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Aborto: uma questão jurídica e de saúde pública

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12/04/2018 às 12:40
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UMA ALTERNATIVA POSSÍVEL

No íntimo, todos compartilham dos mesmos valores de preservação da vida humana, seja fetal ou embrionária. A questão é como atingir esta aspiração de forma realmente efetiva. Um número crescente de casais busca, por anos, a realização de um simples sonho de ter filhos, igualmente frustrados pelo elevadíssimo custo dos procedimentos de inseminação artificial ou pelo complexo e ineficiente sistema de adoção brasileiro, que condena os que nele se aventuram nas intermináveis, burocráticas e pouco transparentes listas do Cadastro Nacional de Adoção a uma longa e penosa - e quase sempre frustrante - espera por uma criança disponível (destituída de poder familiar).

Para Souza (2009), uma alternativa interessante que poderia diminuir a incidência do aborto clandestino é a adoção direta, que é aquela “decorrente de ato no qual a(os) genitora(es), por não desejar(em) ou não possui(rem) condições financeiras e/ou emocionais de cuidar do seu filho, opta(m) por doá-lo a um terceiro, que passa a exercer a guarda de fato da criança” (SOUZA, 2012, p. 184) e posteriormente requer a sua adoção. Em regra, esta adoção ocorre quando uma mulher que irá dar à luz revela a pessoas conhecidas que não tem condições de criar e educar o filho, e que pretende dá-lo a quem tiver mais condições.

O autor ainda analisa que em se tratando de valores em conflito, o princípio constitucional deve prevalecer, tendo em vista que o futuro de uma criança não pode ser prejudicado em razão da forma pela qual aqueles que exercem a sua guarda de fato a obtiveram. Incumbe aos Conselhos Tutelares fiscalizar e impedir que menores permaneçam em situação irregular. Se os estudos sociais e psicológicos são favoráveis; se os guardiões de fato oferecem toda a estrutura necessária para o bom desenvolvimento psíquico-social do infante; se há vínculo afetivo entre eles “que acarrete sofrimento emocional ao menor no caso de separação, se justifica a consolidação da adoção dirigida, ignorando-se, nestes casos, excepcionalmente, o cadastro de adotantes previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.'' (SOUZA, 2009, p. 184)

Um bom exemplo desta prática, inteligente e de grande sensibilidade, encontra-se no Canadá, onde a lei a permite. Os pais biológicos conhecem e decidem sobre a ­escolha dos candidatos. A eles deve ser oferecido, obrigatoriamente, aconselhamento jurídico e psicológico, ao mesmo tempo em que são obrigados a apresentar histórico médico. Depois de assinado o consentimento para adoção, a família tem ainda um período para repensar, podendo mudar de ideia. Esse tempo, em geral, é de 30 dias. (SENADO NOTÍCIAS, 2014)


CONCLUSÃO

A partir do histórico de razões pelas quais se permitiu ou se proibiu o aborto, através do tempo, nas sociedades ocidentais, é correto afirmar que um direito que se pretende democrático não pode "criminalizar" um desejo legítimo de não ter filhos indesejáveis, até porque a simples proibição não possui a efetividade de evitar a prática, como bem demonstram os assustadores números envolvidos: apenas entre 2004 e 2013, cerca de 9 milhões de mulheres interromperam a gestação no Brasil, conforme dados da Organização Pan-Americana de Saúde.

É fato que ninguém em sã consciência acredita que a melhor forma de evitar que nossos filhos, maiores e cursando uma universidade, gazeteiem as aulas seja através de castigos que impliquem no cerceamento de suas liberdades, posto que tal procedimento seria - a exemplo da criminalização da prática do aborto - igualmente ineficaz. O que fazemos, com grande sucesso, é orientá-los e educá-los, o que igualmente pode ser feito com grande efetividade no caso do aborto.

A criminalização do aborto representa ainda um tentáculo simbólico da ideologia patriarcal e não tem sido eficaz nem útil para a proteção da vida intra-uterina. Além do elevado custo social, a penalização impede a implantação e efetivação de medidas realmente eficazes para o enfrentamento do problema e acarreta às mulheres terríveis seqüelas e morte.

Este tema tem de ser debatido de modo que o poder público ouça a sociedade civil, analise e aplique a solução após a coleta de dados e pesquisas de campo, usando de máximo bom senso e estudo técnico na confecção da solução do problema. É necessário ultrapassar a dicotomia entre afronta ao direito à vida e o direito da mulher sobre o seu próprio corpo. Este dueto antagônico se perpetua por vários campos de estudo do comportamento humano, sejam antropológicos, sociológicos, religiosos ou jurídicos.

