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As investigações aeronáuticas e a persecução penal: a Lei nº 12.970/14 e a interface entre os princípios

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12/08/2024 às 00:10
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3. Lei 12.970/2014

Acidentes aeronáuticos de grande repercussão, embora não sejam tão comuns (felizmente), geram preocupação à comunidade internacional não só quanto às suas consequências, como também pelo crescente número de indivíduos que optam pelo transporte aéreo para de deslocar de um local ao outro.

Por essa razão, o sinistro aéreo atrai atenção de todas as esferas do poder público. Para o judiciário essa demanda se revela em forma de ações de reparação de danos materiais e morais, questões trabalhistas e também a responsabilização criminal.

Para a melhor resolução dos conflitos, o Judiciário exige a presença de elementos probatórios confiáveis que, por sua vez, são, em tese, fornecidos pela investigação aeronáutica – realizada pelo SIPAER –, visto que os órgãos policiais não possuem formação técnica suficiente para a investigação de casos de acidentes aeronáuticos.

Essa utilização da investigação aeronáutica no processo judicial, no entanto, conforme já explicado no decorrer do presente estudo, traz consigo inúmeros problemas e efeitos indesejados, e por essa razão a comunidade aeronáutica internacional, na figura da ICAO, passou a orientar os Estados-membros a criarem estratégias que evitem esse impasse94.

Os Estados Unidos da América criaram normatizações da matéria em seu Código Técnico (US Code, Title 49 – Transportation, §1114 – Disclosure, availability, and use of information); a União Europeia emitiu a Regulation (EU) nº. 996/2010 – documento com orientações quanto a proteção das informações coletadas, com base no Anexo 13 da Convenção de Chicago; e a Espanha, acompanhando as recomendações do Regulation (EU) nº. 996/2010, realizou alterações em sua legislação aeronáutica95.

No Brasil, o Código Brasileiro de Aeronáutica – Lei nº. 7.565. de 1986 – já previa algumas medidas referentes à necessária separação dos procedimentos aeronáuticos e judiciais, mas foi com a Lei nº. 12.970. de 2014 que o Brasil adotou uma posição de vanguarda e internalizou de forma mais rigorosa as orientações da ICAO.

Tudo teve início com o Projeto de Lei 2453/2007, que na Câmara dos Deputados recebeu novas alterações e numeração específica – PLC 102/2012. O Projeto de Lei foi, originariamente, confeccionado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Crise do Sistema de Tráfego Aéreo, instaurada após o acidente do voo GOL 1907, em 200796.

Retornando da Câmara dos Deputados, o PLC 102/2012 foi incorporado ao Código Brasileiro de Aeronáutica pelo Senado Federal, passando a ser designado como PL 2453-G/2007, quando foi finalmente aprovado pelo Poder Legislativo em 10 de abril de 2014 e enviado à Presidência da República para a sua sanção.

Assim, após quase sete anos de tramitação, o PL 2453-G/2007 foi convertido na Lei nº. 12.970. de 08 de maio de 2014.

Sobre a Lei, Marcelo Honorato afirma que ela é considerada pela ICAO a legislação mais precisa e avançada no mundo, no tocante “à proteção do procedimento investigativo voltado exclusivamente à prevenção de acidentes aeronáuticos, bem como proporciona eficaz coordenação entre a atuação jurisdicional e os objetivos da prevenção de novos acidentes aéreos” 97 .

A Lei nº. 12.970/14, portanto, traz alterações ao Código Brasileiro de Aeronáutica no que concerne a investigação SIPAER (seção I), competência para investigação SIPAER (seção II), sigilo profissional e proteção à informação (seção III) e acesso aos destroços de aeronave (seção IV) 98.

O presente capítulo tem como objetivo explicar o contexto social que levou à redação, e posterior edição, da Lei nº. 12.970/14, bem como apresentar os argumentos da ADI que foi impetrada no Supremo Tribunal Federal contra alguns dispositivos da Lei e, por fim, explicar o motivo pela qual a Lei nº. 12.970/14 serve como garantia não só aos princípios da investigação aeronáutica, como também aos princípios processuais penais.

3.1. Acidentes com aeronaves da GOL e da TAM e a CPI do Apagão Aéreo

Em 29 de setembro de 2006 ocorreu o maior desastre aéreo da história do Brasil até o momento99. O voo GOL 1907 colidiu com a aeronave Legacy 600, vindo a vitimar 154 vidas, no estado no Mato Grosso.

O acidente do GOL 1907 passou a representar, também, outro marco indesejado na história do país: desencadeamento da crise no setor aéreo. A tragédia com o voo da GOL revelou um sistema com inúmeros problemas estruturais e a aparente incompetência e inércia das autoridades para solucioná-los100.

Teve início, então, a CPI do Apagão Aéreo, criada pelo Requerimento nº. 401. de 2007, a qual visava investigar os fatores que levaram o Brasil a um momento tão instável no sistema de controle do tráfego aéreo.

Em 17 de julho de 2007 – menos de um ano após o acidente do GOL 1907 –, a aeronave do voo TAM 3054, durante o procedimento de pouso no Aeroporto de Congonhas/SP, colidiu com edifício próximo à pista de pouso, levando 199 pessoas a óbito, tornando-se, então, o maior desastre aéreo da história do Brasil101.

Assim, a CPI do Apagão Aéreo adotou três linhas básicas de investigação: a primeira era destinada às causas do acidente com o voo 1907 da GOL; a segunda visava verificar os problemas do sistema de tráfego aéreo brasileiro; e a terceira destinou-se à investigação dos ilícitos administrativos e penais praticados na INFRAERO, bem como abordar o acidente com o voo 3054 da TAM e questões institucionais da ANAC102.

Foi em 2007, portanto, que surgiu o Projeto de Lei 2453/2007, conforme já foi visto. Diante do contexto de instabilidade no sistema de tráfego aéreo, bem como após a ocorrência dos dois maiores desastres aéreos do país, as autoridades competentes verificaram a necessidade de minimizar os efeitos prejudiciais dos sinistros aéreos a partir de uma legislação específica para contextos de investigação de acidentes aeronáuticos que visasse, exclusivamente, a prevenção de novos sinistros.

