A mulher transgênero e o sistema prisional: violações aos direitos fundamentais à identidade de gênero

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03/04/2018 às 19:00
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PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA

Os Princípios de Yogyakarta, foram elaborados em 2006, na Indonésia com presença do Brasil e a intenção de criar um documento para regularizar o tratamento referente a aplicação da legislação internacional em relação à orientação sexual e identidade de gênero.

Verifica-se que tais princípios são inerentes a todos os seres humanos, afirmando que

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Todos os direitos humanos são universais, interdependentes, indivisíveis e inter-relacionados. A orientação sexual e a identidade de gênero, são essenciais para a dignidade e humanidade de cada pessoa e não devem ser motivo de discriminação ou abuso. Muitos avanços já foram conseguidos no sentido de assegurar que as pessoas de todas as orientações sexuais e identidades de gênero possam viver com a mesma dignidade e respeito a que todas as pessoas têm direito.(YOGYAKARTA, Princípios de. 2006, p.7)           

O Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 477.554 AgR, reconheceu a aplicabilidade dessa Carta de Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos

É preciso também não desconhecer, na abordagem jurisdicional do tema ora em exame, a existência dos Princípios de Yogyakarta, notadamente daqueles que reconhecem o direito de constituir família, independentemente de orientação sexual ou de identidade de gênero. Entendo que o acórdão ora recorrido não só conflita com os precedentes firmados por esta Suprema Corte, mas diverge, por igual, dos Princípios de Yogyakarta, que traduzem recomendações dirigidas aos Estados nacionais, fruto de conferência realizada, na Indonésia, em novembro de 2006, sob a coordenação da Comissão Internacional de Juristas e do Serviço Internacional de Direitos Humanos. Essa Carta de Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero.      (BRASIL, Supremo Tribunal Federal REx 477.554, 16 de Agosto de 2011, p.11)[14]

Os Princípios de Yogyakarta surgiram em um momento no qual o mundo necessitava de diretrizes para a garantia dos direitos da população LGBT, caracterizando um grande avanço social na luta pelos direitos desse segmento social, porém, embora o Brasil tenha sido um dos signatários de tais princípios é também como um dos maiores violadores do referido.


O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

É possível constatar que o sistema prisional brasileiro encontra-se em total falencia, verifica-se através da ADPF 347/DF, de relatório do Ministro Marco Aurélio, tendo reconhecido estar o sistema penitenciário brasileiro acometido por um “estado de coisas inconstitucional”, ou seja, reiteradas violações dos direitos fundamentais garantidos pelo ordenamento jurídico pátrio.

Violação de preceitos fundamentais decorrentes de atos do Poder Público e inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesividade. Assevera que a superlotação e as condições degradantes do sistema prisional configuram cenário fático incompatível com a Constituição Federal, presente a ofensa de diversos preceitos fundamentais consideradas a dignidade da pessoa humana, a vedação de tortura e de tratamento desumano, o direito de acesso à Justiça e os direitos sociais à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos.

Sustenta que o quadro resulta de uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, incluídos os de natureza normativa, administrativa e judicial. Consoante assevera, os órgãos administrativos olvidam preceitos constitucionais e legais ao não criarem o número de vagas prisionais suficiente ao tamanho da população carcerária, de modo a viabilizar condições adequadas ao encarceramento, à segurança física dos presos, à saúde, à alimentação, à educação, ao trabalho, à assistência social, ao acesso à jurisdição. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADPF, nº347, 09 de setembro de 2015, p.3)[15]

Ainda que a forte violação dos direitos fundamentais dos presos repercutirá para além das respectivas situações subjetivas, produzindo mais violência contra a própria sociedade, ao fomentar o aumento da criminalidade, por transformar pequenos delinquentes em “monstros do crime”, gerando uma situação preocupante dentro dos presídios, violações sistemáticas de direitos humanos e fora deles, aumento da criminalidade e da insegurança social.

Verifica-se também no julgamento do Recurso Extraordinário nº580.252/MS, o Relator Ministro Teori Zavascki fixou a seguinte tese para repercussão geral

Tragicamente, o encarceramento em celas superlotadas e em condições degradantes e desumanas não é situação excepcional e isolada que afete apenas o recorrente. Pelo contrário, a superpopulação e a precariedade das condições dos presídios correspondem a problemas estruturais e sistêmicos, de grande complexidade e magnitude, que resultam de deficiências crônicas do sistema prisional brasileiro. Tais problemas afetam um contingente significativo de presos no país(...)A situação da população prisional é ainda mais dramática. Em razão da má gestão dos presídios e do deficiente controle do Estado dentro das unidades, registram-se rotineiramente casos de violência física e sexual, homicídios, maus tratos, tortura e corrupção, praticados tanto pelos detentos, quanto pelos próprios agentes estatais. A inoperância do Estado também abre caminho para o crescimento do poder das facções criminosas, que passam a dominar os cárceres, a arregimentar novos integrantes e a comandar, do interior dos presídios, a prática de diversos crimes, contribuindo para o agravamento da violência urbana e da insegurança social.(BRASIL, Supremo Tribunal Federal,Rex n°580.22,  16 de Fevereiro de 2017, p.49)[16]

