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Técnicas de reprodução assistida e o biodireito

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V. Sigilo das Informações.

            Nas técnicas de inseminação heteróloga, um terceiro doa seu sêmen para que a mulher venha a ser fecundada. Portanto, o material biológico não é do "pai presumido", esposo ou companheiro da mulher fecundada, mas sim de um terceiro. Por conseguinte, em termos estritamente biológicos, o pai seria esse terceiro. Assim, no caso da fecundação heteróloga, pode o concebido buscar conhecer seu pai biológico? E o inverso é verdadeiro, podendo o pai buscar conhecer seu filho?

            Fazendo uma incursão pelo direito comparado, Guilherme Calmon Nogueira da Gama (24) prescreve:

            " Apesar do anonimato dos doadores ser a regra em praticamente todos os países que possuem legislação a respeito, atendendo aos interesses da criança ou do adolescente, a lei sueca exatamente não prevê o sigilo, o anonimato, tendo em vista a necessidade de prevenir doenças genéticas, além de permitir que a pessoa possa, com a maioridade, conhecer o genitor biológico. Na França, há a discussão a respeito do anonimato em três esferas: a) se é conveniente permitir à criança, fruto de reprodução heteróloga, a identificação de seu pai biológico, ou deve haver segredo da concepção por uma técnica de reprodução assistida; b) se tal identificação deve conduzir à criação de vínculo jurídico entre a criança e o doador do material genético; c) se, em casos excepcionais, pode ser levantado o segredo da identidade do doador, como por exemplo em casos de doenças hereditárias. Será que o sigilo deve ser absoluto ou relativo, permitindo o seu afastamento na eventualidade da pessoa concebida por meio de técnica de reprodução assistida pretender conhecer a sua ascendência genética, e tão-somente em relação a ela? Há direito à identidade genética, em havendo pais socioafetivos estabelecidos? Caso a resposta seja afirmativa, tendo sempre em mira o critério "the best interest of the child", necessariamente deve ficar afastado qualquer efeito jurídico no sentido de estabelecer direitos e deveres entre tais pessoas. Na Bélgica, no entanto, NATHALIE MASSAGER observa que inexiste qualquer disposição que impeça o estabelecimento da paternidade do doador, motivo pelo qual sugere uma urgente modificação nas regras em vigor em matéria de direito de filiação. O anonimato do doador de material genético deve realmente existir em matéria de reprodução assistida, mas não dentro de uma noção absoluta. No Direito europeu, mesmo em alguns países que seguem o sistema do Direito continental, filiando-se à tradição romana, há divergência de tratamento. Assim, há, em alguns textos normativos de países, previsão acerca de exceções ao anonimato, ora para prevenir ou curar doenças genéticas, ora para reconhecer o interesse da pessoa gerada por meio de reprodução assistida em conhecer a sua ascendência (identidade) biológica, mas sem qualquer atribuição de benefícios ou vantagens econômicas. Mas, na maior parte dos textos legislativos em vigor, nos países europeus, há a regra do anonimato. No caso brasileiro, apesar de qualquer regra expressa a respeito, em observância aos princípios, objetivos e fundamentos de Direito de Família, eventualmente o sigilo poderá ser afastado, cedendo lugar à proteção de interesses de maior relevância.

            A fim de evitar esta polêmica, o Conselho Federal de Medicina decidiu que o sigilo em torno do nome dos doadores e receptores é obrigatório e que as informações sobre pacientes e doadores pertencem, exclusivamente, às clínicas ou centros que mantêm serviços de RA, in verbis:

            "IV - Doação de gametas ou pré-embriões.

            ...........

            1.Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice versa (grifo nosso).

            2.Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador" (grifo nosso)."

            Contudo, Lei 8.069, de 13/07/1.990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), estabelece o direito inarredável dos filhos e também dos pais de pleitearem o reconhecimento deste status. A propósito:

            "Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação" (grifo nosso).

            "Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça" (grifo nosso).

            Destarte, em que pese o posicionamento do Conselho Federal de Medicina, a questão em torno do sigilo das informações pode tolher o concebido de conhecer seu pai biológico, ferindo de morte o disposto nos arts. 26 e 27, do ECA.

            O direito de identificação da filiação biológica e a busca da gênese humana são direitos fundamentais, sendo impassíveis de restrições. Logo, há de prevalecer o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

            Justifica-se adicionalmente esse postura pelo fato de que os filhos devem ter acesso aos dados biológicos do doador para a descoberta de possível impedimento matrimonial, pois em se mantendo esse sigilo de forma absoluta, isso poderia redundar, futuramente, em relações incestuosas.