3.2. ADI 5667: Inconstitucionalidade da Lei nº. 12.970

Em 24 de fevereiro de 2017, o então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot Monteiro de Barros, propôs uma ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, contra os artigos: 88-C, 88-D, 88-I, §2º, 88-K e 88-P do Código Brasileiro de Aeronáutica, com a redação dada pela Lei nº. 12.970.

Originada da representação da Procuradoria da República em São Paulo, a ação que recebeu o número de ADI 5667 e foi distribuída ao Min. Celso de Mello, defende os pontos que abordaremos a seguir.

Inicialmente, para facilitar a compreensão, vamos transcrever os artigos combatidos:

Art. 88-C. A investigação Sipaer não impedirá a instauração nemsuprirá a necessidade de outras investigações, inclusive para fins de prevenção, e, em razão de objetivar a preservação de vidas humanas, por intermédio da segurança do transporte aéreo, terá precedência sobre os procedimentos concomitantes ou não das demais investigações no tocante ao acesso e à guarda de itens de interesse da investigação.

Art. 88-D. Se, no curso de investigação Sipaer, forem encontrados indícios de crime, relacionados ou não à cadeia de eventos do acidente, far-se-á a comunicação à autoridade policial competente.

Art. 88-I. São fontes Sipaer:

(...)

§ 2o A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição judicial, observado o art. 88-K desta Lei.

Art. 88-K. Para o uso das fontes Sipaer como prova, nos casos permitidos por esta Lei, o juiz decidirá após oitiva do representante judicial da autoridade Sipaer, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas.

Art. 88-P. Em coordenação com a autoridade de investigação Sipaer, ficará assegurado a outros órgãos, inclusive da autoridade de aviação civil e da polícia judiciária, o acesso à aeronave acidentada, aos seus destroços ou a coisas que por ela eram transportadas, somente podendo haver manipulação ou retenção de quaisquer objetos do acidente com anuência da autoridade de investigação Sipaer.

Para o ex-Procurador-Geral da República, os dispositivos supracitados violam o art. 5º, XXXV, LIV e LV, art. 37, caput, art. 129, I, VI, VIII e IX, e o art. 144, §§1º, I, e 4º da Constituição da República.

O primeiro artigo combatido pela ADI é o art. 88-I, § 2º. Para a Procuradoria, a vedação ao acesso a dados dos sistemas de informações de notificação voluntária de ocorrências e às conclusões das investigações do SIPAER sobre acidentes aeronáuticos colidem com o art. 5º, LIV, da Constituição Federal, “e seus consectários lógicos: a ampla defesa e o contraditório (que integra a primeira)” 103 .

Sobre esse ponto, a ADI afirma que o disposto no artigo veda o acesso de pessoas e órgãos envolvidos, como Ministério Público e polícia criminal, a informações de seu legítimo interesse e necessárias ao cumprimento de sua missão constitucional. Desta forma, a proibição de acesso suprimiria o direito constitucional de defesa.

Defende, ainda, que os dispositivos estabeleceram entraves “ilegítimos” ao princípio do devido processo legal, dificultando o acesso à justiça e à ampla defesa.

A ADI discorre, ademais, sobre o princípio da reserva da jurisdição. Neste aspecto, apenas aos órgãos judiciários é permitido estabelecer limites, formas e modos de alcance no tocante aos direitos fundamentais, não podendo lei ordinária impor essa “barreira”.

Quanto à violação ao devido processo legal, o art. 88-I, § 2º representaria entrave ao livre convencimento motivado, impedindo que o magistrado valorasse diretamente provas produzidas pelo SIPAER.

Outrossim, as normas colidiriam com a garantia constitucional de inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV da Constituição Federal), proibindo que a investigação técnica realizada pelo SIPAER seja utilizada para fins judiciais.

Os arts. 88-I, §2º e 88-K contrariam também, na visão da Procuradoria, os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade.

No tocante à violação aos artigos 129 e 144 da Constituição, a ação argumenta que os dispositivos impugnados:

(...) cerceiam o exercício das atribuições do Ministério Público no processo penal, de modo a violar diretamente o art. 129, VIII, da Constituição que define como função institucional do Ministério Público requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial (ADI 5667, Pg. 10).

Os dispositivos da Lei nº. 12.970/14, além de comprometer o exercício do poder investigatório do Ministério Público, aos olhos do Procurador, conflitam com as funções constitucionais de investigação da polícia criminal (art. 144, §§1º, I e 4º da CF).

Destarte, os arts. 88-I, §2º e 88-K estariam impondo reserva de jurisdição à obtenção de dados do SIPAER, em confronto com a liberdade de investigação do Ministério Público e da polícia.

O art. 88-C também seria passível de causar lesão às atribuições constitucionais do Ministério Público e da polícia criminal, bem como à garantia de acesso à jurisdição. Sobre o tópico, a Procuradoria argumenta que:

(...) a precedência absoluta da investigação aeronáutica prevista no art. 88-C é desnecessária e exorbitante para os fins do SIPAER. Basta que se garanta pleno acesso aos peritos aeronáuticos ao local e aos vestígios do evento e preservação de ambos, para que a investigação aeronáutica se desenvolva sem embaraço. Não há necessidade de impedir que peritos criminais igualmente acompanhem esse trabalho e procurem, em coordenação com os profissionais do SIPAER, preservar a integridade de provas relevantes para processos judiciais, como ocorre em diversos países (ADI 5667, Pg. 23).

Sobre o art. 88-D, defende-se que este cria entrave à titularidade da persecução penal por parte do Ministério Público e à função de investigação criminal das polícias federal e civil. Importante frisar que a Procuradoria assevera que este dispositivo não é incompatível com a Constituição, desde que seja interpretado como não impediente da iniciativa do Ministério Público e das polícias de acessar a investigação aeronáutica, para avaliar a existência, ou não, de indícios de infração penal. Logo, não se pode transferir à aeronáutica a competência para avaliar a existência de um delito, em usurpação da opinio delicti, que é privativa do Ministério Público.

Quanto aos arts. 88-N e 88-P, caso interpretados estritamente, estes ofenderiam a eficiência da persecução penal nos casos em que as autoridades aeronáuticas não puderem se fazer imediatamente presentes ao local do sinistro, impedindo que a polícia adote a previdência do art. 6º do Código de Processo Penal104.

