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Entidades familiares: uma análise da evolução do conceito de família no Brasil na doutrina e na jurisprudência

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Resumo:


  • O conceito de família no direito brasileiro evoluiu para abranger diversas formas de entidades familiares, além do casamento, reconhecendo uniões estáveis, famílias monoparentais e outras configurações baseadas em laços de afetividade e objetivos de vida em comum.

  • A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, e a jurisprudência brasileira moderna tratam o conceito de família de forma inclusiva e não excludente, considerando o rol de entidades familiares como exemplificativo e não taxativo, e sem atribuir primazia ao casamento sobre as outras formas de família.

  • As decisões dos tribunais têm demonstrado que todas as formas de entidade familiar merecem proteção jurídica, sem distinção, valorizando princípios como a dignidade da pessoa humana e a igualdade, refletindo as mudanças nos valores e práticas sociais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A família é um dos conceitos jurídicos que mais sofreu alterações nos últimos anos, fruto do influxo de diferentes perspectivas sobre as transformações verificadas nos valores e práticas sociais no alvorecer do século XXI.

INTRODUÇÃO

A família é um dos conceitos jurídicos que mais sofreu alterações nos últimos anos, fruto do influxo de diferentes perspectivas sobre as transformações verificadas nos valores e práticas sociais no período que vai do último quarto do século XX ao início do século XXI. Desde a concepção tradicional, que pressupunha o casamento para a formação da entidade familiar, até a moderna noção de família unipessoal, passando pela união estável, pela família monoparental e pela chamada família anaparental, diversas são as realidades sociais a demandar a qualificação de família, de sorte a atrair a proteção jurídica respectiva.

Neste estudo, aborda-se a atual concepção acerca do pluralismo das entidades familiares, buscando responder, com base na moderna doutrina e na recente jurisprudência, as seguintes perguntas essenciais: o direito brasileiro reconhece outras entidades familiares além do casamento? Em caso positivo, há que se cogitar de primazia do casamento em relação às demais entidades familiares?

Para tanto, aponta-se, inicialmente, breve histórico da evolução da família e as bases do atual conceito de família. Em seguida, serão analisadas, a partir da doutrina e da jurisprudência, as entidades familiares explícitas na Constituição Federal, bem como as entidades não expressas na Carta Magna. Por fim, serão respondidas as perguntas acima suscitadas.


1. A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA

O Código de 1916 entendia que a família estava ligada a dois pontos fundamentais: o casamento formal e a consanguinidade. No entanto, ao longo dos anos, a realidade social trouxe uma nova concepção de família, sendo essa desvinculada de seus modelos originários baseados no casamento, sexo e procriação. A nova concepção tem se pautado em valores, como a afetividade, o amor e o carinho.

Nesse contexto, Silvio Neves Baptista (2014, p. 26) expõe que: “Com o surgimento da industrialização, ocorreu o processo de urbanização acelerada e o surgimento de movimentos de emancipação das mulheres. Daí em diante, ocorreram profundas transformações econômicas e sociais, consequentemente comportamentais, que puseram fim à instituição familiar nos moldes patriarcais.”

Desse modo, observa-se que os tipos familiares atuais estão desvinculados do casamento solene e formal de outrora. Além disso, as famílias que antes eram numerosas e extensas em seu quantitativo de membros, deram lugar a modelos familires mais restritos, com número reduzido de componentes.

Nesse sentido, no campo da estatística e da demografia, por exemplo, “as unidades de vivência dos brasileiros são objeto de pesquisa anual e regular do IBGE, intitulada Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD). Os dados do PNAD têm revelado um perfil das relações familiares distanciado dos modelos legais (...)” (LÔBO, 2015, p. 72).


2. O CONCEITO DE FAMÍLIA

A Constituição Federal da República Brasileira (1988, p.1) conceitua família em seu art. 226, a saber: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.

Nessa seara, Rolf Madaleno (2015, p.36) faz importante comentário acerca das mudanças ocorridas no conceito tradicional de família:

A família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental, biológica, institucional vista como unidade de produção cedeu lugar para uma família pluralizada, democrática, igualitária, hetero ou homoparental, biológica ou socioafetiva, construída com base na afetividade e de caráter instrumental.

No bojo da Carta Magna, são explícitas como entidades familiares os seguintes modelos: casamento (art. 226 § 1º e § 2º, CF), união estável (art. 226 § 3º, CF) e família monoparental (art. 226 § 4º, CF), os quais serão tratados individualmente neste estudo.

