O papel da mídia de massa no processo de relegitimação do sistema penal

16/03/2018 às 16:00
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Em uma sociedade tão desigual e caótica como a nossa, a influência dos meios de comunicação se faz presente na sociedade como um todo, principalmente no que se refere às políticas criminais, pelo que o medo se aproxima das classes dominantes.

1. INTRODUÇÃO.          

         O jornalismo e a mídia em geral sempre estiveram entrelaçadas com a política ao longo da história, porém em uma democracia jovem como a nossa, a mídia mais do que nunca, está onipresente,  direcionando os conceitos de crime e criminoso para um prisma que não permite a ampla avaliação que o tema merece, buscando uma relegitimação do sistema penal e a manutenção de um status quo vertical, confortável e lucrativo. A TV presente na grande maioria dos lares brasileiros, ao tratar a criminalidade como entretenimento, toma a atenção da sociedade diariamente encurtando a distância entre a classe média e a violência, fazendo com que aflore e se multiplique o sentimento de vingança, medo e fúria contra classes que se tornam alvos dessa sociedade com sede de uma falsa justiça, estabelecendo um pânico social. Este fenômeno distorce a percepção social da violência, que não se embasa em dados ou métodos científicos de pesquisa, mas sim em uma credibilidade fictícia atribuída aos meios de comunicação que dramatizam e aproximam o cidadão médio da vítima de acordo com seu interesse econômico e ideológico, adotando um esquema de repartição dos papeis da vítima e do agressor, que corresponde normalmente, em grande medida, à relação entre grupos sociais privilegiados e “respeitáveis” de uma parte, e grupos marginais e “perigosos” do outro. Esse sentimento de impunidade afomentado pela mídia acaba causando este caos social, que distorce a real situação da criminalidade e torna mais propícia a aceitação por parte da população de um arrochamento nas políticas punitivas, o “populismo punitivo”  que é amplamente aproveitado por grande parcela dos políticos. A mídia, assim, distancia-se do papel comunicativo e assume a condição de verdadeira agência do poder punitivo, ao interferir no curso das investigações criminais, executar tarefas inerentes das agências do sistema penal e suprimir direitos e garantias constitucionais.

 Diante desta problemática, a realidade da globalização acentuou esse paradoxo, fazendo com que grupos neoconservadores de direita passassem a exigir a ação do direito penal, promovendo, através de movimentos de lei e ordem, e de doutrinas como a de Tolerância Zero, a relegitimação do sistema penal. A adoção de determinadas políticas econômicas sustentadas pela ideologia neoliberal nesse contexto condicionaram a realidade de um novo aprisionamento em massa, bem como o ressurgimento na academia de teorias biologicistas sobre o crime para explicá-lo.

É neste contexto que os meios de comunicação influenciam na construção social do conceito de criminalidade e nas políticas criminais no Brasil criando um espetáculo em torno da segurança pública, buscando uma relegitimação do sistema penal através da criminalização da parcela mais frágil da população. O objetivo do trabalho é estudar esta influência, bem como seus reflexos na sociedade e na percepção social do conceito de criminalidade e justiça, analisar suas causas, e a participação da mídia como uma parte integrante das chamadas agências executivas do poder punitivo.


2) A CRIMINALIDADE COMO CONCEITO SOCIALMENTE CONSTRUÍDO.

Para buscarmos a reflexão acerca deste tema tão amplo e multidisciplinar, é primário analisarmos de onde vem a consciência política e social da nossa sociedade e qual o tamanho do papel da mídia neste processo todo que refletirá diretamente nas politicas adotadas. De acordo com Cohen (2002 p.24), existe o conceito de pânico moral, que traduz a ideia de que a mídia atua distorcendo o contexto daqueles que a sociedade considera fora de seus padrões, criando a imagem de “Folk Devils”, que resulta em uma reação desproporcional e contraprodutiva dessa mesma sociedade, e ainda frisa: “para os conservadores, a mídia louva o crime, trivializa as inseguranças públicas e mina a autoridade moral; para os liberais, a mídia exagera o risco do crime e agita pânicos morais para verificar a favor de uma injusta e autoritária política de controle criminal, nesses “pânicos midiáticos”, os espirais de reação de qualquer novo normal são totalmente repetitivos e previsíveis.”. (2002, p. 24)[1]

Estes “folk Devils” se tornam o alvo perfeito para a mídia estigmatizar e alimentar o anseio de justiça da sociedade, que vive em um estabelecido pânico moral, em troca de audiência e influência política. Ao clamar pela punição destes grupos, e eventualmente conseguir, o sentimento da sociedade é de que o problema não é mais dela, a cultura prisional esta enraizada. Zaffaroni(1993, p.63) observa que o poder “configurador, disciplinário, normalizador, verticalizante” do sistema penal latino americano se justifica através de seu aparato de propaganda, citando o espaço destinado à violência na mídia.