O ex-Procurador-Geral afirma, ainda:

As normas instituem excesso e inadequação na proteção dos dados do SIPAER, os quais, apesar de constituírem relevantes elementos de provas, não possuem núcleo essencial de relevância protegido constitucionalmente, de modo a condicionar o acesso, pelas partes e órgãos públicos constitucionalmente interessados no esclarecimento de acidentes aeronáuticos, a prévia autorização judicial, segundo o art. 88-K do CBA (ADI 5667, Pg. 26).

A ADI defende que os artigos combatidos, como o de vedação de emprego de dados e documentos do SIPAER em processos judiciais e administrativos, mostram-se contraproducentes, irracionais e inconstitucionais ao impedir que os elementos utilizados na investigação aeronáutica possam ser aplicados na instrução de demandas judiciais e administrativas.

Sobre a importância que a Legislação aeronáutica dá à proteção dos colaboradores, a peça rebate sustentando que o princípio de responsabilidade não acolhe as imunidades que as normas pretendem estimular. Em último caso, o ex-Procurador-Geral da República pondera que a lei poderia receber interpretação conforme a Constituição, permitindo o compartilhamento das informações sem violar a garantia constitucional da não autoincriminação. Para isso, estabelecer-se-ia que as informações autoincriminatórias prestadas na investigação aeronáutica só poderiam ser utilizadas nas ações penais se os réus admitissem a conduta na esfera penal.

A necessidade de sigilo também é um argumento confrontado na ação de inconstitucionalidade. Afirma-se que isso não obsta o compartilhamento de informações, uma vez que o processo judicial pode ocorrer sob sigilo, sempre que necessário.

Confrontando a teoria que defende que a Lei nº. 12.970/14 adequa o Brasil às normativas da Organização Internacional da Aviação Civil, o Procurador argumenta que a Convenção de Chicago não veda o compartilhamento de investigações aeronáuticas com autoridades civis e criminais e, mesmo que vedasse, essa disposição violaria a Constituição Federal.

Por derradeiro, no tocante às análises de caráter subjetivo realizadas pelo SIPAER, para a Procuradoria-Geral da República, é preciso se presumir que os órgãos jurisdicionais tenham capacidade suficiente para distinguir os elementos factuais e objetivos constantes dos relatórios das avaliações de caráter subjetivo. Restrições nesse ponto gerariam uma necessidade de retrabalho, uma vez que exigiriam a realização de duas apurações: aeronáutica e cível ou criminal, ofendendo os princípios da eficiência e da economicidade.

3.2.1. Conflito de normas constitucionais: ponderação

Não se presta, o presente trabalho, a aprofundar sobre a forma como deveria ser decidida a ADI 5667 pelo Supremo Tribunal Federal. Em face da controvérsia suscitada pela ação de inconstitucionalidade, no entanto, cumpre abordar superficialmente o tema, sem a pretensão de exauri-lo.

Nesse passo, infere-se da ADI que há um verdadeiro conflito de normas constitucionais e é com essa problemática que os Ministros do Supremo Tribunal Federal vão se deparar. Entende-se que, não obstante a linha que se seguir para decidir o impasse, a solução pode ser favorável à Lei nº. 12.970/14, e é isso que mostraremos brevemente a seguir.

Se adotarmos uma perspectiva neoconstitucional, ou seja, aplicarmos uma nova interpretação constitucional105, vai ser possível perceber, conforme afirma Luís Roberto Barroso, que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra dentro do texto normativo.

Com a análise da ADI 5667 nota-se a aplicação de alguns princípios e algumas cláusulas gerais. Sobre o tema, cumpre trazer a lição de Barroso, o qual afirma que as cláusulas gerais não trazem em si todos os elementos de sua aplicação, em outras palavras, a sua significação deve ser completada pelo intérprete, levando em consideração as circunstâncias do caso concreto106.

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Os princípios, por sua vez, não descrevem condutas específicas, mas sim normas que “consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios” 107 .

Devido a isto, Barroso afirma que a colisão de normas constitucionais passou a ser vista como um fenômeno natural dentro do constitucionalismo contemporâneo. Para resolver estas situações, deveria o intérprete, destarte, avaliar qual seria a melhor resolução para o caso.

No mesmo sentido, para Alexy, nas palavras de André Canuto de F. Lima, quando houver a colisão entre princípios (“lei da colisão”), um dos princípios deverá preponderar frente ao outro, através de um mecanismo de ponderação108.

Por ponderação Barroso define:

Neste cenário, a ponderação de normas, bens ou valores (v. infra) é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele (i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. Conceito-chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade (BARROSO, 2007, Pgs. 203-250).

O jusfilósofo alemão, Robert Alexy, explicou, em um evento no Fórum Trabalhista a Barra Funda/SP ocorrido em 2016 que, em casos de colisão de princípios, é preciso que o intérprete avalie qual dos princípios, quando aplicado, vai ferir “com menor agressividade e intensidade o outro” 109.

No caso concreto (Lei nº. 12.970/14), seria necessário ponderar quais normas e princípios deveriam ter maior valor. De um lado poderíamos colocar o devido processo legal e os princípios da administração pública, e do outro lado, poderíamos suscitar, a título de exemplo, os incisos XIV, XXXIII e LVI do art. 5º da Constituição Federal. Importante ressaltar que nenhum dos princípios deve ser afastado de forma integral, mas sopesados.

Assim, a alegada violação aos princípios da administração pública poderia ser relativizada quando em confronto com as possibilidades de sigilo dispostas nos incisos XIV e XXXIII do art. 5º, ou seja, à administração pública é permitido manter alguns documentos em sigilo, desde que em função da segurança nacional, por exemplo.

O devido processo legal, por sua vez, deve ser respeitado e por essa razão, ao se contemplar o disposto no art. 5º, LVI (inadmissibilidade de provas ilícitas), conclui-se que não há teratologia na disposição do art. 88-I, §2º. O que se procura é preservar o processo penal ao não permitir o ingresso de provas ilícitas, ao mesmo tempo em que se garante a idoneidade da investigação aeronáutica.

