O resguardo do direito à segurança individual pela legislação penal brasileira

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ABANDONO DE INCAPAZ

1. Apresentação

A presente explanação tem por finalidade maior expor, de maneira concisa, sobre os crimes que põe em risco a vida dos indivíduos, classificado como de perigo concreto. De maneira mais precisa, refere-se a um público específico que será mais adiante arrolado.

Para início de consideração, determina-se que o bem jurídico tutelado em questão é o bem da vida, no caso a segurança. Visa, assim, o Direito Penal, tutelar seus sujeitos e assegurar, ainda que colocado anteriormente de forma ampla, o desenvolvimento social e individual. Assim, leciona Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 232)

[...] é o bem relevante para o indivíduo ou para a comunidade (quando comunitário não se pode perder de vista, mesmo assim, sua individualidade, ou seja, o bem comunitário deve ser também importante para o desenvolvimento da individualidade da pessoa) que, quando apresenta grande significação social, pode e deve ser protegido juridicamente. A vida, a honra, o patrimônio, a liberdade sexual, o meio ambiente etc. São bens existenciais de grande relevância para o indivíduo.

2. Sujeitos Ativo e Passivo

Acerca dos sujeitos do disposto no artigo 133, antes de iniciar a delimitação, podemos generalizar e falar que pode ser amparado pelo referido artigo aquele abandonado. Aquele que, não podendo defender-se, perde sua segurança e começa a correr risco de vida em virtude da ação dolosa de outrem. A definição de abandono, para estes tipos penais explicados, gira no sentido de ser deixado em desamparo por aquele que possui dever de tutela, assistência ou cuidado, não sendo crime próprio, determinado a agentes específicos.

Em cada artigo do Código, há um núcleo, e a partir deste, é possível desmembrar o dispositivo para a devida interpretação. Damásio de Jesus pondera sobre os verbos tidos como núcleo do artigo 133 do Código Penal, relacionados no seu caput:

1) cuidado é a assistência eventual;

2) guarda é a assistência duradoura;

3) vigilância é a assistência acauteladora;

4) autoridade é o poder de uma pessoa sobre outra, podendo ser de direito público ou privado;

Em relação ao sujeito passivo, mais uma vez retoma-se o conceito de abandono para falar que independente de estado físico ou mental, será vítima quem não for capaz de providenciar sua própria segurança e em virtude disso esteja vulnerável de forma certa, deixando para o juiz valorar o caso concreto.

O objeto jurídico é o interesse de o Estado tutelar a segurança da pessoa humana, que, diante de determinadas circunstâncias, não pode por si mesma defender-se, protegendo a sua incolumidade física. (JESUS, DAMÁSIO, pg.100)

Utilizando uma interpretação extensiva, entende-se pela definição dos sujeitos do professor Damásio de Jesus que o sujeito ativo possui legitimidade de cuidado, como por exemplo, a cuidadora que deixa de prestar o devido cuidado ao idoso que se prestou a cuidar, seja por uma ação ou omissão da cuidadora; já o sujeito passivo será aquele que está sob o cuidado, guarda de outrem e que esteja incapaz de zelar pela segurança da própria vida.

3. Objetividade e Subjetividade

Bitencourt, em seu pensamento, ratifica a ideia ao falar que o crime acontece quando alguém que possuía o vínculo de assistência, tutela, abandona aquele incapaz de proteger-se sozinho. Cabe falar ainda que, objetivamente, essa incapacidade não é vista sob o ponto de vista da transitoriedade ou em definitivo, tendo em vista ser irrelevante para desconfigurar o dever de tutela do sujeito ativo.

Guilherme de Souza Nucci na mesma linha de pensamento proclama: “ (a incapacidade) não se trata de um conceito jurídico, mas real”.

Acerca do elemento subjetivo, fala-se em dolo de perigo, o qual o agente tem total consciência do perigo a que expõe a vítima, como se este aceitasse o perigo concreto a que submete aquela, por meio abandono.

Quanto à consumação do crime, ocorre com o abandono efetivo do incapaz, devendo a vítima encontrar-se em situação de perigo real. Para Cezar Roberto Bitencourt, a tentativa é teoricamente possível, especialmente na forma comissiva, mesmo que a configuração seja difícil.

4. Classificação Doutrinária - Fundamentos Jurídicos

Das formas qualificadas presentes no dispositivo, os §1º, 2º e 3º, a situação mais contemplada pelos tribunais é a do abandono ao idoso e a do menor por seus genitores. Assim, além da figura imediata da criança e de enfermos, o idoso, infelizmente, também é vítima recorrente do abandono, contemplado no parágrafo 3º, inciso III, adicionado por força da Lei 10.741 de 2003, Estatuto do Idoso. Além disso, ao serem analisadas de forma extensiva as duas fontes, o idoso também está acobertado em seu Estatuto, no artigo 4º, em se tratando de sanção.

