trabalho, apenas se pretendeu proteger o empregado (JUSTEN FILHO, 1987:106).
Tendo em vista que a aludida norma já assegura a solidariedade dos entes do grupo econômico, nem se cogita da aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita (COELHO,2002:43).
Importante aspecto a ser ressaltado é o fato de que a CLT nem cogita de fraude ou abuso da pessoa jurídica, ou mesmo de confusão patrimonial, para que torne solidários os componentes do grupo econômico.
Caso não haja um grupo econômico, mas tão-somente uma pessoa jurídica isolada, será possível aplicar o art. 50 do CC para responsabilizar seus sócios pelos direitos do empregado, caso comprovado o abuso da personalização.
7.2 A RESPONSABILIDADE DE TERCEIROS NO DIREITO TRIBUTÁRIO
Outro dispositivo mencionado como representando hipótese de desconsideração é o art. 134, VII, do CTN (FREITAS, 2002:275).
Esse dispositivo atribui responsabilidade solidária aos sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas, em relação aos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis, na hipótese de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação tributária pelo contribuinte. Acresce o parágrafo único do art. 134 que, quanto às penalidades, a solidariedade só se aplica àquelas de caráter moratório.
Em primeiro lugar, deve-se definir o que seja sociedade de pessoas.
Para RUBENS REQUIÃO (1995:261-2), quando se utiliza a estrutura econômica como critério para classificar as sociedades, elas se dividem em:
"sociedades de pessoas, constituídas em função da qualidade dos sócios – "porque o que forma uma sociedade somente se liga com pessoa de sua eleição" (Tít. n.º XXV, 5, Institutas de Justiniano) [...] e sociedades de capitais, constituídas tendo em atenção preponderantemente o capital social."
No mesmo sentido, SÉRGIO SÉRVULO CUNHA (2003:236) aponta que na composição das sociedades de capitais "são irrelevantes critérios pessoais", ao passo que, nas de pessoas, "prevalecem critérios pessoais na escolha dos sócios e nas suas relações".
Ressalvados os casos que a lei eventualmente tenha determinado expressamente em qual dos tipos acima determinada sociedade esteja enquadrada, na prática essa classificação deverá ser feita analisando o caso concreto.
Quando RUBENS REQUIÃO (1995:262), por exemplo, estabelece que seriam sociedades de pessoas as limitadas, esquece-se de que estas podem assumir caráter de sociedade de capitais.
Esclarece, a propósito, FÁBIO ULHOA COELHO (2002:25) que "as sociedades em nome coletivo, comandita simples e limitada podem ser de pessoas ou de capital, de acordo com o previsto no contrato social; as sociedades anônimas e em comandita por ações são sempre de capital."
Feita essa análise, segue-se que, para ser considerado como responsável solidário, o sócio deve, na liquidação da sociedade de pessoas, ter praticado conduta comissiva ou omissiva que torne impossível a exigência do tributo.
Assim deve ser, uma vez que, se ele respondesse mesmo quando não tivesse dado causa à impossibilidade, seria irrelevante mencionar sua omissão ou intervenção.
Contudo, o que ocorrerá na hipótese de haver um órgão, não ocupado por sócio, que seja responsável pelo recolhimento de tributo na liquidação, mas falte com seu dever, quando poderia tê-lo cumprido?
Nesse caso, o sócio não interveio. Será necessário perquirir se o sócio tinha o dever legal de agir para impedir a infração e se poderia ter agido no caso concreto, de modo a verificar a caracterização de sua omissão.
Deve-se ater à premissa segunda a qual a responsabilidade depende de imposição legal, uma vez que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, nos termos do art. 5.º II da CR.
Por isso, não tendo o órgão efetuado recolhimento de tributo não resultante de infração que tenha cometido, não será aplicável o art. 134 do CTN.
Mas como fica a obrigação tributária não adimplida?
O não recolhimento de tributo constitui ato ilícito, conforme art. 186 do Código Civil.
A sociedade é responsável pelos atos de seus órgãos, conforme art. 932, III, do CC, ainda que não haja culpa de sua parte, nos termos do art. 933 do CC.
Sendo certo que o tributo é devido pela sociedade e não pelo órgão, ela deverá efetuar o recolhimento. Todavia, os acréscimos decorrentes da infração poderão ser cobrados do infrator, na hipótese de culpa ou dolo deste, na forma do art. 934 do CC.
E se não for possível exigir da sociedade o tributo não decorrente de infração do órgão? Será permitido cobrar do sócio?