Pelo acima exposto, percebe-se, de forma simplificada, que ao se aplicar a ponderação de princípios e normas, é possível enxergar que a Lei nº. 12.970/14, e seus dispositivos impugnados, não representam violações ao texto Constitucional, ao contrário, procuram resguardar princípios específicos através da distinção necessária, e legalmente permitida, entre a investigação aeronáutica e o processo judicial.

3.2.2. Análise sob a perspectiva do Estado de Direito

Poder-se-ia analisar a ADI 5667 sob outra perspectiva: a do Estado de Direito. Enquanto crítica ao neoconstitucionalismo e sua possível discricionariedade, Jorge Octávio Lavocat Galvão, em sua tese de doutorado intitulada “O Neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito” afirma que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei deve ser tida como exceção, e não regra, como uma reprovação grave, que exige cautela por parte dos cidadãos e dos políticos. Ou seja, “não é qualquer lei que tanja aspectos constitucionais que pode vir a ter a sua inconstitucionalidade declarada, mas apenas aquelas que efetivamente interfiram na capacidade soberana de julgamento dos indivíduos” 110 .

Em um Estado de Direito, as leis representam temas controversos que foram delineados através de um processo político democrático. Assim, as razões de primeira ordem (moralidade, ética, princípios pessoais) são substituídas por razões de segunda ordem (leis, normas, etc.), que possuem imperatividade sobre as primeiras111.

Nesse passo, Galvão afirma que o magistrado não pode declarar inconstitucional uma lei, guiado por sentimentos pessoais, mas sim por um juízo imparcial de correção, demonstrando que a lei afastada não era coerente com os princípios morais da prática jurídica.

O dilema entre estabilidade e mudança deve ser resolvido a partir de uma reflexão em que se analisa de maneira global se a declaração de inconstitucionalidade de uma lei servirá mais ao propósito de tratar os cidadãos com dignidade do que o respeitoà legalidade e à democracia (GALVÃO, 2014, Pg. 290).

Aplicando a teoria defendida por Jorge Galvão ao caso da ADI 5667, poderíamos defender que, obedecida a constitucionalidade formal e não possuindo teratologias ou violações aos direitos individuais – a Lei nº. 12.970/14 procura conferir segurança ao espaço aéreo, através de condutas legalmente previstas e que visam resguardar os princípios do nosso ordenamento jurídico –, não caberia ao judiciário declarar sua inconstitucionalidade com base em uma aplicação subjetiva de princípios constitucionais.

Cumpre ressaltar que Galvão não pretende negar a força normativa da Constituição, mas reconhecer que as cláusulas constitucionais dão ensejo a uma pluralidade de interpretações conflitantes, a depender da perspectiva política adotada. Assim, “se exige uma atuação judicial mais cautelosa, a fim de se evitar que todas as decisões políticas da sociedade sejam transformadas em questões constitucionais” 112 .

Nota-se que, tanto a doutrina neoconstitucionalista, quanto a sua crítica que defende a soberania do Estado de Direito, concordam que as normas constitucionais conflitam entre si, a divergência reside, então, na solução para essa pluralidade de interpretações.

Assim sendo, independentemente da doutrina que for escolhida para resolver o conflito instaurado pela ADI 5667, os dispositivos impugnados da Lei nº. 12.970/14 estão respaldados pela Constituição Federal e são legítimos a cumprir sua finalidade, muito embora a ação confronte isso.

3.3. Utilização da Investigação Aeronáutica do SIPAER à luz da Lei 12.970: garantia aos princípios processuais penais e aeronáuticos

É possível extrair, de todo o presente trabalho, as mais variadas diferenças entre o processo penal e a investigação aeronáutica. Não obstante a importância de ambas as searas, é nítida a necessidade de se encontrar meios de atender às demandas judiciais sem que, para isso, seja preciso violar a legislação aeronáutica.

Por esse motivo, o presente tópico tem como objetivo demonstrar a possibilidade de “coexistência” entre a investigação aeronáutica e o processo penal, e como a Lei nº. 12.970/14 visa não apenas resguardar a investigação aeronáutica, mas também impor limites de forma a não violar princípios determinadores do processo penal.

De forma reflexa, também será possível rebater alguns dos pontos trazidos pela ADI 5667, de maneira a explicar a necessidade dos dispositivos, bem como acalentar os corações dos juristas que enxergam na Lei nº. 12.970/14 um obstáculo à persecução penal.

3.3.1. Informações prestadas voluntariamente

Quanto à vedação de compartilhamento das informações prestadas voluntariamente ao SIPAER (art. 88-I, §2º da Lei 12.970), importante destacar o trazido no Estudo Preparatório nº. 001/2017/CENIPA. Realizado com vistas a analisar a ADI nº. 5667, o Estudo traz um contexto histórico importante para a compreensão da controvérsia.

De acordo com o CENIPA, já houve época em que no Brasil se adotava a investigação de acidentes aéreos focada na persecução penal/punitiva. Em 1941, com a criação do Ministério da Aeronáutica, instituiu-se a figura do “Inquérito Técnico Sumário: ”, o qual pretendia averiguar a ocorrência de culpa, com a finalidade de impor responsabilização aos envolvidos no acidente aeronáutico113.

Tal modelo, no entanto, apresentou resultados “pobres, escassos de informações voluntárias (nenhuma colaboração dos envolvidos), carente de análises detalhadas e sistêmicas, com pouca, senão rara, contribuição prática para a prevenção”114. Desta forma, em 1944 o Brasil aderiu à Convenção de Chicago, de modo a alterar os mecanismos de prevenção de acidentes aeronáuticos.

Esse primeiro ponto possibilita a compreensão do histórico que nos levou a adotar o modelo dualista115 de investigação de acidentes aeronáuticos: o sistema policial-judiciário e o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos (SIPAER), independentes um do outro.

Ademais, imperioso se analisar os efeitos jurídicos da utilização das informações concedidas voluntariamente e a razão pela qual não devem ser utilizadas em um processo judicial.

Marcelo Honorato dispõe que, diferentemente das testemunhas arroladas em um processo judicial, os colaboradores na investigação aeronáutica não prestam compromisso, assim, lhes é possível omitir fatos conhecidos sem incorrerem no delito de falso testemunho (art. 342. do CP)116. Outra diferença é que as entrevistas não passam pela garantia constitucional do contraditório. Os entrevistados não são contraditados, visto que o procedimento investigativo aeronáutico não conta com partes, não haveria motivos para declarar um colaborador como suspeito ou incompatível.

