Não se recomenda iniciar um texto expressando um “não”, porque o leitor quer saber do sim em primeiro lugar. O leitor não quer saber o que não-é, mas sim o que é. Porém, como estamos em crise existencial tão profunda da democracia, iniciamos e terminamos o texto com as negatividades atuais de nosso país. Assim...
Não bastasse a seletividade imposta pelo Estado Penal, acionando o racismo & elitismo na busca e captura dos pobres e negros , seguindo-se a lógica da Casa Grande & Senzala, agora temos afronta direta ao Direito Ocidental.
Não bastassem as ações do Supremo Tribunal Federal em arregimentar uma interpretação constitucional contra o texto (líquido e certo) da Constituição Federal de 1988 (trânsito em julgado), agora temos uma ameaça clara vinda do Congresso Nacional – combalido em corrupção e desmoralizado mundialmente ao preço de “emendas parlamentares” – contra as chamadas cláusulas pétreas.
Não bastassem os Capitães do Mato sempre perseguindo os Capitães da Areia, no mais recente capítulo de nossa Transmutação Constitucional – conduzindo-nos de volta à Polaca –, um deputado quer, por emenda à Constituição, mudar o que está disposto como cláusula pétrea. No caso, o referido trânsito em julgado.
Com esses açoites ao Estado de Direito Democrático – que de democrático só tem o nome –, à mais singela lógica jurídica de primeiro ano de curso de direito, esconde-se a ignorância da própria Constituição.
Com a mera proposta, ainda que não prospere, é revelado o fato assustador de que um parlamentar – sem ter lido o Texto Maior, sem que demonstre o mínimo conhecimento e respeito à Constituição – queira injustamente modificar o que desconhece.
Como, perguntaria uma criança com bom senso, alguém pode tecer considerações sobre o que não domina em conhecimento? Pois é, o bom senso diria que não pode.
Mas, como estamos em ano eleitoral e o tal deputado quer embalar seu eleitor em cantilenas de dormir tranquilo, inventa qualquer monstruosidade para angariar meia dúzia de votos.
Pode-se dizer que se trata de estelionato eleitoral, porque, ao falar o que o senso comum na voz rouca das ruas quer ouvir, não diz a verdade dos fatos. A verdade é que o artigo 60, IV da CF88 proíbe qualquer modificação das cláusulas pétreas: a exemplo dos tolos que apresentam projetos de lei instituindo a pena de antecipação da morte e da redução da maioridade penal.
Não passam.
Tanto quanto, espera-se, não passe este absurdo de se anular o princípio da presunção da inocência, ou de, em ultima ratio, recorrer em liberdade. Uma vez que só não é inocente aquele em que a condenação já transitou em julgado, ou seja, com condenação definitiva a Constituição quis que a liberdade fosse a regra e não a exceção.
Qualquer mudança em cláusula pétrea seria admissível – para a maioria dos juristas – se fosse orquestrada em Assembleia Nacional Constituinte. Porém, mais à minoria destes, pode-se dizer que nem mesmo assim os pressupostos do Direito Ocidental poderiam ser destruídos; claramente, porque o Poder Constituinte não é mais aquele que tudo pode, esse “tudo” esbarra na vedação ao retrocesso e no respeito às conquistas sociais da Humanidade. No mínimo.
A presunção da inocência, por exemplo, remonta à Idade Média e ao final da caça às bruxas – quando passaram a poder se defender judicialmente. Porém, em nosso “novo” estelionato jurídico apresentamos nossas saudades tupiniquins.
Além do mais, haveria afronta, mesmo em Processo Constituinte, ao Princípio da Vedação ao Retrocesso Social: sendo inconstitucional, imoral, ilegítimo retroceder no fluxo teleológico do processo civilizatório. Se na Revolução Francesa a burguesia denunciou o autoritarismo, é dever atual que o Poder Constituinte se estabeleça racional e “programado” pelo povo, já que é dele que se origina.
Quer dizer, em outras palavras, que mesmo que o tal deputado sonhe com a barbárie é dever da Humanidade não permitir. Portanto, todos que se consideram humanos deveriam denunciar tais invenções proto-fascistas.
Pois, no fundo, o tal deputado – na ânsia por agradar o eleitor desinformado – poderia trazer uma emenda pró-fascista. Se nosso povo aceitaria isso hoje?
É provável.
Porque já assistimos o desfile do fascismo no cortejo fúnebre da democracia e do Estado de Direito, sem denunciar o abuso de poder e a utilização das estruturas públicas para traçar, ocultar, um plano eleitoreiro.
Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH
Vinícius Alves Scherch
Mestrando em Ciência Jurídica na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP
Advogado