Embora a Contituição Federal apenas liste em seu texto, explicitamente, apenas esses três tipos de entidades familiares, Paulo Lobo (2015) menciona que várias outras entidades devem ser consideradas. Tais entidades estão pautadas na afetividade, na estabilidade e na ostensibilidade. 


3. ENTIDADE FAMILIARES EXPLÍCITAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 226, CF/1988)

Primeiramente, é necessário analisar à luz da doutrina e da jurisprudência cada uma das entidades familiares explícitas na Constituição, a saber: casamento (art. 226 § 1º e § 2º, CF), união estável (art. 226 § 3º, CF) e família monoparental (art. 226 § 4º, CF). Em seguida, serão consideradas as entidades não especificadas na Carta Magna.

3.1 Casamento (Família matrimonial)

O Código Civil (2002, p. 1) expõe em seu art. 1.511 que: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. O mesmo diploma dispõe os deveres conjugais no art. 1.566, in verbis: “São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos”.

Nesse contexto, para alguns doutrinadores, o casamento possui posição privilegiada em relação às demais entidades familiares:

Sempre desfrutou de especial proteção legal. Antes da CF/88, o Estado só reconhecia a família formada pelo casamento solene, que jamais poderia ser desconstituído; somente anulado. Tudo isso para atender aos interesses do Estado e da Igreja, que impunham um padrão na tentativa de conservar a moralidade. (BAPTISTA, 2014, p. 27)

Como se observa, em alguns momentos, o casamento era tido como tão sagrado que jamais poderia ser desfeito. Hoje, com as diversas mudanças constitucionais e legislativas, é possível casar-se pela manhã e divorciar-se à tarde, de modo que se manter ou não casado é uma escolha pessoal, um direito postestativo, não cabendo ao Estado decidir a continuidade ou não de uma relação familiar.

Em se tratando do casamento, importante destacar na jusriprudência brasileira o seguinte julgado:

ALIMENTOS. ESPOSA QUE NÃO TRABALHA. FIXAÇÃO DE ALIMENTOS PROVISÓRIOS. CABIMENTO. 1. O dever de mútua assistência existente entre os cônjuges se materializa no encargo alimentar, quando existente a necessidade. 2. Se o varão sempre foi o provedor da família e a mulher sempre se dedicou às atividades do lar e aos filhos comuns, é cabível a fixação de alimentos em favor da esposa. 3. Os alimentos devem ser suficientes para atender as necessidades da esposa, mas dentro da capacidade econômica do alimentante. 4. Os alimentos poderão ser revistos a qualquer tempo, durante o tramitar da ação, seja para reduzir ou majorar, seja até para exonerar o alimentante, bastando que novos elementos de convicção venham aos autos. Recurso provido, em parte. (Agravo de Instrumento Nº 70066175159, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 04/11/2015. Data de publicação: 05/11/2015).

No caso acima, entendeu o Tribunal que caberia fixação de alimentos para a esposa, pois “o varão sempre foi o provedor da família e a mulher sempre se dedicou às atividades do lar e aos filhos comuns”. A esposa, de certo modo, por exclusivamente ocupar-se da criação dos filhos e do cuidado com o lar, deixou de realizar investimentos educacionais e profissionais ao longo de sua vida, sendo assim cabível a fixação de alimentos, uma vez que seria mais díficil sua recolocação no mercado de trabalho para sustento próprio.

3.2 União estável

O art. 1.723 do Código Civil (2002, p. 1) traz os requisitos para caracterização da união estável: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Como se verifica, basta a convivência ser pública, contínua e duradoura, com ânimo de constituição de família para que seja configurada a união estável.

Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal entende não ser requisito para a união estável a vida debaixo do mesmo teto. É o que ficou estabelecido no enunciado de súmula 382 do STF, in verbis: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato”.

Além disso, os tribunais têm entendido que o fato de nascerem filhos durante o relacionamento, por si só, não significa a existência de reconhecimento da união estável, é o que se extrai do julgado a seguir:

Reconhecimento e dissolução de união estável. Prova. 1 - A união estável exige convivência pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituir família. 2 - A estabilidade do relacionamento é externada pela durabilidade e continuidade da convivência com aparência de casamento. O nascimento de filho, por si só, não significa a existência de reconhecimento da união estável. 3 - Apelação não provida. (TJ-DF - 20150910163729 Segredo de Justiça 0016198-94.2015.8.07.0009 (TJ-DF). Data de publicação: 30/08/2016).