Outra característica que o autor cita é o fato de que as colaborações voluntárias são colhidas com o compromisso de utilizá-las com o único fim de prevenir novos acidentes, e limitadas à instrução da investigação aeronáutica. Desta forma, tais entrevistas são produzidas sob a limitação de aplicabilidade jurídica, nos termos do art. 88-I, § 3º do Código Brasileiro de Aeronáutica (alterado pela Lei nº. 12.970/14)117.

Assim, toda a proteção dada às informações concebidas voluntariamente (Princípios da Participação Voluntária e da Confiança) é importante para criar um ambiente de segurança entre os operadores aéreos, Just Culture118 , ao dar confidencialidade às informações de segurança de voo, desde que não digam respeito a condutas dolosas ou negligências intencionais119.

Outro ponto relevante à discussão, é a garantia da não autoincriminação (ou Nemo tenetur se detegere). Conforme já foi visto, o Princípio da não autoincriminação, garantido no art. 5º, LXIII da Constituição Federal, parte da premissa que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Nesse passo, ao citar Paulo Mário Canabarro Trois Neto em sua obra, Marcelo Honorato afirma que este Princípio abrange qualquer declaração extraída de outros procedimentos e que possam, posteriormente, ser aplicadas em um processo penal com a finalidade sancionadora120.

Desta forma, a violação ao Princípio do Nemo tenetur se detegere se torna ainda mais grave quando percebemos que na investigação aeronáutica, a entrevista foi concedida mediante a garantia Estatal de que as informações colhidas seriam utilizadas apenas para fins preventivos, ou seja, qualquer mudança nesse entendimento acarretaria uma fraude à confiança do Poder Estatal, em violação a norma processual disposta no art. 88-I, §3º121.

A última classe de informações concedidas voluntariamente diz respeito ao Safety Report que no Brasil, pode vir pelo Relatório de Prevenção ou o Relatório ao CENIPA para a Segurança de Voo – RCSV. Como se pode extrair do tópico voltado às Recomendações de Segurança, o Safety Report funciona como um canal de comunicação entre os gestores e operadores da viação, permitindo que se possam reportar quaisquer condições inseguras detectadas, auxiliando na finalidade precípua do SIPAER: prevenir novos acidentes.

Para melhor elucidar a importâncias dos Safety Reports, cumpre citar a Teoria de Heinrich, denominada Teoria Dominó. Heinrich afirma que se houver um conjunto de condições inseguras alinhadas (como um dominó), qualquer ato inseguro pode levar a um acidente. Assim, Cármen Correa e Moacyr Machado explicam:

Esta teoria busca reconstruir a série de eventos que constituem o acidente, mas as condições inseguras carecem de definições claras, assim como os atos inseguros, ou seja, estes termos representam mais as conclusões do investigador do que a observação real do fenômeno, ou seja, diferentes investigadores apresentam diferentes pontos de vista, devido à falta de critérios previamente estabelecidos (PEREIRA CORREA, CÁRMEN REGINA; MACHADO CARDOSO JUNIOR, MOACYR, 2007, Pg. 188).

Logo, a possibilidade de atenuação dessas pequenas ocorrências enfraquece o encadeamento que pode levar a um sinistro aéreo de grandes proporções e, por essa razão, a emissão de Safety Reports é imprescindível para a atividade preventiva122.

Sobre o assunto, Regis Vinicius Silva Barreto sustenta que a atividade aeronáutica é considerada de risco e depende de sistemas complexos de segurança. Desta forma:

(...) a cultura repressiva é vista como sendo uma linha de ação que, ao invés de ajudar, torna-se ineficaz e, talvez injusta, pois a base de toda a atividade preventiva no âmbito aeronáutico é o fluxo voluntário de informações e, de maneira antagônica, a cultura repressiva constrange a espontaneidade das pessoas que tem condições de reportar os perigos latentes (BARRETO, 2015, Pg. 50).

Fica evidente, portanto, que a confidencialidade garantida a essas informações é imprescindível para que os operadores continuem a reportar as situações de insegurança ocorridas no dia-a-dia da aviação e, com isso, colaborem para um espaço aéreo mais seguro.

Evidentemente que os envolvidos direta ou indiretamente em um acidente ou incidente aeronáutico não teriam o mesmo ânimo em contribuir com a investigação sabendo que seus relatos seriam utilizados para a punição de seus colegas ou até mesmo a sua própria punição (PEDRO, 2011).

Cumpre frisar, por derradeiro, que o reporte de atos criminosos não se reveste de sigilo, tanto por extrapolar o campo de atuação da autoridade SIPAER (art. 88-A, §2º), como também para evitar que a confidencialidade dos reportes de segurança funcionem como óbice à persecução penal.

3.3.2. Investigadores aeronáuticos enquanto testemunhas ou peritos

Ao investigador aeronáutico que tenha atuado nas investigações referentes a determinado sinistro aéreo, é vedada a participação enquanto perito ou testemunha de um processo judicial (art. 88-B e 88-I, § 4º, ambos da Lei nº. 12.970/14) 123.

A Lei nº. 12.970/14, no entanto, não é a única norma que impede a participação do investigador aeronáutico. Nos termos da Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica 3-12/2008 – Código de Ética do SIPAER, ao investigador SIPAER é imposto o dever de sigilo, em qualquer modalidade de participação em outros processos, faz saber:

3.8 Abster-se de:

j) Participar, em qualquer nível de atuação, de procedimento de investigação alheio ao do SIPAER, referente a um determinado acidente, incidente ou ocorrência de solo, quando estiver designado para participar da investigação da mesma ocorrência.

(...)

4.4 O OSV/OSO, ASV/ASO, Elemento Credenciado deve guardar sigilo profissional sobre o que saiba em razão de sua função, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha em processo relativo a Acidente Aeronáutico, Incidente Aeronáutico ou Ocorrência de Solo que investigou ou estiver investigando (COMANDO DA AERONÁUTICA, 2008).

Tal vedação também encontra amparo na legislação processual penal, no art. 207. do Código, in verbis:

Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

Possível concluir, portanto, que os investigadores do SIPAER podem recusar-se a depor em quaisquer procedimentos punitivos (penais ou administrativos), nos termos da farta legislação supracitada.

