4. NOSSA ANÁLISE
Para nós, após esse cipoal de entendimentos de elevada estirpe, é inegável que a finalidade da alteração da EC nº 6/95 foi eliminar a distinção entre as empresas em função da origem de seu capital, como se afigura nas razões expostas na Exposição de Motivos nº 37/95, conforme a seguir:
"3. A discriminação no capital estrangeiro perdeu o sentido na contexto de eliminação das reservas de mercado, maior intercalação entre as economias e necessidade de atrair capitais estrangeiros para complementar a poupança interna. Com relação ao tratamento preferencial nas aquisições de bens e serviços por parte do Poder Público, a proposta corrige imperfeição do texto constitucional, passando a favorecer os produtos produzidos e serviços prestados no País, ao invés de empresas classificadas segundo a origem do capital.Com isto pretende-se restabelecer o importante instrumento do poder de compra do Estado para estimular a produção, emprego e renda no País. É digno de nota que a proposta vincula o tratamento preferencial conferido aos produtos e serviços produzidos internamente à igualdade de condições (preços, qualidade, prazos, etc.) entre os concorrentes."
Inexiste dúvida, cremos, que, após a EC 6/95, toda a legislação infraconstitucional relacionada diretamente com o então ditame constitucional de preferência restara revogada com a alteração constitucional, em face da não-recepção. Refrise-se: toda a produção legiferante com relação direta com a preferência; nunca qualquer mera indicação da expressão "empresa brasileira", de vez que, conforme já afirmamos em obra sobre licitações internacionais 10a, apesar da eliminação da distinção, não extirpou-se do mundo jurídico por definitivo o conceito de empresa brasileira o que, evidentemente, seria de todo impossível. Na verdade, a "empresa brasileira", a partir da alteração constitucional, passou a ser aquela estabelecida sob a égide da lei brasileira, com sede e administração no Brasil, conforme, inclusive, dispôs também a Exposição de Motivos mencionada:
"2. A proposta tenciona eliminar a distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional e o tratamento preferencial concedido o esta última. Para tanto, firma-se conceito de empresa brasileira como aquela constituída sob as leis brasileiras e com sede e administração no País."
Daí, firmarmos posição, sem negar premissa a tudo que foi desenvolvido pela doutrina e pela Corte de Contas da União, que, no que concerne ao estabelecido no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.666/93, persiste totalmente válido o inciso II, porquanto não negou a EC 6/95 a possibilidade do direito de preferência, tão significante para o desenvolvimento do importante setor de informática brasileiro, consolidando, inclusive, a política industrial aprovada pelo Congresso Nacional, dando-se preferência nas licitações aos produtos e serviços fabricados no País. Não se pode esquecer que este exercício do poder de compra é exercido, com sucesso, em diversos países industrializados, como, por exemplo, o Buy American Requirement, dos Estados Unidos, que permite ao governo norte-americano adquirir produtos produzidos em seu País até 12% mais caros do que os fabricados em demais localidades. Assim, como bem vem divulgando o Ministério da Tecnologia, ao contrário das antigas práticas, se há preferência, não existem restrições. Com os critérios estipulados, mesmo os produtos importados podem vencer as licitações. Com o mercado aberto à livre concorrência, a política industrial brasileira estimula os investimentos e alia os interesses dos usuários com a geração de riquezas no País.
Assim, à época, desenvolvemos o raciocínio, divulgado em artigos e palestras – e, parcialmente, em livros – que:
- Da Lei nº 8.666/93, os incisos I e III do § 2º do art. 3º estariam revogados - e não o § 1º do art. 33, de vez que a expressão ‘empresa brasileira’ nele constante não tem nenhuma conexão com tratamento preferencial determinado na CF; 11
- Da Lei nº 8.248/91, revogados estaria o art. 1º; as exigências constantes dos incisos I e III do art. 2º; no art. 3º, a determinação no sentido de que se dê preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação efetuadas pelo Poder Público, aos produzidos ou prestados pelas empresas brasileiras de capital nacional; o art. 5º; o art. 7º; e a parte final do art. 10; e
- Do Decreto nº 1.070/94, no art. 1º, o inciso IV e o § 2º; os incisos I, II e III do art. 5º; no art. 6º, a determinação de se considerar a condição da "empresa integradora do sistema" e, no parágrafo único, a referência à comprovação prevista no art. 1º, inciso IV.
Nossa tese no sentido de subsistir o direito de preferência foi reforçada com o advento da Lei nº 10.176/2002, tratando especificamente da capacitação e competitividade do setor de informática e automação, que fomenta ainda mais o direito de preferência.
Insta ressaltar, para bem delimitar a matéria, que o inciso II do art. 3º da Lei 8.248/91, alterado pela Lei 10.176, tratava de "bens e serviços produzidos no País, com significativo valor agregado local".
