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Responsabilidade civil pelo dano moral: o quantum debeatur

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CAPÍTULO  II

1. Conceito de Dano.

A palavra dano deriva da expressão latina damnum que, genericamente, significa todo mal ou ofensa que tenha uma pessoa causado a outrem, da qual possa resultar deterioração ou destruição do patrimônio. 

Hans Albrecht Fischer apresenta a definição de dano em duas acepções.

Na visão vulgar, o dano seria o prejuízo que alguém sofre, na sua alma, no seu corpo ou nos seus bens, sem indagação de quem seja o autor dessa lesão de que resulta.

A significação jurídica, embora partindo da mesma fundamental, é delimitada pela condição de pena ou de dever de indenizar atrelado à lesão. Dano, portanto, vem a ser o prejuízo sofrido pelo sujeito de direitos em conseqüência da violação destes por fato alheio.10

A concepção normalmente aceita a respeito de dano envolve uma diminuição do patrimônio de alguém em decorrência da ação lesiva de terceiros, ou seja, uma violação do patrimônio economicamente aferível.

Ensina o ilustre Pontes de Miranda que o dano se estabelece mediante o confronto entre o patrimônio realmente existente após o dano e o que possivelmente existiria se o dano não se tivesse produzido. Seria, portanto, expresso pela diferença negativa encontrada nessa operação.11

Porém, a concepção de dano ressarcível não pode se circunscrever à existência de prejuízo real, pois o patrimônio do indivíduo não é composto unicamente de bens materiais ou de conteúdo pecuniário, assim como a tutela jurídica não recai exclusivamente sobre estes.

É o que se aduz do conceito de Antunes Varela:

O dano, para efeito da responsabilidade civil, é toda lesão nos interesses de outrem, tutelados pela ordem jurídica, quer os interesses sejam de ordem patrimonial, quer sejam de caráter não patrimonial.12

Define-se, portanto, como desvantagem, lesão, ofensa ou mesmo a diminuição sofrida pelos bens jurídicos de qualquer natureza. Reflete injusto mal que alcança não só  patrimônio econômico do indivíduo, como também o seu corpo, a sua liberdade, a sua honra, seu bem-estar, enfim, fere seus direitos fundamentais ou individuais.

2. Dano Patrimonial            

O patrimônio, em sentido jurídico, é composto por um conjunto de direitos os quais podem ser apreciados em dinheiro. Assim, o dano patrimonial pressupõe sempre ofensa ou diminuição de certos valores econômicos.  Dessa diminuição patrimonial que caracteriza o dano extrai-se o princípio segundo o qual o dano somente tem relevância jurídica como fato consumado, seja ele positivo ou negativo. No caso da perda consistir em efetiva redução do patrimônio, tem-se o damnum emergens ou dano positivo. Já no caso da perda ser representada pela frustração do ganho é designada lucrum cessans ou dano negativo, cuja existência indica o prejuízo do credor derivado da demora culposa do cumprimento da obrigação. O inadimplemento da obrigação o priva de determinados lucros.  

O dano patrimonial, do exposto, é passível de verificação visual, de fácil constatação, ainda que se trate de dano negativo. A comprovação de sua existência perfaz-se com uma mera operação matemática em que se mensura monetariamente a redução do patrimônio, seja ele pecuniário em espécie ou  integrado de bens passíveis de conversão em dinheiro.  

3. Dano Extrapatrimonial

Inicialmente, a doutrina usou a expressão extrapatrimonial como sinônimo de dano moral em razão deste se situar fora do patrimônio material do indivíduo. Entretanto, com o desenvolvimento tecnológico e biotecnológico inerente aos dias atuais e que abarcam nosso cotidiano, há uma gama crescente de danos que, apesar de adstritos ao âmbito extrapatrimonial, não estão localizados de forma precisa no âmago da pessoa. Assim, verbi gratia, temos a preservação do meio ambiente, a proteção do material genético do ser humano, do patrimônio histórico, cultural e arqueológico. Esses interesses difusos e coletivos são resguardados legalmente e exigem reparação civil a ser obtida  através de ações coletivas.

Segundo explanação do Professor Norberto Bobbio essa multiplicação, quase uma proliferação ocorreu em razão de três fenômenos: o aumento da quantidade de bens considerados merecedores de tutela pois a cada dia se verifica e descobre bens imprescindíveis a vivência humana, portanto coroados de proteção legal; a extensão da titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem e, finalmente,  porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente etc. Em substância há mais bens, mais sujeitos, mais status do indivíduo.

