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Impossibilidade de concurso entre os crimes de furto e subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento

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            Resumo: Resultado de uma discussão ocorrida em uma aula da Disciplina Direito Penal II, ministrada pelo Prof. Ivanildo Ferreira Alves (1), este artigo justifica a impossibilidade de concurso entre os crimes de furto e subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento na modalidade subtração, arts. 155 e 257 do Código Penal Brasileiro, respectivamente, baseando-se nos princípios da especialidade e ne bis in idem.


            O crime de furto, previsto no art. 155 do Código Penal Brasileiro é definido como "subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel". A objetividade jurídica da norma é a proteção à propriedade. Subtrair significa retirar. A expressão "para si ou para outrem", como nos explica Damásio de Jesus (2), indica o fim de assenhoramento definitivo, isto é, o agente age com animus furandi (intenção de apoderar-se definitivamente).

            O crime de subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento é tipificado no art. 257 do Código Penal: "subtrair, ocultar ou inutilizar, por ocasião de incêndio, inundação, naufrágio ou outro desastre ou calamidade, aparelho, material ou qualquer meio destinado a serviço de combate ao perigo, de socorro ou salvamento; ou impedir ou dificultar serviço de tal natureza". Trata-se de um crime que atenta contra a incolumidade pública. Classifica-se como um crime de ação múltipla, ou seja, o tipo possui mais de um núcleo: "subtrair", "ocultar", "inutilizar", "impedir" e "dificultar", qualquer das condutas praticadas implica em incursão no tipo penal e, caso o agente pratique mais de uma das condutas tipificadas, é responsabilizado por um único crime.

            Parte da doutrina pátria afirma ser possível a configuração de concurso entre os crimes supra mencionados. Dentre os quais Fernando Capez (3), Luiz Régis Prado (4), Mirabete (5), Magalhães Noronha (6) e Cezar Roberto Bitencourt (7). Em que pese o entendimento destes brilhantes e renomados autores, ouso discordar e aponto a seguir, os motivos de meu convencimento:


1. Princípio da Especialidade

            O princípio da especialidade ou da especificidade é um dos mecanismos indicados à solução de conflito aparente de normas, verificado quando mais de uma norma penal disciplina a mesma situação fática. Por exemplo, o crime de infanticídio é definido como: "matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após" (art. 123). Trata-se de uma forma de homicídio, afinal, essa mãe realiza a conduta "matar alguém", tipificação do delito de homicídio (art. 121). Pelo princípio da especialidade, aplica-se a esta mulher a pena correspondente ao crime de infanticídio em detrimento à pena de homicídio, por ser este o tipo que de forma mais específica prevê a conduta em tela. Ora, o mesmo entendimento deve ser transferido para o delito de subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento: quem subtrai um extintor de incêndio de alguém, durante um incêndio não subtrai coisa alheia móvel? É óbvio que sim. O delito de furto possui uma definição genérica, na qual será enquadrado o sujeito se não houver norma prevendo a conduta de forma mais específica. No caso discutido, são aplicáveis à conduta os tipos dos artigos 155 e 257 do CP, contudo, aplicado o princípio da especialidade, pelo fato de o último prever de forma mais detalhada a conduta do agente, tem-se que o sujeito incorreu no delito do art. 257.

            A definição do furto é parte integrante do conceito de subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento, daí parecer-me incompreensível concurso entre os dois delitos


2. Ne bis in idem

            O princípio do ne bis in idem determina, nas lições de Damásio de Jesus (8), que "ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime". Se aceito o posicionamento da doutrina majoritária, estaria configurado concurso material (segundo Capez, Noronha, Prado e Bitencourt) ou formal (Mirabete) entre os delitos dos arts. 155 e 257 no exemplo anteriormente mencionado. Independente de conceber-se a ação delituosa como concurso real ou ideal, teríamos como resultado a dupla responsabilização de uma pessoa que subtraísse um aparelho destinado a salvamento alheio por ocasião de uma catástrofe: por furto e por subtração de material de salvamento. O sujeito seria responsabilizado penalmente por dois delitos por ter subtraído uma única coisa móvel (!). É exatamente este tipo de punição que o princípio ne bis in idem veda.