            Sendo totalmente anônima a paternidade biológica, mantida sob a égide de um sigilo absoluto, nada impede que irmãos (filhos nascidos de material pertencente ao mesmo doador) ou mesmo o próprio doador e uma filha contraiam casamento por absoluta ignorância com relação as suas verdadeiras origens.

            Dizem as instituições que se profissionalizaram no fornecimento de sêmen, que têm a cautela de expedir o produto para regiões distantes umas das outras, mas isto apenas reduz o risco, pois a mobilidade do homem no mundo de hoje é muito grande e, portanto, pode ocorrer que se perca o controle sobre a utilização do material genético.

            O artigo 8º, do Projeto de Lei 90/99, dispõe ser sigilosa as informações "impedindo que doadores e beneficiários venham a conhecer reciprocamente suas identidades, e pelo sigilo das informações sobre a criança nascida a partir de material doado." Contudo, ressalva-se no artigo os casos que a lei prever como passível a quebra destas informações, obrigando-se, inclusive, o estabelecimento responsável pelo emprego da Reprodução Assistida a fornecer as informações solicitadas, sendo que o parágrafo 1º, do mesmo artigo, impõe essa quebra quando a vida ou a saúde do concebido assim exigirem.

            A nós, quer nos parecer que os artigos 8º e 9º deste Projeto de Lei apenas consagram a regra do sigilo das informações. Porém, o Estatuto da Criança e do Adolescente continua prevalente, e se a criança quiser investigar sua gênese, é-lhe lícito exigir, ainda que judicialmente, a quebra do sigilos das informações. Neste sentido os próprios artigos 18 e 19, do Projeto de Lei 90/99, que dispõem:

            "Art. 18.

A pessoa nascida a partir de gameta ou embrião doado ou por meio de gestação de substituição terá assegurado, se assim o desejar, o direito de conhecer a identidade do doador ou da mãe substituta, no momento em que completar sua maioridade civil.

            Art. 19. A infração do disposto no parágrafo único do art. 2º desta Lei implicará a perda do direito ao pátrio poder, se este for reivindicado pelos doadores."


VI. Há relação de parentesco entre doador e concebido?

            Viu-se, é possível a investigação sobre quem é o doador do material genético. Mas uma vez descoberto este, haveria que se falar em relação de parentesco entre concebido e doador? Em caso de resposta positiva, estariam obrigados mutuamente à prestações alimentícias?

            Conforme o projeto preliminar da União Européia "nenhuma relação de filiação poderá se estabelecer entre doadores de gametas e o filho concebido como resultado da procriação."

            Também o artigo 17, do Projeto de Lei 90/99, aduz que "os pais da criança serão os beneficiários" das técnicas de reprodução assistida, inclusive as heterólogas.

            Comungamos dessa tese. Para nós, a paternidade estritamente biológica perdeu-se no tempo. Como visto alhures, hoje se fala em paternidade sócio-afetiva e mesmo na paternidade jurídica. Aliás, o próprio Código Civil contempla ser pai aquele que consentiu na inseminação heteróloga de sua mulher e companheira.

            Guardadas as devidas proporções, haveria o mesmo que se opera com a adoção, a qual implica em desligamento de qualquer vínculo com o doador do material genético, salvo para fins matrimoniais. (25)

            Assim, temos que nas técnicas heterólogas, não há parentesco entre o doador do sêmen e o concebido, e por razão maior, não há que se falar em obrigação ou dever alimentar entre estes.


VII. O Consentimento do Cônjuge

            Para que haja a paternidade jurídica oriunda da inseminação heteróloga, faz-se imprescindível o consentimento do cônjuge ou companheiro. Inclusive o Projeto de Lei o impõe como obrigatório, repetindo o disposto no Código Civil.

            A doutrina costuma classificar essa técnica de inseminação sem o consentimento do parceiro de "adultério casto", implicando em grave descumprimento dos deveres conjugais.

            Logo, ainda que marido ou companheiro, não lhe será computada a paternidade do filho havido de sua mulher por técnica de inseminação heteróloga quando não houver seu consentimento, cabendo, inclusive, ação negatória de paternidade neste sentido, em que pese tal procedimento redundar num inegável prejuízo à criança concebida, que se verá a mercê de uma paternidade inexistente, pela igualmente impossibilidade de se estabelecer vínculo com o doador do material genético.

            Outrossim, eventual consentimento poderá a qualquer momento ser revogado, desde que ainda não operada a fecundação.