Os danos extrapatrimoniais, portanto, não mais estão circunscritos a uma classificação restrita e previamente definida, mas sim são dotados de flexibilidade que os compatibiliza com as novas manifestações da vida moderna e o com desenvolvimento social. Ademais, na realidade, configuram o gênero, dos quais os danos morais são espécie.           


CAPÍTULO  III

Dano Moral

Imprescindível, para se vislumbrar e debater todas as formas de reparação, a definição do dano moral.

Inicialmente, a conceituação de dano moral era obtida por contraposição ao dano material. Assim, o dano moral seria todo dano privado cujos efeitos não são compatíveis com os causados pelo dano patrimonial, tendo por objeto um interesse sem conteúdo econômico.  Logo, quando ao dano não correspondiam as características do dano patrimonial, estávamos diante de um dano moral.

Todavia, tal definição reduzia o conceito de patrimônio a um conjunto de bens e valores de conteúdo econômico, quando na realidade este também é composto por bens imateriais, diretamente ligados à vida do homem, seja pessoal ou em sociedade.

Esse é o entendimento de Carlos Alberto Bittar quando afirma que os danos morais decorrem de lesão aos atributos valorativos do homem, ou mesmo às suas virtudes, ou seja, elementos que o individualizam como ser, dos quais se destacam a honra, a reputação, as manifestações do intelecto etc.13

Savatier o define como o sofrimento humano não causado por uma perda pecuniária, mas que abrange todo o atentado à reputação da vítima, à sua autoridade legítima, ao seu pudor, à sua segurança e tranqüilidade, ao seu amor próprio estético, à integridade de sua inteligência, à suas afeições etc. A ofensa atinge bens que têm um valor precípuo na vida do ser humano, embora não possa ser visualizada e nem medida, acarreta dor na alma.14

Em seu estudo sobre o Dano Moral, o doutrinador italiano Minozzi, defensor de sua ressarcibilidade, afirma que tal dano é a dor, o espanto, a emoção, a aflição física ou moral, em geral uma dolorosa sensação provada pela pessoa, atribuindo a dor o mais amplo significado.15 O patrimônio material não é alcançado pelo prejuízo, não há diminuição nem frustração de seu acréscimo, há sim uma ofensa a bens de caráter imaterial, desprovidos de conteúdo econômico, insuscetíveis de avaliação pecuniária, mas que suscitam na vítima dor e sofrimento, abalando seu espírito. A proteção legal abarca o sentimento interior do indivíduo para com ele mesmo e para com a coletividade.

No Repertório Enciclopédico Jurídico, Arnoldo Medeiros da Fonseca conceitua o dano moral da seguinte forma:

Dano moral, na esfera do direito, é todo sofrimento humano resultante de lesão de direitos estranhos ao patrimônio, encarado como complexo de relações jurídicas com valor econômico. Assim, por exemplo, envolvem danos morais as lesões a direitos políticos, a direitos personalíssimos ou inerentes à personalidade humana (como direito à vida, à liberdade, à honra, ao nome, à liberdade de consciência ou da palavra), a direitos de família (resultantes da qualidade de esposo, pais ou de parente), causadoras de sofrimento moral ou dor física, sem atenção aos seus possíveis reflexos no campo econômico.16 

       Observa-se que o dano moral possui um caráter objetivo e outro subjetivo. Objetivo pois advém de um ato ilícito visível e concreto. Subjetivo pois somente pode ser verificado pelos sujeitos que circundam o lesionado quando este exterioriza seu aspecto espiritual e psíquico abalado pela dor moral. O golpe desfechado contra os bens espirituais ou morais traduz-se por sensações desagradáveis, humilhantes ou constrangedoras, imperceptíveis ao senso comum até que externadas pela vítima.

Afirma o professor Alexandre Sturion de Paula que se trata do pior dano possível dentre todos os compreendidos na seara jurídica vez que vem demolir o alicerce que cada ser humano possui para sobrevivência e convivência social.17

2. Antecedentes Históricos.

Da vingança à compensação econômica, a histórica mostra-nos o Dano Moral na Antiguidade e sua evolução.