Quanto à condição de perito, não obstante a restrição do art. 88-B, a Lei nº. 12.970/14 alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica de forma a incluir a cooperação técnica entre a autoridade aeronáutica e o Poder Judiciário. Para isso, o art. 88-E dispõe que a autoridade aeronáutica disponibilizará, a pedido do Poder Judiciário ou da autoridade policial, profissionais do SIPAER – que não tenham atuado na investigação do acidente em questão –, com o propósito de auxiliar na perícia do acidente, enquanto perito judicial:

Art. 88-E. Mediante pedido da autoridade policial ou judicial, a autoridade de investigação Sipaer colocará especialistas à disposição para os exames necessários às diligências sobre o acidente aeronáutico com aeronave civil, desde que:

I - não exista, no quadro de pessoal do órgão solicitante, técnico capacitado ou equipamento apropriado para os exames requeridos;

II - a autoridade solicitante discrimine os exames a serem feitos;

III - exista, no quadro de pessoal da autoridade de investigação Sipaer, técnico capacitado e equipamento apropriado para os exames requeridos; e

IV - a entidade solicitante custeie todas as despesas decorrentes da solicitação.

Parágrafo único. O pessoal colocado à disposição pela autoridade de investigação Sipaer não poderá ter participado da investigação Sipaer do mesmo acidente.

Em mesmo sentido, encontra-se o entendimento de Sérgio Fiuza, o qual defende que por se tratar de matéria complexa (a investigação de acidentes aeronáuticos), não há impedimento para que a autoridade aeronáutica, mediante pedido, indique peritos especializados para os exames necessários às diligências policiais124.

Para Marcelo Honorato o art. 279. do Código de Processo Penal, constitui outra norma apta a gerar o impedimento do profissional do SIPAER que também tenha atuado na investigação aeronáutica. Nos termo da legislação processual penal, não pode ser perito aquele que tenha prestado depoimento no processo ou opinado anteriormente sobre o objeto da perícia (art. 279, II do Código de Processo Penal).

Honorato distingue, por fim, os laudos de engenharia ou perícia técnica com os laudos produzidos pelo SIPAER. Enquanto aos participantes do segundo é vedado a participação no processo judicial, esse mesmo impedimento não ocorre nos casos dos peritos que tenham realizado “atividades de pesquisa” 125. O autor explica que essa diferenciação se dá porque os profissionais designados para as atividades de pesquisa não possuem relação com os laços principiológicos do SIPAER, mas tão somente com os ditames científicos126.

Por essa razão, as atividades de pesquisa não se enquadram no art. 88-I, §2º e, por conseguinte, não violam os Princípios da investigação SIPAER. O compartilhamento dos laudos da perícia científica é, neste passo, plenamente possível e recomendável, com respeito à celeridade e economia processuais.

3.3.3. A prioridade investigativa do SIPAER

Outro ponto da Lei nº. 12.970/14 atacado pela ADI 5667 é a prioridade investigativa conferida ao SIPAER. Apesar do inconformismo da Procuradoria-Geral da República, a precedência investigativa do SIPAER já constava, de maneira implícita, no art. 89. do Código Brasileiro de Aeronáutica, antes de ser revogado pela Lei nº. 12.970/14.

Com a nova lei, o art. 88-N passou a dispor sobre a matéria, tornando clara à precedência da autoridade aeronáutica que antes era resultado de uma atividade interpretativa:

Art. 88-N. Exceto para efeito de salvar vidas, preservação da segurança das pessoas ou preservação de evidências, nenhuma aeronave acidentada, seus destroços ou coisas que por ela eram transportadas podem ser vasculhados ou removidos, a não ser com a autorização da autoridade de investigação Sipaer, que deterá a guarda dos itens de interesse para a investigação até a sua liberação nos termos desta Lei. (destaquei)

Esta disposição representa uma exceção ao dever de inalterabilidade do estado das coisas e ao poder de apreensão da autoridade policial (arts. 6º e 169 do Código de Processo Penal).

Honorato pontua, ademais, o dever legal de todo cidadão de comunicar à autoridade pública mais próxima sobre a ocorrência de algum acidente aéreo ou da existência de destroços de aeronaves acidentadas, que se traduz em uma obrigação de maior poder vinculativo do que comunicação de crimes por parte do cidadão. Pois enquanto a primeira é uma obrigação pessoal, a segunda se encontra no campo discricionário de cada um127.

Na mesma obrigação recai a autoridade pública que, ao tomar conhecimento de algum sinistro ou fato relevante à autoridade aeronáutica, é obrigada a comunicá-la, sob pena de responsabilidade funcional (art. 88, parágrafo único do Código Brasileiro de Aeronáutica128).

Paulo Murillo Calazans assevera que a prioridade da investigação técnica sobre a criminal, permite angariar quantidade maior de informações disponíveis, principalmente de dados relacionados aos agentes envolvidos que, em sede criminal, são dificultados em razão da observância do Princípio da Não Autoincriminação, etc. “Como resultado de se valorizar o aprendizado, experiências desoladoras do passado efetivamente projetam-se para a prevenção de acidentes aéreos no futuro. Tem sido assim a história da aviação e, não por acaso, como dito, é o meio de transporte mais seguro existente”. 129

Para Fabio Anderson de Freitas Pedro, o interesse público da investigação aeronáutica é um interesse público primário (conceito dado por Luís Roberto Barroso), consubstanciado no interesse do Estado de promover a segurança do espaço aéreo, entendemos que investigar e prevenir um acidente são formas de segurança difusa, pois afetam a todas as pessoas em todos os continentes130 .

Nesse aspecto, não obstante o propósito pedagógico de uma sanção criminal, esta tem eficácia limitada na grande parte dos sinistros aéreos que não ganham repercussão na mídia, além de ser aplicada, via de regra, muito tempo após o acidente, tendo em vista a morosidade do sistema judiciário brasileiro. Por outro lado, a atuação do SIPAER possui eficácia mais ampla e célere, uma vez que as recomendações de segurança emitidas após a investigação pulverizam atitudes preventivas, através da análise de fatos, indícios, hipóteses, etc.131.