Se essa impossibilidade não decorrer de uma omissão ou ação do sócio, não se poderá cogitar da solidariedade de que trata o art. 134 do CTN, ressalvada a responsabilidade decorrente da natureza da sociedade (limitada ou ilimitada).
Porém, caso o tributo seja decorrente de infração legal, contratual ou estatutária, o infrator responderá pessoalmente, e não solidariamente, nos termos do art. 135 do CTN, verbis:
"Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado."
Novamente, tem-se presente hipótese legal de flexibilização da autonomia da pessoa jurídica, mas não necessariamente de aplicação da doutrina da desconsideração (JUSTEN FILHO, 1987:112).
Nessa linha é o entendimento de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:520) para quem, no caso do art. 134, VII, do CTN, não há quebra no princípio da separação entre pessoa jurídica e seu membro. Com muito mais razão nos casos de responsabilidade dos diretores em caso de comportamento doloso ou culposo ou que viole diretamente a lei ou os estatutos sociais, pois aqui há simples imputação. Isso porque, quando age desta maneira, não age como órgão, salvo a questão da aparência (1979:520).
Com efeito, certos atos, pela sua grave discrepância em relação ao objeto social, ou pela evidente ausência de poderes para representação da sociedade, nunca poderiam ser atribuídos à pessoa jurídica. Por conseguinte, ela não poderia servir de instrumento para fraudes ou outras formas de abuso.
Somente nos casos em que a própria pessoa jurídica figura na relação é que se deve perquerir se os efeitos desta devem ou não ser imputados aos seus membros.
Deve-se lembrar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nasceu diante do impasse decorrente da impossibilidade de se responsabilizar o sócio ou membro da pessoa jurídica por atos praticados por eles em nome desta. Esta impossibilidade existia em razão do radicalismo com que surgiu o princípio da separação entre a pessoa jurídica e seus membros, o qual impregnou a legislação desde então.
Nessa linha, constata-se que o art. 135 do CTN retrata um aspecto fundamental no tratamento da pessoa jurídica: somente a prática de atos legais, decorrentes de seus fins, pode ser imputada a ela.
Com isso não se quer dizer que a pessoa jurídica não responda pelos atos de seus agentes. Nem sempre quem pratica determinado ato responde por suas conseqüências. Da mesma forma, pode ocorrer a hipótese em que alguém, embora não tenha realizado algum ato, tenha de responder por ele.
A título de exemplo, pode-se citar a situação em que um menor causa um dano, pois são seus pais que respondem pela reparação (art. 932, I e art. 934 do CC).
Feita essa distinção entre sujeição ativa na realização de ato de um lado; e responsabilização de outro, nota-se que, na hipótese do art. 135 do CTN, o legislador optou por resguardar a pessoa jurídica.
Nada obstante, se o órgão desta, ao praticar um ilícito, trouxer proveito para a pessoa jurídica, esta também poderá vir a ser responsabilizada, conforme o caso.
Imagine-se a situação em que um administrador, violando proibição expressa do ato constitutivo, adquire empréstimo para a pessoa jurídica. O imposto sobre esta operação de crédito é devido pelo referido agente, nos termos do art. 135 do CTN.
Entretanto, quem deverá pagar pelo empréstimo? E se a pessoa jurídica utilizou o dinheiro para pagar dívidas próprias?
Dependendo da análise do caso concreto, a pessoa jurídica poderá ser responsabilizada pelo pagamento da quantia utilizada.
Assim, verificada a aplicação dos artigos 134 e 135 do CTN, pode-se realizar uma comparação com o disposto no art. 50 do CC.
Nota-se que a hipótese de prática de ato com excesso de poderes prevista no caput do art. 135 do CTN restringe-se à responsabilidade por obrigações tributárias que resultem de ato realizado com excesso de poderes, ao passo que o art. 50 abrange todas as relações resultantes do abuso.
Além disso, enquanto no CTN a imputação da responsabilidade é peremptória, no CC é facultado ao juiz decidir se aplica ou não a desconsideração.
De qualquer maneira, em ambos os casos há o uso indevido da personalidade jurídica, bem como a imputação de responsabilidade a sujeito diverso daquele que normalmente responderia.
Um outro caso que mais se aproxima dos ideais da doutrina da desconsideração é mencionado por MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:112), previsto no art. 60 e seguintes do Decreto-lei n.º 1.598/77, ao tratar da distribuição disfarçada de lucros.
Nesse caso, verifica-se que a lei cuidou de hipóteses onde pessoas ligadas à pessoa jurídica obtém, por intermédio do uso fraudulento dela, rendimentos.