Para refrescar a memória, repetimos o novo texto legal, com alguns grifos:
"Art. 3º Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta ou indireta, as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público e as demais organizações sob o controle direto ou indireto da União darão preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, observada a seguinte ordem, a:
I - bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País;
II - bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, na forma a ser definida pelo Poder Executivo."
Com a alteração legal, restou totalmente afastado qualquer tipo de preferência concedida a produtos e serviços com significativo valor agregado local, de vez que tal expressão foi suprimida da ordem jurídica vigente, já que, havendo a alteração do dispositivo que regrou o assunto, somente perdura a regulamentação se esta for compatível com as determinações da nova regra.
Em decorrência, o Decreto nº 1.070/94, que regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.248/91, deve ser interpretado no sentido de que todas as disposições que regulamentavam a preferência concedida aos bens e serviços com significativo valor agregado local estão revogadas.
Transcreve-se, a seguir – com alguns importantes grifos para melhor entendimento –, o art. 5º do Decreto nº 1.070, que regulamenta a aplicação do art. 3º da Lei nº 8.248/91, inserindo-se, posteriormnte, o que resultou em face das alterações do ordenamento jurídico:
"Art. 5º. Como critério de adjudicação, entre as propostas equivalentes, deverá ser dada preferência, nos termos do disposto no art. 3º da Lei nº 8.248/91, aos bens e serviços produzidos no País, observada a seguinte ordem:
I - bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos com significativo valor agregado local por empresa que preencha os requisitos do art. 1º da Lei nº 8.248/91 – REVOGADO, por não mais determinar a regra legal o tal significativo valor agregado.
II - bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos por empresa que preencha os requisitos do art. 1º da Lei nº 8.248/91 – REVOGADO, em face da mudança do texto constitucional imposto pela Emenda Constitucional nº 06/95.
III - bens e serviços produzidos com significativo valor agregado local por empresa que preencha os requisitos do art. 1º da Lei nº 8.248/91 – REVOGADO, pelo mesmo motivo indicado para o inciso I.
IV - bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos com significativo valor agregado local por empresa que não preencha os requisitos do art. 1º da Lei nº 8.248/91 – REVOGADO, pelo mesmo motivo indicado para o inciso I.
V - bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos por empresa que não preencha os requisitos do art. 1º da Lei nº 8.248/91 – REVOGADO,em face da revogação expressa do citado art. 1º da Lei nº 8.248/91, disposta no art. 14 da Lei nº 10.176/2001.
VI - bens e serviços produzidos com significativo valor agregado local por empresa que não preencha os requisitos do art. 1º da Lei nº 8.248/91 – REVOGADO, pelo mesmo motivo indicado para o inciso I.
VII - outros bens e serviços".
Restou tão-somente o inciso VII, que, logicamente, nada altera na aplicação da regra de preferência.
Este art. 5º do Decreto nº 1.070/94, pelo que se demonstrou, não terá nenhuma aplicabilidade, considerando que os seus dispositivos foram revogados em face da alteração imposta na CF pela EC nº 06/95 (que extirpou a preferência concedida às empresas de capital nacional) e pela Lei nº 10.176/01 (que aboliu o tal "significativo valor agregado local").
Assim, em matéria de preferência na contratação de bens e serviços de informática e automação, deve ser atendido o disposto no art. 3º da Lei nº 8.248, com a redação introduzida pela Lei nº 10.176/01.