Sobre o referido dispositivo mencionado anteriormente, João José Caldeira Bastos comenta em seu artigo:

Fala-se em relação jurídica de cuidado quando alguém tem o encargo de zelar, nas circunstâncias, pela saúde e integridade física de outrem; de guarda, quando a obrigação é mais envolvente, diante da incapacidade natural ou relativa da outra parte; de vigilância, quando a obrigação se restringe a um compromisso ocasional de observação e proteção acautelatória; de autoridade, na hipótese de um poder-dever de mando e orientação, vinculado a normas de direito público ou direito privado. Basta qualquer uma dessas relações para que ocorra o delito. O comum, porém, é que elas coexistam, ao menos em parte. O pai, por exemplo, no que tange ao filho menor, com quem sai a passeio, mantém sobre ele deveres de cuidado, vigilância, guarda e autoridade.

BASTOS, João José Caldeira. Abandono de incapaz: Estrutura típica, formas qualificadas e aumento de pena.Jus Navigandi.

Na visão doutrinária, o elemento chave é o vínculo pré-existente entre os sujeitos, para que assim esteja de forma concreta, configurado o abandono.

Damásio E. de Jesus (1999, p.101.) fala, ainda, que “não havendo essa vinculação especial entre autor e ofendido, isto é, não incidindo o dever legal de assistência, conforme o caso, o sujeito pode responder pelo delito de omissão de socorro.”

No caso da materialidade do delito, Custódio da Silveira (1973), entende que a ausência daquele que possui a responsabilidade, o dever de tutela, é indiferente ao tempo em que a vítima foi deixada, bastando encontrar-se na situação a situação perigosa.

Esse pensamento do autor (1973, p. 184/185) gera polêmica entre juristas a respeito dessa necessidade de afastamento daquele que deve receber cuidado, assistência fazendo com que o próprio aumente seu campo de interpretação ao falar que abandono consiste em toda ação ou omissão que se destoe da ideia de custódia.

Nessa mesma linha de pensamento, o abandono ao menor, principalmente por seus genitores, torna-se uma conduta cada vez mais vista nos meios de comunicação, casos em que os pais deixam os filhos, crianças sem capacidade de providenciar seu alimento ou segurança, sozinhos em casa, por qualquer motivo. O juiz julgará o caso de acordo com a gravidade desse abandono.

O tipo penal não admite a modalidade culposa para o abandono de incapaz. Nesse caso, para configurar crime o agente deve estar consciente do ato e ter dolo para praticá-lo, seja direto ou eventual.


EXPOSIÇÃO OU ABONDONO DE RECÉM-NASCIDO

1. Apresentação

O legislador pátrio ao elencar no artigo 134 do Código Penal uma modalidade específica de abandono ao recém-nascido, cria um tipo qualificado em relação ao crime de abandono. Tem por finalidade, assim, proteger especificamente o recém-nascido diante da sua extrema fragilidade.

A circunstância do abandono exige que esse fique exposto a situação concreta de risco, da qual pode-se deduzir que sozinho, sempre estará vulnerável.

2. Sujeitos Ativo e Passivo

       O termo desonra própria nos remete a razão ou motivação para o crime e, além disso, quem poderá ser incluído no rol de agentes deste crime classificado como próprio. Têm-se, então, duas correntes em que em uma somente a mãe poderá sujeito ativo, posto que se trata de situação em que se visa ocultar desonra própria e somente esta possui o vínculo mais estreito e direto com o recém-nascido. Nesta perspectiva, ainda, há outra corrente que permite incluir para agente, além da mãe, o pai. Ressalta-se que a interpretação deste delito enquanto crime próprio, na realidade, advém de interpretação do contexto social do caso concreto, tendo em vista a constante transformação do seio familiar atualmente.

Celso Delmanto e Cezar Roberto Bitencourt, citados por Capez (2012, p.241), encontram-se dentro da primeira corrente, sustentando que por ser crime próprio, a desonra própria somente poderá se referir à mãe, embasando tal afirmação no estudo comparado com o delito de infanticídio; o pai, segundo eles, responde apenas por omissão de socorro

Como se vê, é uma questão crítica. Há doutrinadores que interpretam o dispositivo de forma mais restrita, como Fernando Capez, de maneira que somente a mãe é o sujeito ativo desse crime, assim como há aqueles que defendem que o pai também é parte legítima. Não há entendimento pacificado acerca do impasse.

Interpretando o caput do artigo 134, podemos notar que ao falar em honra, surge a possibilidade de uma interpretação ampla, ao apresentar a ideia de somente o sujeito que possuir honra, terá capacidade para ser agente do crime; sendo honra um conceito subjetivo, o juiz poderá valorar esta no ato do julgamento. Assim, como a razão do crime perde-se se o agente falhar neste quesito, incidirá em abandono ou maus tratos, por exemplo.

