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A fiscalização do trabalho frente à flexibilização das normas trabalhistas

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13/04/2005 às 00:00
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3 - A INSPEÇÃO DO TRABALHO NO PANORAMA DA FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES TRABALHISTAS

3.1 Histórico da flexibilização

A compreensão da posição da Inspeção do Trabalho no cenário em que se desenvolve a flexibilização das relações trabalhistas no Brasil passa necessariamente pelo conhecimento das etapas em que ocorre todo o processo de modificação da legislação trabalhista, desde as origens até a fase atual.

Na busca dessa compreensão conclui-se que a flexibilização das relações trabalhistas tem origem em tempos mais distantes, ou seja, não é um fenômeno novo. Na verdade foi iniciada logo após o início da ditadura militar, em 1966, com a lei nº 5.107/66, que criou o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e catapultada com toda ênfase no governo Fernando Henrique Cardoso, mais claramente no seu segundo mandato, sob a argumentação de necessidade de adequação à realidade do mercado de trabalho, onde a "modernidade" é a inspiração sustentadora da necessidade de colocação das empresas brasileiras no mercado internacional, da busca de produtividade e diminuição dos encargos trabalhistas, entre outros.

Sustenta-se que na era Vargas situa-se o marco inicial da construção do modelo de legislação trabalhista brasileiro, onde fora criado o conjunto de normas contempladoras da acomodação do operariado nacional que, ante o limiar das transformações econômicas, colocar-se-ia em posição de demandas reivindicativas que pudessem perturbar o desenvolvimento econômico. Aí estaria a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, objeto de questionamentos nas décadas que se seguiram [24].

Com o governo militar as turbulências políticas e econômicas do período são enfrentadas com diversas medidas de limitação de direitos sociais e políticos, entre as quais, a promoção do fim da estabilidade no emprego constante da CLT. Assim, surge a primeira importante medida flexibilizadora no Brasil. Essa medida veio ao encontro aos anseios da classe econômica, uma vez que a norma que estabelecia a possibilidade de opção do trabalhador entre a estabilidade ou o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço em regra não era respeitada pelo empregador, pois a condição para o emprego era a de opção pelo sistema do FGTS, o que possibilitava ao empresariado impor piores condições de trabalho ante a ameaça da dispensa, aliada à repressão imposta pelo regime militar aos sindicatos.

Passados os anos de governos militares verifica-se o grande movimento em prol da consolidação da democracia, onde os trabalhadores buscam a consagração de seus direitos na Constituição Federal. Nesta, a transição do regime de estabilidade e FGTS é concluído, de modo que apenas passa a existir o regime do FGTS, logicamente respeitados os direitos adquiridos. Outros diversos direitos são inseridos na Carta Magna em prol da classe trabalhadora, embora muitos deles já fossem conquistas anteriores em negociações coletivas de certas categorias.

Mas embora parecesse frutífera a árvore de direitos trabalhistas na Constituição, revelou-se nem tanto produtiva, eis que diversos direitos nela contemplados necessitavam de regulamentações que jamais ocorreram, tais como: proteção contra dispensa arbitrária, participação dos trabalhadores na gestão das empresas, licença paternidade, ampliação do aviso prévio proporcional ao tempo de serviço trabalhado, redução dos riscos inerentes ao trabalho, adicional de remuneração para atividades penosas, proteção do empregado contra efeitos da automação, entre outros. Ao contrário, a partir da década de 90 passam esses e outros direitos a serem questionados ante o discurso da "modernização" do sistema trabalhista brasileiro, de modo que neste período intensificam-se as discussões em torno da flexibilização das relações de trabalho, onde os discursos, pouco articulados e sem concretização no governo Collor, ganham novos contornos e sustentação no governo Fernando Henrique Cardoso, que efetivamente apresenta propostas e insere mudanças no sistema normativo trabalhista.