Necessário se faz o ajuste no que tange a falta de informação e acesso a programas de planejamento familiar em nosso país. Mesmo com significativa melhora em nosso sistema de saúde pública, há lugares que o acesso gratuito a programas de planejamento familiar ainda encontra-se restrito. O planejamento compreende dentre outros meios, o acesso a informações e métodos contraceptivos.

Diante da gama de possibilidades, fica claro que a educação, acesso a informação e estudos sobre o tema, são as melhores ferramentas para a construção de qualquer entendimento que leve ao melhor resultado, principalmente para um assunto tão complexo e polêmico como a descriminalização do aborto.

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Assim, o Brasil, como verdadeiro aspirante a Estado Democrático de Direito, à luz dos princípios emanados da Carta Magna, e que tem nesta, a defesa dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres, princípios estes consubstanciados por importantes tratados internacionais de direitos humanos adotados por nosso país tem a obrigação jurídica e ética de descriminalizar o aborto, tornando-se verdadeiramente uma democracia em sua plenitude material e efetiva e deixando de ser apenas uma democracia formal.

Por fim, uma política pública que tenha como escopo a prevenção, resultando em meios eficazes para redução da incidência do aborto, poderá trazer melhores resultados do que uma legislação que vise a diminuir a realização de abortamentos  punitivamente, visto que a simples proibição não conduz a diminuição desta prática, como fica sobejamente demonstrado pelos mais diversos estudos e estatísticas.


REFERÊNCIAS:

CASTRO, C. O.; TINOCO, D.; ARAUJO,Vera. “Tabu nas campanhas, aborto é feito por 850 mil a cada ano”. Rio de Janeiro: Jornal O Globo, de 19 de set. de 2014.

DE SOUZA, Rodrigo Faria. “Adoção: vantagens e desvantagens”. Revista da EMERJ, v. 12, nº 45, 2009, pp. 184-194

 DISCUSSÃO: ADOÇÃO NO CANADÁ. Senado Notícias. Disponível em < http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/adocao/regras-de-adocao-ao-redor-do-mundo/adocao-no-canada.aspx> Acesso em 10 de dez. de 2014.

DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna”. Rio de Janeiro: Ciência e Saúde Coletiva, vol.15  supl.1, june de 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232010000700002&script=sci_arttext>. Acesso: 23 de set de 2014.

DOMINGOS, Selisvane; MERIGHI, Miriam. O aborto como causa de mortalidade materna: um pensar para o cuidado de enfermagem” Rio de Janeiro. Escola Anna Nery. Vol.14,  no.1 .  Jan./Mar. 2010.

GALEOTTI, Giulia: História do aborto. Coimbra: Edições 70, 2007.

GUTIERREZ, Estrella. Moeda de pacto e de poder. Caracas: IPS, 2010. Disponível em <http://www.ipsnoticias.net/portuguese/2010/03/america-latina/america-latina-aborto-moeda-de-pacto-e-poder/> Acesso em 13 de jan. de 2015

JACOBSEN, Eneida. A História do aborto: São Leopoldo, RS. Protestantismo em Revista, vol.18, jan-abril 2009

PEDREBON, L. Aborto no Brasil: a negligência que vitimiza. Universidade Federal do Oeste do Paraná. Trabalho de Conclusão de Curso, 2007.

SANTOS, Vanessa Cruz; ANJOS, Karla Ferraz dos; SOUZA, Raquel; EUGÊNIO, Benedito Gonçalves. “Criminalização do aborto no Brasil e implicações à saúde pública”. Brasília. Revista de Bioética vol. 21, no. 3 Set/dez de 2013.

TEIXEIRA, Fabio. “Cremerj: Só 12 casos de aborto em 4 anos”. Rio de Janeiro: Jornal  O globo, de 23 de set. de 2014.

TORRES, José Henrique Rodrigues. “Aborto e legislação comparada”. São Paulo: Revista Ciência e Cultura, v. 64, nº 2 abril/junho, 2012.


Notas

[1] É importante ressaltar que a ''vida embrionária'' não se confunde com a ''vida fetal''.  A primeira ocorre nos três primeiros meses de gestação, ao passo que a segunda, a partir do quarto mês.   A grande maioria dos países que admitem a prática do aborto limitam a mesma ao denominado aborto embrionário (celular), conservando, entretanto, a condenação do chamado aborto fetal.

[2] O argumento basilar segundo o qual a vida inicia-se na concepção fundamenta-se, sobretudo, na crença de que a alma do indivíduo é adquirida nesse momento, sendo, portanto, irrelevante que nos primeiros dias após a concepção esta suposta vida somente tenha sentido científico no nível celular.

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Aborto: uma questão jurídica e de saúde pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5398, 12 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65271. Acesso em: 19 abr. 2024.

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