2.1. O Código de Ur Nammu.

Ao longo da civilização humana, a mais antiga codificação que se tem notícia é o Código de Ur-Nammu, oriundo dos povos primitivos da Suméria, na Babilônia. Para esses povos primitivos o preceito “olho por olho, dente por dente” como forma de reparar o dano era a mais eficiente maneira de reduzir eficazmente a dor da vítima.

Essa codificação propugnava pelo direito de vindita ou de vingança da vítima como pena para o dano a ela causado. Dificilmente se poderia cogitar que a reparação pelos danos morais não se apresentava regulamentada às linhas usuais da clássica lei de talião.

Todavia, surpreendentemente, nesse Código havia previsão de substituição do direito de vingança, em grande parte representado pelo sofrimento físico imposto ao causador do dano, pela pena pecuniária.

A reparação traduzia-se no pagamento de siclos, uma moeda de prata de cerca de seis gramas, ou mina de prata - cerca de quinhentos gramas de prata.  Os trechos abaixo transcritos, extraídos do Código de Ur-Nammu, demonstram a precípua noção de responsabilidade civil e de reparação pecuniária:

Se um homem, a outro homem, com um instrumento, o pé se cortou: 10 siclos de prata deverá pagar.

Se um homem, a outro homem, com instrumento, o pé se cortou: 10 siclos deverá pagar.

Se um homem, a um outro homem, com uma arma, os ossos tiver quebrado: uma mina de rata deverá pagar.

Se um homem, a outro homem, com instrumento geshpu, houver decepado o nariz: dois terços de mina de prata deverá pagar.18

2.2 O Código de Hamurabi.

Adequado, preliminarmente, ressaltar que o instituto da reparação do dano causado a terceiro advém de tempos antigos. Na história da civilização, ao que se tem conhecimento, a pioneira noção acerca de dano e sua reparação surgiu em um sistema codificado de leis da Mesopotâmia. Hamurabi, monarca da Babilônia (1728 – 1688 a.C.) estabeleceu em seu Código uma ordem social fundada nos direitos dos indivíduos e na autoridade das divindades babilônicas e do Estado.

Gravado em uma estrela de basalto negro e atualmente exposto no museu do Louvre, Paris/França, o Código de Hamurabi foi o primeiro na história em que predominaram idéias claras sobre o direito e economia e, principalmente, a constituir uma forma de reparação de dano caracterizado pelo célebre axioma primitivo “olho por olho, dente por dente”.

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O contexto de reparação encontra-se evidenciado nos parágrafos abaixo transcritos:

196. Se um homem arrancar o olho de outro homem, o olho do primeiro deverá ser arrancado [Olho por olho].

197. Se um homem quebrar o osso de outro homem, o primeiro terá também seu osso quebrado.

200. Se um homem quebrar o dente de um seu igual, o dente deste homem também deverá ser quebrado [Dente por dente]. 19

Cabe ressaltar que o próprio Código de Hamurabi já tratava dessa modalidade sancionatória através de compensação econômica, conforme demonstram os parágrafos a seguir descritos:

203. Se um homem que nasceu livre bater no corpo de outro homem seu igual, ele deverá pagar uma mina em ouro.

204. Se um homem livre bater no corpo de outro homem livre, ele deverá pagar 10 shekels em dinheiro.

205. Se o escravo de um homem livre bater no corpo de outro homem livre, o escravo deverá Ter sua orelha arrancada.

206. Se durante uma briga um homem ferir outro, então o primeiro deve jurar que "Eu não o feri de propósito" e pagar o médico para aquele a quem machucou.

207. Se o homem morrer deste ferimento, aquele que o feriu deve proferir o mesmo juramento, e se o falecido tiver sido um homem livre, o outro deverá pagar 1/2 mina de ouro em dinheiro.

208. Se ele era um homem liberto, ele deverá pagar 1/3 de uma mina.

209. Se um homem bater numa mulher livre e ela perder o filho que estiver esperando, ele deverá pagar 10 shekels pela perda dela.

A previsão dessa compensação econômica, com o ordenamento de pagamento em favor da vítima, além de evidenciar o escopo primordial de coibir os abusos de violência e reprimir o sentimento de vingança, demonstrou a formação de uma idéia que modernamente denominou-se teoria da compensação econômica.