            Diferentemente é o caso da inseminação homóloga, posto que o embrião é fruto do sêmen do marido ou do companheiro. Aqui ter-se-ia, também guardadas as proporções, uma "gravidez indesejada", da qual o pai não pode desvencilhar-se por alegar que não a quis.


VIII. A Inseminação Artificial Homóloga Post Mortem e suas Implicações

            Como visto, os embriões não descartados podem ser mantidos preservados em processo de criopreservação. Isto possibilita que após a morte do doador do sêmen possa haver a fecundação da mulher, gerando um filho de alguém que já esteja morto.

            Isso, sem dúvida, tem grandes repercussões jurídicas, posto que, por exemplo, trará graves conturbações de direito sucessório. Atento a isto, o Código Civil dispôs, no artigo 1798:

            "Art. 1798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão."

            Assim, o embrião fecundado post mortem não teria direito sucessório algum, pois não é pessoa concebida e muito menos pessoa nascida. Exceção faz o Código Civil no tocante ao embrião ainda não fecundado, cujo pai doador saiba de sua existência, e mediante testamento lhe dê o status de sucessor. Nesse sentido o artigo 1799, I, que prevê:

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            "Art. 1799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

            I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;"

            Portanto, aparentemente, apenas pela via testamentária o concepturo (26) poderia ser herdeiro nos casos de inseminação homóloga ou mesmo heteróloga, post mortem.

            Contudo, se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos. (27)

            Porém, José Luiz Gavião de Almeida (28) vê a possibilidade do embrião ser herdeiro mesmo nas sucessões legítimas. Segundo esse autor, quando o legislador atual tratou do tema, apenas quis repetir o contido no Código antigo, beneficiando o concepturo apenas na sucessão testamentária porque era impossível, com os conhecimentos de então, imaginar-se que um morto pudesse ter filhos. Entretanto, "hoje a possibilidade existe". E arremata:

            "E reconhecendo o legislador efeitos pessoais ao concepturo (relação de filiação), não se justifica o plurido de afastar os efeitos patrimoniais, especialmente o hereditário. Essa sistemática é reminescência do antigo tratamento dado aos filhos, que eram diferenciados conforme a chancela que lhes era aposta no nascimento. Nem todos os ilegítimos ficavam sem direitos sucessórios. Mas os privados desse direito também não nascia relação de filiação.

            Agora, quando a lei garante o vínculo, não se justifica privar o infante de legitimação para recolher a herança. Isso mais se justifica quando o testamentário tem aptidão para ser herdeiro. (29)

            Em que pese a engenhosidade da solução encontrada, cremos que o concepturo somente terá direito sucessório se houver cláusula testamentária neste sentido, e desde que venha a ser concebido no interregno de 02 (dois) anos, ou em outro de menor prazo indicado pelo testador.

            E se houver cláusula testamentária dispondo sobre isso, deverá operar-se a reserva do patrimônio hereditário, nomeando-se curador, esperando-se o transcurso do prazo legal ou convencional, findo o qual sem que tenha havido a concepção, os demais herdeiros serão chamados a partilhar o quinhão reservado ao concepturo.

            O Projeto de Lei 90/99 parece excluir a possibilidade da fecundação post mortem. O artigo 15, § 5º, impõe como "obrigatório o descarte de gametas e embriõesnos casos conhecidos de falecimento de doadores ou depositantes (inciso V) e no caso de falecimento de pelo menos uma das pessoas que originaram embriões preservados (inciso VI)."

            Inclusive diz ser crime utilizar gametas ou embriões de doadores ou depositantes sabidamente falecidos, cominando com pena de detenção, de dois a seis meses, ou multa o infrator.

            No caso de burla deste dispositivo, havendo a fecundação post mortem, o artigo 20 prevê que "a criança não se beneficiará de efeitos patrimoniais e sucessórios em relação ao falecido."

            Destarte, o Projeto de Lei parece vedar essa tipo de inseminação, seguindo os modelos adotados na Alemanha e na Suécia, que igualmente o impedem (30).

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Sobre o autor
Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior

advogado sócio do escritório Zanoti e Almeida Advogados Associados; doutorando pela Universidade Del Museo Social, de Buenos Aires; mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos; pós-graduado em Direito Contratual;pós-graduado em Direito das Relações Sociais; professor de Direito Civil e coordenador da pós-graduação da Associação Educacional Toledo (Presidente Prudente/SP), professor da FEMA/IMESA (Assis/SP), do curso de pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina – UEL, da PUC/PR, da Escola Superior da Advocacia, da Escola da Magistratura do Trabalho do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo. Técnicas de reprodução assistida e o biodireito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 632, 1 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6522. Acesso em: 22 dez. 2024.

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