Tendo em vista que ninguém pode ser obrigado a fazer alguma coisa senão em decorrência de lei, conforme já dito supra, e sendo certo que vigora no Direito Tributário o princípio da legalidade estrita, o legislador procurou resguardar o fisco contra esse tipo de fraude evitando que o contribuinte alegasse faltar disposição legal para ensejar sua responsabilização.
Nada obstante, na linha defendida por FÁBIO ULHOA COELHO (2002:42), se a própria lei permite que se coíba a fraude, responsabilizando diretamente os membros ou sócios da pessoa jurídica, ou mesmo outras pessoas ligadas a ela, não se cogitará da aplicação da doutrina da desconsideração.
Contudo, isso não significa que na prática as conseqüências sejam diversas daquelas decorrentes da aplicação da doutrina da desconsideração.
7.3 PARTICIPAÇÃO RECÍPROCA NA LEI DAS SOCIEDADES POR AÇÕES
Um caso tido como exemplo de desconsideração total da personificação por MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:147) é a previsão do art. 244, §2.º, da Lei das Sociedades Anônimas, onde se suspende o direito a voto das ações de propriedade de uma sociedade controlada, que componham o capital da sociedade controladora. O fundamento dessa restrição é evitar que o mesmo capital seja utilizado para controlar mais de uma pessoa jurídica.
Como se vê, o entendimento de MARÇAL JUSTEN FILHO é no sentido de que a própria lei possa determinar a desconsideração em abstrato.
Ao contrário, para FÁBIO ULHOA COELHO, a desconsideração só ocorre em concreto, nos casos autorizados por lei, ou mesmo em hipóteses em que não haja esta autorização explícita, uma vez que a doutrina do instituto se aplica independentemente de previsão legal (2002:54).
Tem-se, in casu, autêntica hipótese em que o ordenamento, evitando o desvirtuamento da personalidade jurídica, aplica uma sanção de adequação, que, conquanto possa até mesmo ter objetivos coincidentes com o da teoria da desconsideração, com esta não se confunde (REQUIÃO,1969:21).
7.4 A TEORIA ULTRA VIRES E A TEORIA DA APARÊNCIA NO CÓDIGO CIVIL
Ao criar a pessoa jurídica, seus instituidores descrevem as finalidades desta, bem como atribuem as funções que serão exercidas por seus membros. A omissão acerca de quem representará ou administrará a pessoa jurídica é suprida pela lei na maioria dos casos. Assim, por exemplo, no art. 12 do CPC e no art. 1013 do CC.
Ocorre que, em certas ocasiões, é possível que um membro da sociedade, seja ele sócio, administrador, gerente ou simples empregado, pratique, sem ter poderes para tanto, certos atos em nome dela. Pode ainda ocorrer que, embora tenha aparentemente atribuição para a realização de determinado ato, realiza-o em discrepância com os objetivos sociais.
Nesses casos, surge o seguinte problema: se simplesmente for defendido que é o membro da pessoa jurídica que responderá pelos efeitos do ato praticado, isso poderá prejudicar o terceiro que com ele tenha contratado.
De outro lado, se for imputada à pessoa jurídica a responsabilidade, ela e, indiretamente, seus outros membros, serão prejudicados.
Tanto em um caso, como no outro, em princípio, é plenamente cabível o regresso contra aquele que efetivamente praticou o ato.
Nota-se que, colocado assim o problema, a busca da melhor solução é extrajurídica. Juridicamente, basta averiguar o que prevê o ordenamento.
Segundo FÁBIO ULHOA COELHO (2002:445), esse problema fez com que surgisse nas cortes inglesas, em meados do século XIX, a ultra vires doctrine, segundo a qual, qualquer ato praticado sem vínculo com o objeto social seria nulo.
Como se vê, prestigiou-se nessa formulação a proteção dos investidores. O problema que essa doutrina gerou foi o medo de contratar com as pessoas jurídicas ante o risco de não ver honrado o contrato (COELHO,2002:446).
Cabe ressaltar que, segundo sua origem inglesa, a doutrina ultra vires diz respeito tão-somente aos atos da sociedade em relação ao objeto social (REQUIÃO,1995b:177), não se confundindo com a violação do ato constitutivo por parte do administrador (REQUIÃO,1995b:178).
JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:282) faz um paralelo no direito norte-americano entre a teoria dos atos ultra vires e a doutrina da disregard. Naquela "a personalização e a capacidade de uma pessoa jurídica são limitadas às finalidades em virtude das quais ela foi criada".