Pelo exposto, fica claro que o sistema prisional brasileiro encontra-se em um panorama grave que afronta à Constituição Federal, com uma clara violação aos direitos fundamentais dos presos, submetendo os indivíduos a uma pena mais grave do que lhe foi efetivamente aplicada. Mais do que a privação de liberdade, injunge ao preso a perda de sua integridade e aspectos essenciais de sua dignidade.


TRANSEXUALIDADE NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

O sistema prisional é definido no binarismo homem/mulher, de um modo que os estereótipos e preconceitos passam a ser naturalizado.

Foucault diz

A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando varias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficáfica é atribuída à sua fatalidade, não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão a justiça não mais assume publicamente a parte da violência que está ligada a seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais glorificação de sua forma, mas um elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custar ter que impor. (FOUCAULT, 2014, p.15)

Sendo encaminhadas para presídios divergentes de sua identidade de gênero as Transexuais/travestis são impostas a regras e padrões de um gênero com o qual não se identificam estando vulneráveis a serem submetidas a violências físicas e psicológicas, sendo o conceito de violência apresentado pela Organização Mundial de Saúde:

Define a violência como o uso de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação. (DAHLBERG, 2006, p.4)[17]

Um dos grandes avanços para a população LGBT foi o Programa Nacional de Direitos Humanos n°3, com definições específicas dessa minoria, entretanto, o Estado é negligente ao fiscalizar a aplicabilidade dessas diretrizes.

Modernização da política de execução penal, priorizando a aplicabilidade de penas e medidas alternativas à privação de liberdade e melhoria do sistema penitenciário a qual vem; Assegurar e regulamentar visitas intima para população carcerária LGBT (BRASIL, Programa Nacional de Direitos Humanos n°3,2008, p.167).[18] [19]

Bem como a Resolução Conjunta n°1 de 2014, que versa sobre os direitos da população LGBT no sistema prisional, é de suma importância para esse fragmento da sociedade, em especial a população transgênero.

Art. 3º - Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos.

§ 1º - Os espaços para essa população não devem se destinar à aplicação de medida disciplinar ou de qualquer método coercitivo.

§ 2º - A transferência da pessoa presa para o espaço de vivência específico ficará condicionada à sua expressa manifestação de vontade.

Art. 4º - As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas.

Parágrafo único - Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade.

Art. 7º - É garantida à população LGBT em situação de privação de liberdade a atenção integral à saúde, atendidos os parâmetros da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT e da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional - PNAISP. Parágrafo único - À pessoa travesti, mulher ou homem transexual em privação de liberdade, serão garantidos a manutenção do seu tratamento hormonal e o acompanhamento de saúde específico. (BRASIL, Resolução Conjunta, n°1, 2014.)[20]           

Entretanto a negligência Estatal fica evidenciada através de matérias extraídas de grandes veículos de comunicação nacional, como por exemplo, a matéria de 02/10/2015 do Jornal O Povo, no qual uma detenta transexual não identificada narra à realidade carcerária.

Aos prantos e com hematomas. Foi assim que uma jovem transexual compareceu à audiência de custódia em 23 de setembro, no Fórum Clóvis Beviláquia. Ela teria sido espancada e estuprada por pelo menos quatro detentos por mais de 20 dias, na Unidade Penitenciária Francisco Adalberto de Barros Leal (UPFABL), conhecida como Carrapicho, em Caucaia. (SISNANDO, Jornal de Hoje, 02 de Novembro de 2015)[21]

O depoimento da travesti Vitória Rios Fortes, de 28 anos descritos no Jornal Estado de Minas Gerais, de 25/11/2014

Eu era obrigada a ter relação sexual com todos os homens das celas, em sequência. Todos eles rindo, zombando e batendo em mim. Era ameaçada de morte se contasse aos carcereiros. Cheguei a ser leiloada entre os presos. “Um deles me ‘vendeu’ em troca de 10 maços de cigarro, um suco e um pacote de biscoitos. (KIEFER, Jornal Estado De Minas, 25 de Novembro 2014)[22]

Bem como a matéria do Jornal O Dia, de 14/04/2015.