2.3 O Código de Manu.

Historicamente as leis da Manu (séc. II a.C.- séc. II d.C.) são tidas como a primeira organização geral da sociedade sob a forte motivação religiosa e política. É vista como uma exaustiva compilação das civilizações mais antigas. Inscrito em sânscrito, constitui-se na legislação do mundo indiano e ainda influi no estamento social e religioso da Índia.

Embora não tenha tido uma projeção legal, quando comparado ao Código de Hamurabi, infiltrou-se na Assíria, Judéia e Grécia. Em certos aspectos é um legado, comparado ao deixado por Roma à modernidade.

O aspecto que o diferencia do Código de Hamurabi é a supressão da violência física como forma de reparação por um valor pecuniário, tolhendo a fúria vingativa da vítima, ressarcido-a com uma soma em dinheiro arbitrada pelo legislador.

O Código de Manu em seu parágrafo 239 do Livro IX preconizava, já naquela época, a responsabilidade judiciária, pois seu teor permitia que o rei, na revisão do processo, impusesse aos ministros ou juízes responsáveis uma pena de mil panas pela condenação injusta de pessoa inocente. Trouxe-nos, portanto, uma conceituação primária da indenização do dano moral.

2.4 O Dano Moral no Alcorão.

O Alcorão ou Corão é o livro sagrado da religião islâmica. Para aproximadamente oitocentos mil muçulmanos espalhados em pelo menos quarenta países do mundo ele é a palavra literal de Deus revelada ao profeta Maomé ao longo de um período de 22 anos. Constitui uma força indutora de comportamento religioso, social e político de seus seguidores. A princípio, o Alcorão adotou, em parte, a pena de talião. Porém, seu conteúdo busca abrandar o direito de vindita regulamentando numerosas compensações econômicas em substituição à vingança.

Os preceitos elencados no Alcorão induzem o repúdio à vingança, pregando o perdão e a misericórdia como meios de aplacar o ódio da vítima. Vejamos o verso 173, capítulo II:

A pena de Talião está prescrita para o caso de homicídio. . . . aquele, porém, que perdoar o matador de seu irmão, terá direito de exigir uma razoável indenização, que lhe será paga com reconhecimento.20

2.5 A Legislação Romana.

Os romanos consideravam ato lesivo aquele que se voltava contra o patrimônio ou à honra de alguém e pregavam que dano decorrente daquele ato deveria ser reparado através de sanção pecuniária.

O jus scriptum romano dividiu-se em três períodos distintos: I – o primeiro iniciou-se a partir da vigência da Lei das XII Tábuas, no ano de 452 a.C.; o segundo período iniciou-se a partir de 286 a.C., com a vigência da Lex Aquilia; e III – o terceiro período iniciou-se em 528/534 a.C., com a vigência da Legislação Justiniana, a qual também foi fracionada em fases distintas compostas pela Institutas, Codex Justiniano e Digesto ou Pandectas.

No jus romanum todo e qualquer ato lesivo ao patrimônio ou à honra demandava conseqüente reparação, o que ressalta sua exata noção de responsabilidade civil, bem como de reparação pecuniária. A ofensa à honra já era tida como injúria, que significa etimologicamente o não direito. O professor Américo Luis Martins da Silva esclarece que no entendimento dos doutrinadores Giorgio Giorgi, Keller e Wening-Ingenheim o damnum injuria datum compreende a lesão ocasionada a um homem fora do direito patrimonial em estrito senso. Esta também é a opinião de Scheweppe, o qual descreve que, para materialização do delito de injúria no âmbito do ordenamento romano, bastava a intenção ultrajante do autor, o seu desejo de causar uma ofensa ao injuriado, independentemente de haver ocorrido prejuízo patrimonial.   

A Lex Duodecimarum Tabularum foi promulgada em 452 a.C. Segundo a tradição, surgiu por insistência dos plebeus que visavam por fim a incerteza do direito com a elaboração de um codex que viesse refrear o arbítrio dos magistrados patrícios contra a plebe. Uma vez formulada, tornou-se uma série de definições de diversos direitos privados e de procedimentos.

Na Tábua VII, que trata dos delitos nos seus 18 capítulos, há a descrição dos atos ilícitos e a reparação conseqüente dos mesmos, como se observa a seguir:

1. Se um quadrúpede causar qualquer dano, que o seu proprietário indenize o valor desse dano ou abandone o animal ao prejudicado.