Com este mesmo enfoque, surge a teoria do etiquetamento que rompe com a criminologia tradicional ao perceber que o crime e o criminoso não são dados ontológicos, pré-constituídos à experiência, mas uma construção resultante de interações sociais, fazendo com que em algumas situações se definam pessoas como desviantes. Para Zaffaroni(2001, p.40), “em razão da seletividade letal do sistema penal e da consequente impunidade das pessoas que não lhe são vulneráveis, deve se admitir que seu exercício de poder dirige-se à contenção de grupos bem determinados e não a repressão do delito.”.

Sobre esse tema, Marília Budó (2013, p.37) “isso significa que há pessoas que praticam atos tipificados criminalmente e não são vistas pela sociedade como criminosas. Por outro lado, há pessoas que não cometeram quaisquer crimes e, em função  de carregarem o estereótipo de criminosos, são tidos por delinquentes nas interações sociais.”.

Portanto, a criminalidade é uma realidade socialmente construída, e nesta construção temos o controle social formal e informal, que vão além das agências de controle penal e de certa maneira convergem para a manutenção do status quo. Para Baratta (p. 175) “A homogeneidade do sistema escolar e do sistema penal  corresponde ao fato de que realizam, essencialmente, a mesma função de reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da sociedade, criando, em particular, eficazes contra-estimulos à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado, ou colocando diretamente em ação processos marginalizadores.”.


3) A MÍDIA COMO AGÊNCIA EXECUTIVA DO SISTEMA PENAL.

Para Zaffaroni(2003 p. 138) são “agências executivas” do sistema penal seus segmentos institucionalizados não judiciais, e aponta, dentre elas, o protagonismo das agências policiais, em razão do  seu alto poder configurador, frisando que as polícias na América Latina são normalmente militarizadas e que os policiais passam por um processo de deterioração da identidade, o qual chama de “policização”, agindo assim conjuntamente com a mídia num processo de criminalização de certos grupos de pessoas.

Assim, na medida em que reagem apenas contra alguns crimes e algumas pessoas, o controle social informal e o sistema penal constroem e reproduzem seletivamente a criminalidade. Da mesma maneira, o controle social informal cria a ideia da normalidade e do desvio, etiqueta determinadas pessoas como desviantes, às quais o sistema penal vai se encarregar de perseguir.

Entretanto, a mídia, além suprimir direitos e princípios fundamentais como: inviabilidade da imagem, honra, as garantias da presunção da inocência e princípio da dignidade da pessoa humana, é investido de um “poder e polícia” que provocou e provoca fatos terríveis, como linchamentos e mortes quando do reconhecimento dos foragidos, muitas vezes nem sequer condenados, e passa a ser não apenas  um mecanismo de controle social informal, mas na medida em que se insere como órgão receptor de denúncias, repassando-as à polícia, e acompanhando a prisão com as câmeras em punho, um mecanismo de controle social formal. Para Nillo Batista não há mais como identificar a mídia apenas como agência de comunicação social do sistema penal, com uma função comunicativa. A mídia vem assumindo nesse contexto um papel de agência executiva do sistema penal, ao influenciar diretamente no curso das investigações policiais o mesmo do processo. (2002, p. 271)

Toda essa repressão interna criada, que se desenvolve a partir de processos de criminalização primária(criação de leis repressivas) e secundária(operacionalidade seletiva e estigmatizante do sistema penal), traz a ilusão de que se investe na melhoria da segurança. Porém, a insegurança é que resta agravada, quando se percebe o aumento dos poderes do Estado(apesar da redução de suas funções – Estado Mínimo) com a respectiva vulneração aos direitos fundamentais. Dessa forma, o próprio Estado de direito se vê desestabilizado, refém da política do espetáculo e da cultura do medo alimentada pela mídia.

Diante deste cenário é importante ressaltar a praticamente onipresença da TV nos lares brasileiros,  uma pesquisa realizada em 2015 pela secretaria de comunicação social da presidência da república afirma que os brasileiros assistem à televisão, em média, 4h31 por dia, de 2ª a 6ª-feira. Chama atenção que essa mesma pesquisa afirma que 72% nos brasileiros assiste apenas a TV aberta.

Sendo assim, não há como negar que a mídia é uma poderoso meio para a constituição do pensamento político e social da população brasileira, e possui um papel central como órgão de controle social informal e formal. Pois Jornais, revistas e principalmente a TV e a internet, investigam, acusam, condenam e executam os réus escolhidos por eles, manobram a massa e influenciam nas politicas criminais. Para Marília Budó (2013, p.115) os meios de comunicação de massa executam tarefas inerentes às atividades das agências do sistema penal. Produzem um inquérito por vezes com direito a gravações de imagens e voz, acusa condena e ainda executa a pena. A começar pela difusão de discursos que legitimam atitudes arbitrárias por parte das agências executivas, dentro da ideia  de que “bandido deve sofrer” e de que os direitos fundamentais significam “tolerância à bandidagem”.