Em consonância com o entendimento esposado por Honorato, Fabio Anderson defende que a cultura da prevenção é mais importante do que a cultura da reparação, pois enquanto a primeira atinge toda a coletividade, a segunda, em geral, se limita a um conjunto determinado de pessoas132.

Outro importante aspecto da precedência investigativa do SIPAER é que ao possuir prioridade na investigação, ao SIPAER é possibilitada a adoção de medidas imediatas, aptas a mitigar elementos inseguros presentes nas operações aéreas em curso. Destarte, tendo em mente a Teoria de Heinrich (anteriormente citada), na medida em que a autoridade aeronáutica tem acesso aos elementos de um acidente, é possível que falhas operacionais e técnicas sejam identificadas e prontamente retificadas nas demais operações aéreas, com o fito de impedir novos acidentes pelas mesmas razões já detectadas133.

Destaca-se, sobre a prioridade investigativa do SIPAER que esta não se traduz em exclusividade e, por tal razão, não pode ser encarada como prejuízo à investigação policial.

Logo, torna-se imprescindível a coordenação entre as autoridades interessadas, de modo a não tornar a precedência investigativa da aeronáutica um “absolutismo investigativo” 134 e, com isso, violar o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição. Ao mesmo tempo, é preciso adotar providências para o desenvolvimento concomitante da investigação do SIPAER e da polícia, uma vez que uma atuação intempestiva da polícia poderia resultar na perda de informações importantes135.

Por este motivo o art. 88-P do Código Brasileiro de Aeronáutica (incluído pela Lei 12.970/14), dispõe que às demais autoridades e órgãos é garantido o acesso aos destroços e elementos do acidente, sob a supervisão da autoridade aeronáutica, faz saber:

Art. 88-P. Em coordenação com a autoridade de investigação Sipaer, ficará assegurado a outros órgãos, inclusive da autoridade de aviação civil e da polícia judiciária, o acesso à aeronave acidentada, aos seus destroços ou a coisas que por ela eram transportadas, somente podendo haver manipulação ou retenção de quaisquer objetos do acidente com anuência da autoridade de investigação Sipaer.

Assim, Honorato leciona que a melhor integração jurídica entre os dispositivos aeronáuticos e penais reside na possibilidade da autoridade SIPAER realizar a coleta de informações prioritariamente sem, contudo, alterar o estado das coisas, de maneira a permitir que a polícia judiciária desenvolva sua perícia técnica sem prejuízos.

Tem-se, portanto, que a precedência investigativa do SIPAER não representa óbice à atividade das autoridades policiais e judiciárias, mas tão somente uma preferência em razão da importância do bem jurídico tutelado – vida humana -, e tampouco se traduz em uma violação a dispositivos constitucionais, pois apenas institui um ordenamento das atividades, a fim de permitir que todos os órgãos satisfaçam suas necessidades, sem prejudicar a dos demais.

Corroborando o supracitado, Fabio Anderson assevera que a primazia do interesse público não representa uma aniquilação do interesse privado:

(...) o Poder Judiciário, pode e deve determinar a produção de provas, exames técnicos ou investigações, até mesmo utilizando tecnologias a disposição da administração, mas tal investigação deve ser conduzida de maneira independente da realizada pelos órgãos responsáveis pela proteção à aviação (PEDRO, 2011).

3.3.4. Compartilhamento de informações

Um dos pontos mais controversos da Lei nº. 12.970/14 reside na vedação do compartilhamento de determinadas informações para fins probatórios em processo judiciais. Este último tópico se presta a explicar o disposto na Seção III da Lei nº. 12.970/14 – Do Sigilo Profissional e da Proteção à Informação.

A primeira classe de informações que vamos distinguir é a das informações extraídas de dispositivos automáticos de gravação, os quais abrangem dados de comunicação e desempenho das aeronaves.

Espalhadas nos diversos incisos do art. 88-I da Lei nº. 12.970/14, essa classe de informações não está inclusa na vedação do art. 88-I, §2º, por não representarem informações concedidas voluntariamente, tampouco relatórios com juízos de valor emitidos pelo SIPAER.

Desta forma, de modo a não violar o Princípio da Inafastabilidade de Acesso ao Poder Judiciário136, os elementos extraídos dos dispositivos automáticos de gravação são plenamente compartilháveis, desde que atendido o requisito do art. 88-K da Lei137, ou seja, é preciso que o representante judicial da autoridade SIPAER seja ouvido previamente à utilização desses dados como provas em um processo judicial.

Assim, é possível afirmar que os incisos do art. 88-I, com exceção daqueles do §2º, são passíveis de serem utilizados com fins probatórios em processos judiciais, após ouvida a autoridade SIPAER, em atenção ao art. 88-K.

Honorato pondera que, conquanto seja possível a utilização desses dados na qualidade de provas, é preciso observar as garantias constitucionais relativas ao sigilo das comunicações, assim como à proteção da intimidade dos envolvidos. O autor explica que isso se dá uma vez que tais dados podem ser análogos a uma escuta telefônica ou ambiental, apesar de não estarem abrangidos pelo sigilo e proteção da intimidade dos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal, uma vez que são realizados em ambiente público.

Apesar de não estarem incluídas nas garantias constitucionais supracitadas, essas informações de comunicações aeronáuticas recebem sigilo através da própria legislação aeronáutica, quais sejam: Anexo 13 da Convenção de Chicago e a NSCA 3-13/2014. Logo, apesar de poderem ser disponibilizadas com fins probatórios, é preciso observar o resguardo às intimidades dos interlocutores.

Importante ressaltar que, ainda que não utilizadas com fins probatórios, ou seja, dispensada a oitiva da autoridade aeronáutica, a garantia do sigilo ainda é obrigatória a todos os dados fáticos acessados pelas autoridades, nos termos do art. 88-J138 da Lei nº. 12.970/14.

Honorato registra, ademais, sobre a custódia dos destroços, que nem sempre o compartilhamento das informações exigirá a custódia dos destroços pelas demais autoridades. Em muitos casos, a extração adequada das informações dos equipamentos de gravação de dados e comunicações é suficiente, sem necessitar da transmissão de posse de tais equipamentos.

Nesse passo, imprescindível que a autoridade aeronáutica garanta a fidelidade das informações coletadas antes da devolução dos componentes ao operador, de forma a possibilitar o repasse dos dados à autoridade policial ou judicial, em casos de investigações penais, cíveis, etc.139.