Em suma, portanto, entendemos que o direito de preferência foi mantido e exacerbado no ordenamento jurídico infraconstitucional e, na hipótese de ocorrência de um empate entre duas ou mais propostas comerciais, numa licitação para aquisição de bens ou serviços de informática ou automação, antes de se proceder o sorteio previsto no art. 45, § 2º, da Lei nº 8.666/93, a Administração Federal deverá verificar:
- Primeiro, se dentre os licitantes não há um que está ofertando um bem ou um serviço cuja tecnologia tenha sido desenvolvida no Brasil;
- Depois, persistindo o empate, se os bens e serviços ofertados por algum deles foi produzido em conformidade com o processo produtivo básico, que de acordo com o art. 3º, inc. II, c/c o art. 12 da Lei nº 10.176, constará de regulamentação a ser expedida futuramente pelo Poder Executivo;
Em face ao exposto, é de se considerar como ordem de preferência nas licitações de bens e serviços de informática e automação:
- Inicialmente, preferência será dada aos bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País, conforme prescreve o inciso I do art. 3º da Lei nº 8.248/91, cujo o exercício deverá atender ao que estabelece o § 2º do art. 3º do mesmo diploma, considerando-se as condições equivalentes de prazo de entrega, suporte de serviços, qualidade, padronização, compatibilidade e especificação de desempenho e preço entre todas as propostas, e, quanto ao preço, a equivalência disciplinada pelo art. 4º do Decreto nº 1.070/94;
- Assim, caberá o exercício da preferência entre as propostas, depois de analisados todos os produtos ou serviços ofertados e ser constatado que eles se encontram em pé de igualdade em relação aos critérios estabelecidos no § 2º do art. 3º da Lei nº 8.248/91 e em equivalência em relação aos preços, conforme os termos do art. 4º do Decreto nº 1.070/94;
- Se todos os produtos objeto das propostas forem equivalentes em relação ao prazo de entrega, suporte de serviços, qualidade, padronização, compatibilidade e especificação de desempenho exigidos no edital e preço, caberá, então, a preferência em relação aos bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País;
- Persistindo o empate, será dada preferência aos bens e serviços produzidos de acordo com o processo produtivo básico, nos termos do inciso II do art. 3º da Lei nº 8.248, cuja definição já foi estabelecida pela Portaria Interministerial MDIC/MCT nº 90, de 28/06/2001. 12
Por fim, é de bom alvitre acrescentar que, se, ao contrário do que se expões, fosse adotada a linha sugerida pelo TCU e pelos doutrinadores que propuseram o fim do direito de preferência no direito pátrio, a conclusão lógica seria a de que a Lei nº 10.176/01, ao tentar restabelecer o direito de preferência, seria inconstitucional, contrariando o princípio da igualdade, afrontando o inc. XXI do art.37 da Constituição Federal. 13
NOTAS
1 Diga-se, de passagem, que o conceito adotado pelo constituinte estava previsto no art. 60 do Decreto-lei nº 2.627/40.
2 Nesse diapasão, também Marcos Juruena Villela Souto, no artigo "A informática na lei de licitações", divulgado na internet.
3 Na brilhante obra "Licitações de bens e serviços de informática e automação", Temas & Idéias Editora, que tivemos o prazer de prefaciar.
4 Tanto no "Licitação Passo a Passo", 4ª. edição, como no "Estudos sobre licitações internacionais", 2ª. edição, ambos editados pela Temas & Idéias Editora.
5 "Licitações & Contratos Administrativos", 3ª. ed., Ed. Adcoas/Esplanada.
6 "Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos", 7ª. ed., Ed. Dialética, pp. 86 e 87.
7 "Licitações de Bens e Serviços de Informática e Automação", Temas & Idéias Editora, p. 30.
8 Parecer nº 231, de 13 de novembro de 1995.
9 "Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública", 4ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 43.
10 BLC nº 10/97, p. 475.
10a
"Estudos sobre licitações internacionais", 2ª.ed., Temas & Idéias Editora.11 No livro "Estudos sobre licitações internacionais", 2ª. ed, assim expusemos, alertando, entrementes que o dispositivo era inconstitucional, diante da intempestiva invasão na liberdade de escolha dos consorciados: "Há flagrante inconstitucionalidade quando dispõe o diploma sobre a obrigatoriedade da liderança consorcial recair sobre a empresa brasileira, porquanto, ao permitir a participação da empresa estrangeira, não pode interferir na decisão de quem deterá a liderança (§ 1º)."
12 Que demanda a necessidade de avaliar um emaranhado de instruções, nada facilitando ao aplicador, conforme transcrevemos: "Art. 1º Para fins do disposto no inciso II, do art. 3º e no §1º-C, do art. 4º, ambos da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991, fica estabelecido como Processo Produtivo Básico, para os bens industrializados no País, o conjunto de operações discriminadas nas Portarias Interministeriais relacionadas no Anexo." (Obs: O tal anexo possui nada menos do que vinte portarias datadas de 1993, 1994,1996", 1997 e 1998). "Parágrafo Único. Qualquer etapa dos Processos Produtivos Básicos poderá ser terceirizada. Art. 2º Caracterizada a necessidade de alteração de Processo Produtivo Básico, decorrente de fatores técnicos ou econômicos, devidamente justificados, poderá ser concedido prazo às empresas para seu cumprimento. Parágrafo único. Pelas mesmas razões referenciadas no caput poderá ser suspensa temporariamente ou modificada a realização das etapas do Processo Produtivo Básico estabelecido."
13 Dessa forma também obtemperou Marcello R. Palmieri, acrescentando, com ponderação que ratificamos: "Contudo, cremos que até que esta norma não seja extirpada do direito positivo pelas vias constitucionais próprias, deverá ser totalmente observada. O respeito ao tão discutido direito de preferência trará, a médio prazo, grandes benefícios à situação econômica de nosso país, na medida em que incentivará cada vez mais que os segmentos de informática instalem novas indústrias no território nacional, realizem novos investimentos, gerando novos empregos e desenvolvendo novas tecnologias que inclusive irão otimizar as relações comerciais externas do Brasil." ( in "A Nova Lei de Informática", BLC nº 2, 2001, p. 111).