Um ponto de destaque recente no tema união estável se refere à sucessão, pois o companheiro(a), em relação à sucessão do casamento, saía em desvantagem, nos moldes do art 1.790 do CC. O assunto estava sob repercussão geral e foi recentemente julgado pelo STF:

DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DISPOSITIVOS DO CÓDIGO CIVIL QUE PREVEEM DIREITOS DISTINTOS AO CÔNJUGE E AO COMPANHEIRO. ATRIBUIÇÃO DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. Possui caráter constitucional a controvérsia acerca da validade do art. 1.790 do Código Civil, que prevê ao companheiro direitos sucessórios distintos daqueles outorgados ao cônjuge pelo art. 1.829 do mesmo Código. 2. Questão de relevância social e jurídica que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. 3. Repercussão geral reconhecida. (RE 878694 RG, Relator (a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 16/04/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 18-05-2015 PUBLIC 19-05-2015).

De igual modo, também estava em repercussão geral a questão sucessória no tocante às uniões estáveis homoafetivas:

UNIÃO ESTÁVEL – COMPANHEIROS – SUCESSÃO – ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL – COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL ASSENTADA NA ORIGEM – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. Possui repercussão geral a controvérsia acerca do alcance do artigo 226 da Constituição Federal, nas hipóteses de sucessão em união estável homoafetiva, ante a limitação contida no artigo 1.790 do Código Civil. (RE 646721 RG, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 10/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-232 DIVULG 06-12-2011 PUBLIC 07-12-2011 )

Nesse contexto, o plenário STF decidiu em 10/05/2017, por 7 votos a 3, que possuem o mesmo valor jurídico em termos de direito sucessório, tanto o casamento quanto a união estável, tendo o companheiro os mesmos direitos que o cônjuge no casamento.

Nessa mesma sessão plenária, o Supremo Tribunal afirmou que a equiparação entre companheiro e cônjuge, para fins de herança, abrange as uniões estáveis de casais homoafetivos.  O placar dessa decisão foi de 6 votos a favor e 2 contrários.

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Por fim, cabe mencionar que ambas as decisões, por terem sido decididas na sistemática da repercussão geral, servem de parâmetro para todas as disputas sucessórias nas diferentes instâncias da Justiça. Pela tese firmada, o art. 1.790 do CC foi considerado inconstitucional, por determinar regras distintas para a herança nos casos de uniãões estáveis.

3.3 Família monoparental

O art. 226 § 4º, CF/88, dispõe sobre o conceito de família monoparental, a saber: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. (BRASIL, 1988, p. 1)

Paulo Lôbo (2015, p. 78) expõe que: “A Constituição limitou-se à descendência em primeiro grau. Assim, não constitui família monoparental a que se constitui entre avô e neto, mas é entidade familiar de natureza parental, tal como se dá com a que se forma entre tio e sobrinho”.

Hoje, é muito comum encontrar famílias monoparentais. Nessa seara, Rolf Madaleno (2015, p.36) comenta o que contribuido para o aumento desse tipo de família:

(...) é fruto, sobretudo, das uniões desfeitas pelo divórcio, pela separação judicial, pelo abandono, morte, pela dissolução de uma estável união, quando decorrente da adoção unilateral, ou ainda da opção de mães ou pais solteiros que decidem criar sua prole apartada da convivência com o outro genitor.

Cabe ainda mencionar que o fundamento da família monoparental está no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê o direito da criança ao convívio familiar, mesmo na falta de um dos pais.


4. ENTIDADE FAMILIARES NÃO EXPLÍCITAS NA CONSTITUIÇÃO

Diante da dinâmica social, existem várias entidades familiares não expressas na Carta Magna, mas que não podem ser desconsideradas. Tais entidades são muito frequentes na atualidade e baseadas, principalmente na afetividade, tendo a doutrina discorrido sobre o tema, alcançando avanços jurisprudenciais.

 Nesse diapasão, a doutrina leciona que: “Hoje, pode-se dizer que o elemento da consaguinedade deixou de ser fundamental para a constituição da família. (...), a doutrina e a jurisprudência vem aumentando o rol das modalidades de família, já sendo aceitas por alguns juristas outras formas, tais como a homoafetiva, a anaparental” (...) (BAPTISTA, 2014, p.24).