As alterações constitucionais e infraconstitucionais de modificação do sistema têm sido amplamente discutidas por juristas, sociólogos, economistas, sindicalistas, enfim, em diversos seguimentos da sociedade. Nessa análise destaca-se a redução de direitos promovida com as medidas adotadas e propostas. A doutoranda BRAGA, fez o seguinte agrupamento das alterações que contornam o modelo idealizado:

i) alterações que precarizam o trabalho, tornando o contrato e as condições de trabalho mais frágeis, em particular em relação à redução de direitos trabalhistas e previdenciários;

ii) alterações que tornam as empresas mais livres para contratar e dispensar empregados com redução do custo do trabalho ou com estímulo a negociações coletivas descentralizadas;

iii) alterações que retiram do Estado as atribuições relativas à proteção de direitos trabalhistas e previdenciários; e

iv) alterações que forçam mudanças no papel dos sindicatos. [25]

As alterações voltadas ao modelamento do idealizado sistema normativo trabalhista brasileiro, dotando-o da "flexibilização" apaixonadamente defendida ou atacada, trouxeram para a Inspeção do Trabalho significativos questionamentos quanto ao seu papel nos cenários pós-mudanças, impingindo-a à definição de métodos de atuação compatível com a defesa dos direitos dos trabalhadores ante as novas práticas dos empregadores com respaldo formalístico da legislação então criada sob o argumento da "modernização". Esse desafio apresentado à inspeção estatal desenvolveu-se no paralelo do formalismo da legislação flexibilizadora e ancorado na realidade das relações trabalhistas.

Como é reconhecido pelos estudiosos da legislação trabalhista no Brasil, são indicados diversos exemplos de alterações constitucionais e infraconstitucionais que caracterizam a flexibilização do sistema normativo na área do Direito do Trabalho, entre os quais são destacados, numa ordem cronológica, os seguintes:

a) instituição do regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço pela Lei nº 5.107/66;

b) instituição do regime de trabalho temporário pela Lei nº 6.019, de 03/01/74;

c) regulamentação dos estágios de estudantes de estabelecimentos de ensino superior e de ensino médio profissionalizante do 2º grau e supletivo, através da Lei nº 6.494, de 07/12/77, alterada pela Medida Provisória nº 1.952;

d) contratação de serviços de sociedade cooperativa declarada no parágrafo único do artigo 442 da CLT (parágrafo acrescentado pela Lei nº 8.949, de 09/12/94);

e) criação da modalidade de contrato de trabalho por prazo determinado pela Lei nº 9.601, de 21/01/98;

f) regulamentação do serviço voluntário pela Lei nº 9.608, de 18/02/98;

g) definição de obrigações trabalhistas diferenciadas para as microempresas e empresas de pequeno porte, através da Lei nº 9.841, de 05/10/99;

h) autorização do Banco de Horas pela Lei nº 9.601/98;

i) autorização para suspensão dos efeitos do contrato de trabalho do empregado para fins de participação de cursos de qualificação profissional, conforme artigo 476-A da CLT, acrescido pela MP nº 1952;

j) criação de um "novo perfil para a fiscalização do trabalho", pela inserção do artigo 627-A na Consolidação das Leis do Trabalho, através da MP nº 1.952;

k) instituição da criação de Comissões de Conciliação Prévia, através da Lei nº 9.958, de 12/01/00;

l) encaminhamento do Projeto de Lei nº 5.483/01, que altera o artigo 618da CLT, invertendo a pirâmide jurídica no caso específico das Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho.

Essas alterações legislativas trouxeram para a Inspeção do Trabalho novas atribuições e o chamamento, por conseqüência das peculiaridades de cada norma, a uma sofisticação na forma de atuação ante a explosão de demandas surgidas, como se demonstra em cada uma destas legislações flexibilizadoras.

3.2 - A fiscalização do trabalho e a Lei do FGTS

A estabilidade no emprego que tinha status de norma constitucional desde a carta de 1937 (art. 137, letra j) e inserida na CLT num capítulo próprio (VII do Título IV), ganhou a "concorrência" de um novo regime com a edição da Lei nº 5.107, de 13.09.66. Com esta lei criou-se o regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, possibilitando ao trabalhador a opção por este novo instituto ou pelo regime da estabilidade.