2. Se alguém causar um dano premeditadamente, que o repare.

5. Se o autor do dano for impúbere, que seja fustigado a critério do pretor e indenize o prejuízo em dobro.

8. Mas, se assim agir por imprudência, que repare o dano; se não tiver recursos para isso, que seja punido menos severamente do que se tivesse intencionalmente.

9. Aquele que causar dano leve indenizará 25 asses.

12. Aquele que arrancar ou quebrar um osso a outrem deverá ser condenado a uma multa de 300 asses, se o ofendido for um homem livre; e de 150 asses, se o ofendido for um escravo.

13. Se o tutor administrar com dolo, que seja destituído como suspeito e com infâmia; se tiver causado algum prejuízo ao tutelado, que seja condenado a pagar o dobro ao fim da gestão.21

Denota-se, pelo conteúdo da lei decenviral, principalmente de seu parágrafo nono, que os romanos, ainda que primaria e superficialmente, já adotavam a reparação pecuniária e reconheciam a existência do dano moral. Rudolf Von Ihering defende a conclusão pela aceitabilidade dos romanos, quase que ilimitada, da reparação dos danos morais. Inclusive, para ele, essa reparabilidade se verificava não apenas nos casos de culpa extracontratual, como até mesmo nos casos de simples culpa contratual.

 Os cidadãos romanos dispunham de ação pretoriana pela qual se voltavam contra seu injuriador e reclamavam uma reparação composta de soma em dinheiro, cujo montante era definido pelo prudente arbítrio do juiz. Tal arbitramento, contudo, somente tinha lugar depois de feita, pela parte ofendida, sob juramento, a estimativa do próprio dano, à qual nem sempre se prendiam os fazedores da justiça. Tal ação, denominada actio injuriarum aestimatoria, constituía meio de proteção ao patrimônio moral do indivíduo, salvaguardando sempre sua reputação e sua honra.

A Lex Aquilia é considerada um marco na evolução histórica da responsabilidade civil, pois não se limitou a apenas especificar de forma mais clara os atos ilícitos, mas substituiu penas que até então eram fixadas pelo valor da coisa lesionada durante os trinta dias anteriores ao delito. Sua importância grandiosa fundou a designação da responsabilidade civil extracontratual – responsabilidade civil aquiliana, decorrente da violação direta de uma norma legal.  Com seu advento se introduziu a culpa como fundamento da responsabilidade, como elemento constitutivo do delito.

3. O Dano Moral e o Direito Brasileiro

A princípio, o Dano Moral no Brasil foi extremamente hostilizado pela doutrina e pela jurisprudência. A noção de delito era restrita ao fato ou omissão de que restasse dano ao patrimônio material do ofendido. A interpretação da lei civil tutelava apenas direitos apreciáveis em dinheiro. Portanto, o mal causado pelo ato ilegal, gerador de sofrimento psíquico, não acarretava qualquer indenização pecuniária, amargando o lesado o desamparo de sua própria sorte.

Havendo prejuízo moral este permanecia irreparável, conforme se observa do julgado abaixo transcrito:

A legislação pátria nunca consagrou a obrigação de indenizar danos puramente morais, insuscetíveis de serem avaliados em dinheiro. Não se pode reduzir em moedas os sentimentos, nem se tarifam as afeições. 

Não se pode resolver em dinheiro a dor que alguém sofre pela morte de outrem. 22

Os adversários da reparabilidade do dano moral justificavam sua repulsa alegando que a dor e a honra jamais poderiam ser objeto de avaliação pecuniária. A idéia era a de que a indenização alicerçada na dor moral jamais atingiria a soma dos prejuízos obtidos com a lesão e a fixação de um quantum indenizatório demonstraria apenas um interesse ganancioso de lucro por parte de vítima utilizando-se de sua dor.

Consideravam imoral o estabelecimento do pretium doloris o que poderia causar uma desagregação social. Ademais, face ao seu caráter subjetivo, seria impossível se obter um valor exato para a reparação do dano moral, já que o mesmo não repercute no patrimônio material da vítima. A falta de um efeito penoso durável também balizava a opinião dos opositores, além das dificuldades de se comprovar a existência do dano, bem como o excesso do arbítrio concedido ao juiz.