No polo passivo, ainda que de entendimento pacífico quanto ao recém-nascido, existe ainda a discordância quanto ao conceito deste. Mas, para parte da doutrina (Bitencourt e Fragoso, por exemplo), entende que deve ser alguém nascido há poucos dias.

Quanto ao sujeito passivo, a divergência reside quanto ao momento de considerar recém-nascido o ser humano para o ordenamento jurídico.

Estritamente falando, recém-nascido é o ser humano que acabou de nascer com vida, ou seja, que finalizou o parto com vida extrauterina caracterizada pela instalação da respiração pulmonar. Entretanto, o alcance deste tipo penal seria muito estreito, caso se aceitasse somente a figura da vítima que terminou de ser expulsa com vida do útero materno. Sabe-se que nos primeiros dias ainda se pode considerar a criança uma recém-nascida, de forma que preferimos esse critério, ainda que vago, mas a ser analisado concretamente pelo magistrado. (NUCCI, Guilherme de Souza, 2012, p.699, 700)

Sobre o termo subjetivo da palavra recém-nascido, João José Caldeira Bastos adota interessante posicionamento em seu artigo ao sugerir o conhecimento social como importante fator no desenvolvimento da corrente:

Essa elasticidade, no entanto, não decorre da lei, pois a condição de recém-nascido jamais dependeu da maior ou menor habilidade materna (ou paterna) de guardar segredo quanto ao fato do nascimento. Ainda que através de outra expressão vaga, sabe-se que recém-nascido é simplesmente aquele que "nasceu há pouco", segundo os dicionários.  Esse "pouco" tempo de vida extrauterina está longe de ser delimitado pelo número e tipo de pessoas que dela tomam conhecimento.

BASTOS, João José Caldeira. Exposição ou abandono de recém-nascido: limites da dogmática penal. Boletim Jurídico.

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Embora seja termo que possua diferentes interpretações, de acordo com o momento ou com a hora, caberá também ao juiz valorar de acordo com o caso concreto.

3. Classificação Doutrinária

 Em relação a subjetividade, tal qual no caso de abandono de incapaz é o dolo de perigo; é o ato de abandonar o recém-nascido. A consumação, então, se dá com o abandono efetivo do recém-nascido, desde que este esteja colocado em uma situação fática de perigo com tal ação. Ainda que a mãe abandone o filho por certo tempo e retorne para cuidar, não impediria que tal conduta fosse considerada abandono. É possível a tentativa. (Sidneyjan Brito Souza. Da periclitação da vida e da saúde. Webartigos)

Capez refere-se também quanto à consumação:

Consuma-se o delito com o abandono, desde que resulte perigo concreto para o recém-nascido. Trata-se de crime instantâneo de efeitos permanentes. Isso quer dizer que o crime de exposição ou abandono de recém-nascido consuma-se em um dado instante (com a exposição ou abandono), mas seus efeitos perduram no tempo, independentemente da vontade do agente, já que o resultado produzido pela conduta subsiste sem precisar ser sustentado por ele. (CAPEZ, Fernando, 2012, pg. 243.)

Como trata-se de forma qualificada do abandono de incapaz, a consumação naturalmente se dará com o abandono gerando perigo concreto para o sujeito passivo, que não possui chance de defesa ou de cuidar-se.

O autor ainda comenta a respeito da modalidade do crime:

Cuida-se aqui dos crimes qualificados pelo resultado na modalidade preterdolo. Há dolo de perigo no fato principal (exposição ou abandono do recém-nascido); já os resultados agravadores são punidos a título de culpa. Se presente o dolo de dano, o agente poderá responder pelo delito de infanticídio ou homicídio, conforme esteja ou não sob influência do estado puerperal, ou então pelo delito de lesão corporal qualificada, se presente o animus laedendi. (CAPEZ, Fernando, 2012, pg. 243.)

A partir da leitura de Capez, a forma qualificada, por ser um crime próprio com caráter de dolo direto, seus resultados estão ligados à forma preterdolosa, com previsão para pena máxima de até 2 anos de detenção, variando entre a lesão corporal grave e a morte. Dificilmente, então, apresenta-se a conduta do sujeito com dolo eventual, já que comprovada a intenção de dolo com dano, o chamado animus laedendi citado por Capez, qualificar-se-á este pelo crime de infanticídio ou homicídio.

Salienta-se, ainda, que não há a modalidade culposa. Responde, então, o agente na medida de sua culpabilidade.

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Sobre as autoras
Fernanda Letícia de Mesquita Araújo

Estudante do nono período de Direito na Faculdade Luciano Feijão, Sobral - CE

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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