Frise-se, também, que caso a autoridade SIPAER tenha notícia da instauração de uma investigação policial sobre o sinistro aéreo, é necessária a observância do art. 88-R140, uma vez que o componente em questão pode representar o objeto do crime, nos termos do art. 6º, II, do Código de Processo Penal.

Outra classe de informações que, no mesmo molde das gravações, pode ser compartilhada é a dos laudos técnicos especializados. Honorato assim explica:

As atividades de pesquisa científica se amoldam à classe de informações passíveis de compartilhamento, na medida em que nada mais representam que um aprofundamento dos fatos, sob as rígidas balizas das ciências exatas, sem esquecer que são informações dotadas de sigilo, na qualidade de registros da investigação SIPAER (inciso VII do caput do art. 88-I do CBA), logo seu acesso por terceiros interessados é regulado pela Lei 12.527/2011, bem como, ao ingressarem no processo, devem ter a sua publicidade resguardada (art. 88-J do CBA) (HONORATO, 2014, Pg. 509).

Por este motivo, existindo inquérito policial ou ação penal em trâmite, a autoridade SIPAER é obrigada a comunicar a autoridade policial ou judicial da realização de exames laboratoriais – em especial as técnicas de ensaios destrutivos –, para possibilitar a requisição da antecipação de produção de provas pelo titular da ação penal.

Essa notificação se torna importante, ademais, uma vez que a manipulação dos destroços sem a presença das partes do processo judicial pode ensejar, no futuro, nulidade da perícia judicial, além de que, por representarem análises técnicas de elevados custo e tempo, seria contraproducente sua repetição141. Qualquer conduta contrária a essa disposição resultaria na violação do art. 88-P da Lei nº. 12.970/14.

Cumpre pontuar que o compartilhamento de tais dados é possível uma vez que representam a focalização de elementos factuais, não possuindo qualquer análise sob os princípios investigativos do SIPAER, assim como representa uma prova que pode ser contraditada, visto que seus peritos não estão acobertados pelo dever de sigilo direcionado aos peritos do SIPAER.

É de se salutar outro ponto que gera discussão no tocante à Lei nº. 12.970/14: a necessidade de se obter uma requisição judicial para a utilização das fontes de informações do SIPAER como provas em processo judiciais.

Essa disposição é necessária, pois as informações do SIPAER podem conter elementos especulativos, aptos a gerar prejuízo à cognição judicial (provas ilícitas), somado à possibilidade de produzir abalo à relação de confiança entre os colaboradores e os órgãos de prevenção aeronáutica.

Honorato explica, ainda, que o acesso à cena do acidente, bem como aos destroços, é franqueado à autoridade policial, dispensando a necessidade de intervenção judicial. A única observação necessária é que tal acesso deve ser submetido à coordenação da autoridade SIPAER (art. 88-P)142. Ressalte-se, nesse ponto, que a coordenação da autoridade aeronáutica não deve ser confundida com obstáculo, mas tão somente como maneira a organizar o acesso das demais autoridades aos elementos do acidente.

Por derradeiro, analisa-se a obrigatoriedade de manifestação do representante judicial do SIPAER para o compartilhamento de informações acima descrito.

Essa representação, exercida pela Advocacia-Geral da União está disposta no art. 88-K da Lei nº. 12.970/14143 e encontra sua principal finalidade na necessidade de distinção entre os elementos da investigação passíveis de serem utilizados como provas e os elementos de utilização vedada (art. 88-I, §2º).

É de se concluir que através da oitiva do representante judicial do SIPAER, o magistrado terá elementos suficientes para discriminar as informações que podem, ou não, serem utilizadas no processo judicial.

Sobre esse aspecto, Arizona D’Ávila assevera que o sigilo de determinadas informações é necessário, “seja porque o Brasil é signatário de acordo internacional nesse sentido, seja porque repugna à legalidade do Estado de Direito um agente do Poder Público assegurar ao cidadão o sigilo de uma informação e outro, em seguida, afastar aquele sigilo em nome do mesmo Poder Público” 144 .

Logo, o deferimento liminar inaudita altera parte é obstaculizado tanto para as informações de emprego probatório permitido, quanto para os dados concedidos voluntariamente e as análises e conclusões do SIPAER (art. 88-I, §2º)145.

Do acima exposto, conclui-se que a Lei nº. 12.970/14 não obstante opiniões contrárias, busca proteger os corolários da investigação aeronáutica, ao mesmo tempo em que garante a idoneidade do processo penal.

Para tanto, a novel lei confere atenção aos princípios basilares do SIPAER e, de modo reflexo, do processo penal.

Impedir a utilização de informações voluntárias e de análises e conclusões do SIPAER como provas em processos judiciais tem o condão de, ao mesmo tempo em que garante o influxo de informações à autoridade aeronáutica, evitar que os Princípios da Não Autoincriminação e da Inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos sejam violados.

De resto, as novas disposições do Código Brasileiro de Aeronáutica permitem que as duas investigações (aeronáutica e judicial) ocorram concomitantemente, prezando pela independência de cada uma, de modo que não sejam excludentes e possam cumprir suas finalidades quais sejam: preservar vidas (investigação aeronáutica) e responsabilizar os agentes culpados (processo penal).

Assim, em ideal semelhante ao que se procurou aqui defender, Pompeo Brasil afirma:

Há que se distanciar um pouco da ótica estritamente jurídica para compreender o escopo dessa investigação, que causa uma primeira reação de perplexidade aos olhos do aplicador do direito convencional.

Num segundo momento, assimilado o princípio da dupla investigação e a importância da missão de prevenir novos acidentes e mortes, ao invés de buscar culpados, conforma-se o jurista em dispensar o espaço adequado do Relatório SIPAER, que, de seu turno, não pode abrir mão da voluntariedade dos testemunhos, cientes, seus prestadores, de que seus nomes não serão revelados, dos dados médicos e psicológicos de agentes protagonistas do infortúnio, não raro tornados vítimas, caladas para sempre (BRASIL, 2012).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Marina Trindade. As investigações aeronáuticas e a persecução penal: a Lei nº 12.970/14 e a interface entre os princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7712, 12 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64931. Acesso em: 17 nov. 2024.

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