4.1 Família homoafetiva

De acordo com a doutrina especializada, esta entidade familiar se caracteriza pela relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo. Antes, com o conceito tradicional de família, não seria possível a admissão de modelos familiares incapazes de procriar, mas hoje a procriação não é fator essencial, é o que expõe Silvio Neves Baptista (2014, p. 30): “A base da família deixou de ser procriação, a geração de filhos, para se concentrar na troca de afeto, de amor, é natural que mudanças ocorressem na composição dessas famílias.”

Para Paulo Lôbo (2015, p. 79), ‘a união homoafetiva é reconhecidamente uma entidade familiar, desde que preenchidos os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade e a finalidade de constituição de família’. Além disso, para o autor, outra prova de que esse tipo contitui familia é o fato de que a Constituição Federal “não veda o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo com finalidades familiares”.

Nesse sentido, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) trouxe interessante inovação. Em seu texto originário, ao tratar da violência doméstica contra a mulher, menciona, no art. 5º, parágrafo único: “As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”. (BRASIL, 2006, p. 1) (grifo nosso)

Alguns argumentam que a família homoafetiva não pode ser considerada família devido à impossibilidade de filiação. No entanto, são argumentos contrários a essa tese o fato de que: 1) a família sem filhos é tutelada constitucionalmente; 2) a procriação não é finalidade indeclinável da família constitucionalizada; e 3) a adoção é permitida a qualquer pessoa, independentemente do estado civil (art. 42, ECA), não impedindo que a criança se integre à família, ainda que o parentesco civil seja apenas com um dos parceiros.

Nesse contexto, a jurisprudência tem se baseado nos seguintes aspectos: 1) na existência de normas constitucionais que tutelam especificadamente as relações familiares; e 2) no fato de que a doutrina tem encontrado fundamento para as uniões homossexuais no âmbito dos direitos fundamentais, constantes no art. 5º da Carta Magna, em especial à igualdade.

4.1.1 União estável homoafetiva

O art. 226, § 3º, CF, dispõe que: “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

No mesmo sentido, o art. 1.723, CC, estabelece que: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

Observa-se que, em ambos os diplomas, consta a expressão “homem e mulher”, ou seja, duas pessoas para caracterização da união estável, porém, de sexos distintos. No entanto, o STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 estabeleceu o seguinte entendimento:

O STF, na ADI n. 4.277, em 2011, tendo em vista a omissão do legislador ordinário na disciplina da matéria e as controvérsias reinantes na jurisprudência dos tribunais, decidiu, aplicando diretamente a Constituição, que a união homoafetiva é espécie do gênero união estável. Para o STF, a norma constante do art. 1.723 do CC, que alude à união estável entre homem e mulher, não obsta que a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer a proteção estatal. Assim, sua interpretação em conformidade com a Constituição exclui qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Esse reconhecimento deve ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas consequências da união estável heterossexual” (LÔBO, 2015, p. 80).

Outros julgados mostram que o entendimento sobre uniões estáveis homoafetivas foi consolidado:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE. UNIÃO HOMOAFETIVA. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO COMO ENTIDADE FAMILIAR. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DAS REGRAS E CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS VÁLIDAS PARA A UNIÃO ESTÁVEL HETEROAFETIVA. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.277 e da ADPF 132, ambas da Relatoria do Ministro Ayres Britto, Sessão de 05/05/2011, consolidou o entendimento segundo o qual a união entre pessoas do mesmo sexo merece ter a aplicação das mesmas regras e consequências válidas para a união heteroafetiva. 2. Esse entendimento foi formado utilizando-se a técnica de interpretação conforme a Constituição para excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que deve ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas consequências da união estável heteroafetiva. 3. O direito do companheiro, na união estável homoafetiva, à percepção do benefício da pensão por morte de seu parceiro restou decidida. No julgamento do RE nº 477.554/AgR, da Relatoria do Ministro Celso de Mello, DJe de 26/08/2011, (...) 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 687432 AgR, Relator (a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/09/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-193 DIVULG 01-10-2012 PUBLIC 02-10-2012)

Como se observa, a união homoafetiva é espécie do gênero união estável. Para o STF, o art. 1.723 do CC, que alude à união estável entre homem e mulher, não obsta que a união seja entre pessoas do mesmo sexo. A decisão tomada em sede de ADI tem eficácia erga omnes e efeito vinculante, significando força normativa equivalente à lei.