Num segundo momento, passou-se a acolher a reparação do dano moral, desde que sua ocorrência refletisse no patrimônio material do ofendido. Em sentença proferida por Luis Augusto de Carvalho e Melo, em 05 de abril de 1913, confirmada por acórdão de 20 de setembro de 1915 o dano moral tornou-se indenizável quando afetasse o patrimônio da vítima, empobrecendo-a.23 

Os danos puramente morais permaneciam irreparáveis, embora substancial número de doutrinadores e mesmo julgadores já apontassem que a reparação do dano moral é tão devida quanto a do dano material. Afirmavam alguns que as condições morais do indivíduo detêm proteção legal, não podendo a falta de critérios preestabelecidos pela legislação ser óbice ao resguardo jurídico. Para tal omissão, há que se contar com o prudente arbítrio do julgador, que deve pesar as circunstâncias de cada caso concreto.

Nessa noção, Pontes de Miranda afirmou ser irracional a justiça que considera irressarcível o que tão fundo feriu o ser humano, pregando a supremacia de interesse econômico sobre o interesse moral e intelectual.24

 Tal circunstância foi chamada por Caio Mário da Silva Pereira de “desvio de perspectiva”.25

Paulatinamente, as teses firmadas pelos adversários da reparabilidade do dano moral foram rechaçadas principalmente porque o escopo da indenização não é, jamais foi, atribuir um preço à dor ou mesmo transformá-la em objeto de mercância, sua finalidade precípua é amenizá-la. Aquele que teve sua esfera íntima abalada apazigua sua dor por meio de um lenitivo pecuniário. Não se cuida, portanto, dar valor econômico à moral, mas de afastar e arredar os males que a afligem. 

Em 1965 desembargadores brasileiros reuniram-se na II Conferência Nacional de Desembargadores, no antigo estado da Guanabara, com o intuito de amoldar o Direito aos anseios e expectativas da sociedade, enfim adequá-lo à realidade da época.  Discorre Rodrigo Mendes Delgado que ninguém pode se manter por muito tempo no retrocesso, na estagnação, notadamente, quando inserido num contexto social que muda a todo o momento. O potencial mutacional se tornou vertiginoso na sociedade moderna, mormente, a partir do século XX, não podendo o Direito estar alheio a essas modificações.26

Nesse conclave, os nobres magistrados definiram o dano puramente moral como ressarcível. Sua apreciação ficou a cargo do prudente arbítrio do juiz que, em cada caso, deveria atentar à repercussão econômica, à prova da dor e ao grau de dolo ou culpa do ofensor. Estendeu-se a prerrogativa de interpor reclamação por danos morais, agora não mais apenas da própria vítima, mas também de seus descendentes, cônjuges e colaterais até o segundo grau.27  

Após esse evento, a jurisprudência uniformizou-se no sentido da admissibilidade do dano puramente moral.

O dano moral é ressarcível. A corrente que lhe restringe a ressarcibilidade é contrária à lei e à lógica jurídica. A regra geral é a da responsabilidade plena, não havendo como confundir o princípio da liquidação com o princípio atinente ao direito da reparação. 28  

Embora o dano moral seja um sentimento de pesar íntimo da pessoa do ofendido, para o qual não se encontre estimação perfeitamente adequada, não é isso razoa para que se lhe recuse uma compensação qualquer. Essa será estabelecida como e quando possível, por meio de uma soma, que não importando uma exata reparação, todavia representará a única solução cabível nos limites das forças humanas.29

A promulgação da Constituição Federal em 1988 pôs fim a qualquer resistência ainda persistente ao dano moral e sua reparação. A inteligência dos incisos V e X do Artigo 5º da Carta Magna dotou, indubitavelmente, o patrimônio imaterial do indivíduo de proteção legal. O direito de resposta, a indenização do dano material, a indenização do dano moral e a indenização do dano à imagem estão assegurados por norma constitucional. Reza a Constituição são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, Não se trata, obviamente, de enumeração taxativa, pois esses direitos não são os únicos cuja violação sujeita o agente a reparar. Cumpre a jurisprudência e a lei ordinária editar outros casos.

Expurgado o materialismo exacerbado que somente reconhecia o dano patrimonial, sagrou-se vitoriosa a corrente positivista defensora da reparabilidade do dano moral puro.   

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Sobre a autora
Karim Andrade Cardozo de Macedo

Servidora Pública Estadual, bacharel em Direto pela Faculdade de Direito de Sorocaba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Karim Andrade Cardozo. Responsabilidade civil pelo dano moral: o quantum debeatur. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5489, 12 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65837. Acesso em: 18 abr. 2024.

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