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Entre os problemas relatados, as transexuais têm seus cabelos raspados à máquina pelos agentes, são obrigadas a tomar banho de sol sem camisa. Mesmo que muitas delas tenham próteses de silicone. Além disso, são forçadas a ficarem nuas nas revistas íntimas na frente de outros presos. (REZENDE, Jornal o Dia, 14 de Abril de 2015)[23]

Evidenciando assim a precariedade do Sistema Prisional Brasileiro em se adaptar as necessidades de um segmento vulnerável da sociedade, violando suas garantias fundamentais.


CONCLUSÃO

            Logo, expõe-se que sexo biológico está de acordo com os cromossomos de um indivíduo; identidade de gênero em como tal se porta e demonstra perante uma sociedade e orientação sexual pela atração física. ­­­

Fica claro que as mulheres transgênero são submetidas a situações degradantes e sub-humanas no sistema penitenciário brasileiro, uma vez que para a sociedade e o Estado, o indivíduo é definido de acordo com seu sexo biológico, entretanto, tal consideração deve ser descaracterizada, uma vez que a sexualidade de um indivíduo não pode ser definida apenas por seu sexo biológico e muito menos imposta por ninguém.

Ao analisar os conceitos de transexual e travesti, ficou claro embora biologicamente sejam “machos”, ambas exercem um papel feminino na sociedade, devendo ser respeitada a autoidentificação das mesmas.

Verifica-se que a Constituição Federal de 1988, trouxe um rol de garantias fundamentais que não podem ser revogadas ou retiradas de nosso ordenamento jurídico, tais garantias estão relacionadas intrinsecamente a condição de ser humano, devendo a sociedade e o Estado o respeitar a identidade de todos os cidadãos sem distinção de qualquer característica.

É de se constatar que além da Constituição brasileira, o ordenamento jurídico mundial prevê através de tratados internacionais o tratamento igualitário necessário para a população transgênero, priorizando a condição de ser humano, dignidade e igualdade.

No que tange os indivíduos encarcerados, ficou demonstrado que em consonância com tais princípios e fundamentos, o Estado brasileiro ao tentar resguardar as referidas prerrogativas destes garantiu na Constituição Federal, que o indivíduo cumprirá pena privativa de liberdade em estabelecimento de acordo com seu sexo, natureza do delito e idade do apenado, deve está garantia ser interpretada de uma forma extensiva para que a pessoa não seja apenas definida por seu sexo biológico, mas sim seu sexo psicológico e sua identidade de gênero, priorizando a liberdade de cada indivíduo a autoidentificação.

            Dessa forma, conforme prevê a Lei de Execuções Penais, a população em cumprimento de pena privativa de liberdade devem ser destinadas a estabelecimentos penais que podem no mesmo conjunto arquitetônico ter destinações diversas desde que devidamente isolados, dessa forma deve o Estado, visando o bem estar social da população transgênero criar estabelecimentos específicos ou alas especificas para que o segmento transgênero possa cumprir sua pena privativa de liberdade sem violações a suas garantias fundamentais.

            Também na referida lei, fica resguardado que o preso que tiver sua integridade física, moral ou psicológica ameaçada permanecerá em um local distinto dos demais, dessa forma o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, instituiu que para a pessoa transgênero em pena privativa de liberdade deverão ser oferecidos espaços de vivencia especifico, entretanto, a efetividade do referido Plano é precária, vez que não é cumprida em sua integralidade pelo Estado que negligencia sua aplicabilidade.

            Porém, tendo em vista que o sistema penitenciário brasileiro encontra-se em estado de coisa inconstitucional, devido à superlotação e claras violações aos direitos humanos fundamentais de todos ali presentes, deve o Estado interferir de uma forma que os indivíduos encarcerados possam ter sua dignidade respeitada tendo em vista as supressões de direitos evidenciadas, através da fiscalização e criação de locais específicos para a população LGBT.

            O Poder Judiciário tem demonstrado que a autoidentificação do indivíduo transexual/travesti é exercício intrínseco da personalidade e da característica e ser humano, aplicando de forma favorável o referido entendimento para retificação de nome sem a necessidade de cirurgia de transgenitalismo, entretanto, carece de debates o tema da população transgênero encarcerada, uma vez que tal matéria não foi abordada pela Suprema Corte Brasileira.

Através do presente artigo foi demonstrado que existem direitos fundamentais que devem ser respeitados, para que a mulher transexual/travesti encarcerada possam cumprir sua pena privativa de liberdade com dignidade, respeito a sua personalidade e características de ser humano, cabendo ao Estado através da aplicabilidade das normas já existentes, interpretação extensiva das demais e criação e implementação de novos textos normativos regulamentar a situação da população carcerária transgênero para que este segmento social possa ser amparado.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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