4.1.2 Casamento homoafetivo

 No ano de 2012, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp 1.183.378, evocou os princípios constitucionais e decidiu pela legalidade e constitucionalidade do casamento direto de casais homossexuais e não apenas por conversão da união estável.

A doutrina, analisando a ementa do acórdão em tela, tece comentários importantes sobre o tema:

Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta aos princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo livre planejamento familiar. (LÔBO, 2015, p. 81)

Um avanço notável da temática se deu com a edição da Resolução n.º 175, de 2013, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual passou a determinar que os oficiais de registro de casamento recebam as habilitações para casamento homoafetivo, ou seja, entre pessoas do mesmo sexo, vedando às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou conversão de união estável em casamento entre essas pessoas.

Depois dessas inovações, os institutos do casamento ou da união estável podem ser utilizados por qualquer casal, seja heterossexual ou homossexual. É como dispõe Paulo Lôbo (2015, p. 81):

Todos os direitos e deveres jurídicos decorrentes do casamento ou da união estável são iguais para o casal heterossexual ou homossexual, assim na relação entre os cônjuges ou companheiros, como entre os pais e filhos. Nenhuma restrição ou limitação pode haver em razão do sexo igual ou distinto, notadamente quanto à natureza familiar dessas uniões, aos filhos, regimes de bens, aos alimentos, à sucessão hereditária.

Dentre os direitos concedidos aos casais homoafetivos, seja em sede de união estável, seja no âmbito de casamento, está o direito de adoção, não havendo, sob a ótica dos tribunais superiores, qualquer impedimento constitucional para que duas pessoas do mesmo sexo adotem uma mesma criança. Pelo contrário, até mesmo famílias formadas por uma só pessoa podem adotar uma criança, bastando preencher os requisitos legais da adoção.

4.2 Família anaparental

Esta modalidade familiar não foi contemplada expressamente na Constituição. Trata-se de modelo familiar constituído “por pessoas que convivem em uma mesma estrutura organizacional e psicológica visando a objetivos comuns, sem que haja a presença de alguém que ocupe a posição de ascendente. Têm-se como exemplos dois irmãos que vivem juntos ou duas amigas idosas que decidem compartilhar a vida até o dia de sua morte” (BAPTISTA, 2014, p.23).

Para Maria Berenice Dias (2006, p. 184): “Quando não existe uma hierarquia entre gerações e a coexistência entre ambos não dispõe de interesse sexual, o elo familiar que se caracteriza é de outra natureza, é a denominada família anaparental”.

Nesse tipo de entidade familiar, as pessoas sem laços de parentesco convivem em caráter permanente, com ajuda mútua e afetividade, porém, não há entre seus membros finalidade econômica, nem sexual.

Alguns se perguntam se uma república repleta de estudantes poderia ser considerada família anaparental. A doutrina versa sobre o tema:

Observam Renata Almeida e Walsir Rodrigues Júnior não existir família anaparental onde ausente a pretensão de permanência, por maior que sejam os vínculos de afetividade do grupo, como, por exemplo, em uma república de estudantes universitários, cujos vínculos não foram construídos com a intenção de formar uma família e certamente serão desfeitos com o término do curso. (MADALENO, 2015, p.11).

A jurisprudência tem-se debruçado sobre situações envolvendo famílias anaparentais, como no julgado a seguir:

EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. LEI Nº 8.009/90. IMPENHORABILIDADE. MORADIA DA FAMÍLIA. IRMÃOS SOLTEIROS. Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles. Sem embargo do fim proposto da impenhorabilidade, a decisão cuida de entidade familiar que se insere totalmente no conceito de família do art. 226, pois dotada do requisito de afetividade, estabilidade e ostensibilidade. Não há, nesse caso, “sociedade de fato” mercantil ou civil, e não se poderá considerar como tal a comunidade familiar de irmãos solteiros (Recurso Especial nº 159.851-SP, DJ de 22.06.1998).

Nesse interessante julgado, o tribunal reconheceu a impenhorabilidade do bem de família habitado por irmãos solteiros, reconhecendo a constituição de uma família por possuir os requisitos da afetividade, estabilidade e ostensibildade. Como se vê, a jurisprudência abraçou e consolidou, de maneira formal, a noção de família anaparental.