            Dentre as várias obras de direito penal consultadas durante a elaboração deste artigo, foi encontrado em apenas uma pensamento consoante com o aqui defendido. Celso Delmanto (9) afirma "não haver concurso deste art. 257 com os crimes de furto e dano, pois as ações de subtrair e inutilizar já compõem o tipo deste art. 257". Parece-me irrepreensível este entendimento.

            Este artigo centrou-se na forma de execução "subtrair" do delito previsto no art. 257. Contudo, faz-se imprescindível destacar que o entendimento aqui exposto pode – e deve – ser estendido ao delito de dano (art. 163). O mesmo paralelo feito entre o furto e a subtração, por coerência e bom senso aplica-se ao delito de dano (destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia) e a forma de execução inutilização. A subtração e a inutilização, nos moldes do art. 257, são, respectivamente, furto e dano acompanhados de elementos objetivos (10) temporais ("por ocasião de incêndio, inundação, naufrágio ou outro desastre ou calamidade") e referentes ao objeto do delito ("aparelho, material ou qualquer meio destinado a serviço de combate ao perigo, de socorro e salvamento").

            Desta forma, entendo repudiável o concurso entre os delitos de furto ou dano com o crime de subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento, por tal possibilidade afrontar, de forma grosseira, os princípios da especialidade e do ne bis in idem.

            Por vezes, o operador do Direito Penal peca por excessivo apego à legalidade e acaba por olvidar-se de princípios fundamentais que regem a ciência criminal.

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            Defender o concurso entre os arts. 155 ou 163 e 257, isto é, concurso de crimes em que um tipo é parte integrante do outro implicaria em defender concurso entre crimes como homicídio e infanticídio, extorsão e extorsão mediante seqüestro, estelionato e duplicata simulada, etc. Estas são hipóteses em que a impossibilidade de concurso é pacífica na doutrina brasileira, em virtude do princípio da especialidade, daí porque me causa estranheza observar a maior parte da doutrina não recorrer ao mesmo princípio em circunstância tão semelhante.


Bibliografia

            Brasil. Leis e Decretos. Código Penal. 41 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

            BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva: 2002.

            DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 2 ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 1988.

            GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 2 ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2003.

            JESUS, Damásio. Direito Penal: parte geral. 26 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 1.

            ______. Direito Penal: parte especial. 25 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 2.

            ______. Direito Penal: parte especial. 12 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. vol. 3.

            MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: parte especial – arts. 235 a 361 do CP. 16 ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2001.

            NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 23 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998.

            PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte especial – arts. 184 a 288. 2 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais.


Notas

            1

Secretário Executivo de Segurança Pública do Estado do Pará e Professor da Universidade da Amazônia, a quem agradeço pelas brilhantes aulas bem como freqüente estímulo ao estudo das ciências criminais.

            2

JESUS, Damásio. Direito Penal. Vol.2. p.309.

            3

"(...) se ao gente danificar, furtar, etc. material ou aparelho alheio, responderá pelo concurso material". CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. vol.3. p. 186.

            4

"(...) caso o agente tenha subtraído ou danificado o aparelho ou material alheio destinado ao socorro ou salvamento, responderá pelo delito de furto (art.155) ou dano em concurso material". PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol.3. p. 486.

            5

"Havendo furto, dano, etc. ocorre concurso formal de delitos". MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. vol. 3. p.116.

            6

"Existirá ainda [concursus delictorum] se, v. g., o agente furtar o aparelho de salvamento pertencente a outrem, se o danificar" NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. vol. 3. p.347.

            7

"Caso o sujeito ativo tenha subtraído ou danificado o aparelho ou material alheio destinado ao socorro ou salvamento, responderá pelo crime de furto (art.155) ou dano (art. 163), em concurso material. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. p. 971.

            8

JESUS, Damásio. Direito Penal. vol.1. p.11.

            9

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. p. 449.

            10

Elemento objetivo, na lição Jescheck, citado por Rogério Greco, "tem a finalidade de descrever ‘a ação, o objeto da ação e, em sendo o caso, o resultado, as circunstâncias externas do fato e a pessoa do autor’".
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Sobre a autora
Beatriz Nazareth de Souza Teixeira

Acadêmica do Curso de Direito da Universidade da Amazônia – UNAMA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Beatriz Nazareth Souza. Impossibilidade de concurso entre os crimes de furto e subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 639, 8 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6537. Acesso em: 24 nov. 2024.

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