"Ao contrário, a doutrina da disregard criaria verdadeiros limites de capacidade não em função das finalidades específicas de uma pessoa jurídica determinada, mas das finalidades genéricas em virtude das quais a ordem jurídica criou tal ficção, justificando-se a desconsideração em nome de idéias de justiça, de public policy, e dos direitos da parte inocente." (OLIVEIRA, 1979:282)
No direito brasileiro, de acordo com FÁBIO ULHOA COELHO (2002:447), a teoria dos atos ultra vires não teria sido adotada.
Porém, é questionável esse posicionamento diante do que prevê o art. 47 do CC: "Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo".
Se os atos dos administradores, praticados fora dos limites de seus poderes, também vinculassem a sociedade, não teria qualquer utilidade o disposto nesse artigo.
Além disso o art. 1015, parágrafo único, do CC, admite hipóteses em que o excesso de poderes do administrador na Sociedade Simples pode ser oposto a terceiros, e, desta forma, não obrigar a pessoa jurídica.
Embora não se possa dizer que a teoria dos atos ultra vires tenha sido adotada para todo e qualquer ato dos membros da pessoa jurídica, verifica-se que, pelo menos no caso específico do inciso III do parágrafo único do art. 1015 do CC ela se aplica. Com relação aos atos que extrapolem a limitação de poderes, sejam ou não considerados dentro do conceito de ultra vires, o que importa é que também não vincularão a Sociedade Simples nas hipóteses dos incisos I e II do art. 1015 do CC.
Segundo MARLON TOMAZETTE (2003), o artigo 1015, parágrafo único, do CC, representaria um retrocesso e confrontaria a tendência mundial de proteger os terceiros de boa-fé, bem como a celeridade nos negócios.
Entretanto, esse problema, pelo menos em relação aos administradores, só ocorrerá se as sociedades limitadas vierem a adotar o regime das sociedades simples (COELHO, 2002:447), uma vez que aquelas, e não estas, são a maioria no Brasil (COELHO,2002:22-3)
Também FÁBIO ULHOA COELHO (2002:447) defende que deva ser aplicada a teoria da aparência, ou seja, embora o administrador não tenha poderes no caso para a prática do ato, ele aparenta ter, razão pela qual se deve proteger terceiros que com ele firmem negócios.
Lembrando que para JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:610) a responsabilidade subsidiária é a verdadeira técnica despersonalizante, esta não estaria presente no caso de aparência, ou comportamento contraditório –venire contra factum proprium–, pois aqui a responsabilidade é por ato próprio.
Em remate pode-se dizer que, não sendo cabível in casu a aplicação da teoria ultra vires, prevalecerá a teoria da aparência.
Porém, em último caso, se mesmo com esta teoria a situação ainda não estiver equilibrada, o interessado poderá se socorrer da desconsideração da personalidade jurídica.
7.5 SÍNTESE DO CONFRONTO COM AS FIGURAS PARALELAS
Após essa análise da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, e de sua comparação com os dispositivos legais acima, pode-se concluir que o art. 50 do CC é uma arma de reserva, que veio para prestar socorro nas situações que escapavam das previsões legais existentes e permitiam a utilização indevida da personalidade jurídica de forma danosa para a sociedade.
A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica tem por fundamento evitar que se sirva da pessoa jurídica para finalidade diversa daquela prevista tanto no ato constitutivo quanto no próprio ordenamento.
Ela resolve os casos em que o sócio ou membro de pessoa jurídica causa danos a terceiros e se esconde atrás do véu da personalidade. A doutrina imputa a responsabilidade a quem merece realmente responder.
Não é meramente responsabilizar outrem sem qualquer questionamento acerca do abuso praticado no uso da pessoa jurídica.
Seja como for, parece irrelevante o questionamento acerca de determinado dispositivo legal tratar ou não de uma hipótese de aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.
O que importa é saber se, no caso concreto, é ou não permitido atribuir a responsabilidade a sujeito diverso do que figura em determinada relação ou situação jurídica.
O que releva é buscar equilibrar as relações e impedir que se desvirtue as instituições, que se viole o ordenamento, que se faça injustiça.
Entender a doutrina da desconsideração é fundamental para a aplicação dos dispositivos abertos, de modo a fixar, conforme o caso concreto, quais os limites adequados da autonomia da pessoa jurídica.
Mas é dispensável tal conhecimento quando o ordenamento, conquanto diga que permita a desconsideração, não estabelece qualquer requisito para tanto, uma vez que nessa situação basta responsabilizar quem a lei determinar.