Para alimentar essa dicotomia social, as notícias sobre crimes são tratadas sempre de uma forma maniqueísta. Divide-se os dois lados da questão: o bem e o mal, sendo que de cada lado há um estereótipo a ser reforçado, e todos devem assumir os seus papéis. Uma questão importante a esse respeito é a própria seletividade dos criminosos dada no sistema penal capitalista, a qual é, como visto, baseada em um senso comum. Deve-se refutar o caráter fortuito de que sempre pessoas com as mesmas características sejam criminalizadas. Essa refutação se dá “pela atribuição da sua constância às leis de um código social (second code, basic rules) latente integrado por mecanismos de seleção dentre os quais têm-se destacado a importância central dos ‘estereótipos’ de autores (e vítimas), associados às ‘teorias de todos os dias’ (every day theories), isto é, do senso comum sobre a criminalidade” (Andrade, 2003 a, p. 268)

Isto gera uma clemência por punição a estas classes mais vulneráveis, e esta diretamente ligado ao distanciamento  entre “criminalidade real e criminalidade percebida” e diz respeito a equação (informação + entretenimento), uma forma de cobertura midiática do crime que mistura formatos de notícia e entretenimento.  Isso torna o medo desproporcional se analisarmos as taxas oficiais, e busca punir o setores mais vulneráveis, para Zaffaroni, “cada vez mais são punidos os pequenos delitos, Todas as agências executivas do Poder Punitivo (mídia, Poder Judiciário, sistema penitenciário, políticos e a própria polícia) operam nesse sentido: criminalizar a pobreza.”.

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Para Marília Budó (2006, p.8), o caráter comercial da informação é preponderante no que se refere aos veículos de comunicação brasileiros. Ao optar entre os valores notícia interesse (do público) e importância, aquele se sobrepõe, abrindo espaço na divulgação da informação para interesses individuais, e, consequentemente, para o sensacionalismo. Opta-se, então, pela confusão entre informação e entretenimento, ressaltando-se os aspectos engraçados, dramáticos e de aparente conflito, para então divertir.  Para ANIYAR DE CASTRO (2005 p. 155), se acrescentarmos  que a comunicação geralmente é um reforço de outros meios de comunicação informal (família, religião, educação), não apenas porque, visando o lucro, os meios de comunicação transmitem justamente o que correspondem valores e expectativas existentes, devemos concluir que a notícia, como a totalidade dos meios, é uma forma de controle social.

Diante ao exposto é incontestável que em uma sociedade tão desigual e caótica como a nossa, exista a influência dos meios de comunicação de maneira relevante e que influenciam na sociedade como um todo, principalmente nas políticas criminais, que é onde o medo se aproxima das classes dominantes. Quanto mais se difunde o medo, maior é o controle social contra aqueles em direção aos quais se orienta o temor. Dessa maneira, não é difícil perceber o papel legitimador dos meios de comunicação de massa em relação à adoção de políticas criminais autoritárias.

Existe um consenso entre todas as áreas sociais de que a mídia sensacionalista influencia na sensação de insegurança da população, de que é ferramenta de controle social, fomenta a violação de direitos fundamentais, e caminha na contramão do estado democrático de direito, dando popularidade à politica de arrochamento das políticas criminais, segregando e rotulando uma parcela da população, adotando um esquema de repartição dos papeis da vítima e do agressor, que corresponde, normalmente, em grande medida, à relação entre grupos sociais privilegiados e “respeitáveis” de uma parte, e grupos marginais e “perigosos” do outro, agindo como uma verdadeira agência executiva do sistema penal.


5. REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira. Sistema penal máximo versus cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003.

ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de janeiro, Editora Revan, 2005.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. 3 ed. Rio de janeiro Editora Revan, 2002.

BUDÓ, Marília de Nardin. Mídia e controle social: Da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural,1 ed., Rio De Janeiro Editora Revan, 2013.

COHEN, Stanley, “Folk devils and moral panics”, third edition,Routledge 2002.

IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Censo de 2007. Disponível em:

ZAFFARONI, E Raul. Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Rio de Janeiro, Revan, 2001.

ZAFFARONI, E Raúl; BATISTA, Nilo; et. al. Direito penal brasileiro. v. I. 2 ed. Rio de janeiro, 2003.


Nota

[1]          - “for conservatives, the media glamorize crime, trivialize públic insecurities and undermine moral authority; for liberals the media exaggerate the risk of crime and whip up moral pancs to vindicate an unjust and authoritarian crime control policy, in these “media panics”, the spirals of reaction to any new medium are utterly repetitive and predictable.” (2002 p. 24)

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