4.3 Famílias reconstituídas ou recompostas

Este tipo de entidade familiar “com frequência abrangem filhos de duas estirpes, padrastos e madrastas, depois de uma nova união dos cônjuges”. (VENOSA, 2016, p. 9) Trata-se de modelo familiar formado pela junção de famílias anteriormente existentes, como menciona Giselda Hironaka (2015, p. 57): “Família mosaico, modelo pelo qual se reconstitui família pela junção de duas famílias anteriores, unindo filhos de um e de outro dos genitores, além dos filhos comuns que eventualmente venham a ter”.

Nos casos envolvendo famílias recompostas, os tributais têm levado em consideração alguns princípios, como a dignidade da pessoa humana e a afetividade, uma vez que “o Código Civil não traçou desenho claro dessas famílias, não definindo as prerrogativas parentais dos padrastos, nem seu eventual dever de alimentar ao enteado.” (VENOSA, 2016, p. 9)

Paulo Lôbo (2015, p. 82) comenta os motivos de atualmente existirem tantas famílias recontituídas:

A incidência elevada de separações de fato e divórcios, no Brasil, faz aflorar o problema das relações jurídicas, além das afetivas, das famílias recompostas (stepfamily, familles recomposés), assim entendidas as que se constituem entre um cônjuge ou companheiro e os filhos do outro, vindos de relacionamento anterior.

De fato, com a facilidade do divórcio, é comum hoje serem verificadas famílias recompostas, de modo que as demandas sobre esse tipo de entidade têm aumentado. Apenas para exemplificar, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp nº 1106637, “reconheceu a legitimidade de padrasto para pedir a destituição do poder familiar, em face do pai biológico, como medida preparatória para a adoção da criança, quando comprovada qualquer das causas de perda do poder familiar. A situação corrente é o abandono do filho pelo genitor separado” (LÔBO, 2015, p. 85)

4.4 Família unipessoal

Mas o que dizer das famílias formadas por uma só pessoa? Podem ser consideradas famílias? Muitas são as moradias brasileiras habitadas por apenas uma pessoa, sejam solteiras, separadas ou viúvas.

Na doutrina, esse tipo de entidade familiar tem sido conceituada como: “famílias singles”, onde seus habitantes, sozinhos, ganham reconhecimento jurídico, a exemplo da aplicação em seu favor do instituto do bem de família, a tornar impenhorável o imóvel onde residam, independentemente da constituição de família tradicional.” (BAPTISTA, 2014, p. 32) Acolhendo esse entendimento, o STJ editou a súmula n.º 364, a qual dispõe que "o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas".

A jurisprudência tem admitido a família unipessoal como família, conferindo-lhes direitos:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. MÓVEIS GUARNECEDORES DA RESIDÊNCIA. IMPENHORABILIDADE. LOCATÁRIA/EXECUTADA QUE MORA SOZINHA. ENTIDADE FAMILIAR. CARACTERIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. LEI 8.009/90, ART. 1º E CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 226, §4º. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. O Conceito de entidade familiar deduzido dos arts. 1º da Lei 8.009/90 e 226, §4º da CF/88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, destarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua residência. 2. Recurso especial conhecido e provido. (Recurso Especial nº 205.170-SP, DJ de 07.02.2000).

E não só reconhecendo a impenhorabilidade dos bens que guarnecem a residência, mas, também, a própria residência, como no julgado a seguir:

PROCESSUAL. EXECUÇÃO. IMPENHORABILIDADE. IMÓVEL – RESIDÊNCIA. DEVEDOR SOLTEIRO E SOLITÁRIO. LEI 8.009/90. A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário. (EREsp 182.223/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, CORTE ESPECIAL, julgado em 06/02/2002, DJ 07/04/2003, p. 209).

Para alguns autores, a exemplo de Paulo Lôbo (2018, p. 1), a inclusão da pessoa sozinha no conceito de entidade familiar é relativa, ou seja, apenas para fins de impenhorabilidade do bem de família. Isso porque essa entidade sofre algumas críticas, dentre elas o fato de que, por ser uma só pessoa, não estaria preenchido o requisito da afetividade para caracterização como entidade familiar não expressa na Constituição, pois a afetividade somente pode ser concebida em relação ao outro.

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Sobre a autora
Erika Cordeiro de Albuquerque dos Santos Silva Lima

Advogada inscrita na OAB/PE. Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Especialista em Gestão Empresarial pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro/RJ. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Maceió/AL. Bacharel em Secretariado Executivo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Erika Cordeiro Albuquerque Santos Silva. Entidades familiares: uma análise da evolução do conceito de família no Brasil na doutrina e na jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5383, 28 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64933. Acesso em: 22 dez. 2024.

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