Este novo regime fora implantado em face da ordem econômica que se pretendia acelerar no Brasil com a tomada do poder pelos militares, eis que para o empresariado o sistema da estabilidade era tido como um empecilho à mobilidade capitalista. Assim, em que pese a Lei de criação desse novo regime indicara possibilidade de opção do trabalhador pelo sistema que melhor lhe conviesse, a prática de contratação operava de forma unilateral e o empregado apenas aderia ao que o empregador estabelecia, o que em geral se dava pelo regime do FGTS, ou seja, estava decretado o fim da estabilidade no emprego, exceto logicamente para aqueles que a alcançaram até a edição da lei fundiária.

A simultaneidade desses regimes perdurou até a entrada em vigor da Constituição da República, de 05.10.88, quando foi extinto o velho regime da estabilidade temporal, preservando os direitos adquiridos, e estabelecido o sistema do Fundo de Garantia, mediante uma indenização compensatória em caso de despedida arbitrária. Hoje, passados quase quarenta anos da criação do FGTS, praticamente inexistem casos de trabalhadores da iniciativa privada com estabilidade, dada a lógica do sistema anteriormente apresentada.

Com a Lei do FGTS, a Inspeção do Trabalho passou a se incumbir da fiscalização dos depósitos nas contas vinculadas dos trabalhadores (art. 23), bem como do pagamento da multa pela rescisão do contrato de trabalho, calculada sobre o montante dos depósitos fundiários (art. 18 e parágrafos). Atualmente vigora a lei nº 8.036, de 11.05.90, pela qual os empregadores são obrigados a recolherem mensalmente o percentual de 8 % (oito por cento) do total da remuneração do empregado na sua conta vinculada (art. 15).

A fiscalização do cumprimento desta nova legislação, que veio flexibilizar as relações de trabalho, exigiu a adequação da forma de desenvolvimento da ação fiscal à realidade dos fatos que passaram a surgir, já que no sistema da estabilidade a apreciação era bastante simples, como é o exemplo da verificação da estabilidade: identificava-se a data de admissão do empregado e concluía-se pela aquisição da estabilidade ou não, conforme o lapso de tempo trabalhado para o empregador, permitindo estabelecer os direitos a que esse trabalhador faria jus no que tangia a questão da estabilidade, enquanto no sistema atual o campo de verificação foi significativamente ampliado, dada a amplitude de possibilidades que o empregador encontra para descumprir a norma.

Com efeito, no sistema do Fundo de Garantia a fiscalização tem que atentar para os múltiplos artifícios intentados pelos empregadores que se interessam em burlar o sistema, tais como:

a) o pagamento de salários "por fora", ou seja, fora da folha de pagamento oficial, com vistas ao não recolhimento do valor integral do FGTS;

b) a terceirização irregular com vistas fugir da responsabilidade pelos encargos sociais decorrentes da contratação direta;

c) a contratação de estagiários em desacordo com a lei, impedindo o trabalhador à aquisição dos direitos trabalhistas diretamente;

d) a contratação de trabalhadores através de sociedades cooperativas, sem observar requisitos legais, frustrando-os também no que se refere aos direitos decorrentes da relação de emprego;

e) a omissão na folha de pagamento de parcelas componentes da remuneração;

f) não pagamento de determinados direitos trabalhistas com incidência de FGTS;

g) anotação de jornada extraordinária paralela ao controle normal do horário de trabalho, visando ao não recolhimento do FGTS sobre o valor pago por elas;

h) pagamento de participação nos lucros sem as formalidades legais, desvirtuando a natureza da verba paga, com vistas ao não recolhimento do FGTS;

I) simulação de dispensa injustificada de trabalhadores com o objetivo de beneficiar o empregado para saque do FGTS.

A constatação dessas práticas impõe à Auditoria-Fiscal do Trabalho a adoção de estratégias capazes de tornar eficaz à comprovação do desvirtuamento da lei e conseqüente lesão aos direitos trabalhistas, de modo que se possa determinar a correção necessária, seja através da ação administrativa direta, seja via ação judicial (ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Trabalho). Para tanto, a fiscalização do trabalho tem que abandonar o tradicional procedimento formalístico e passar à análise concreta da realidade dos fatos detectados, o que implica necessariamente uma certa "sofisticação" dos procedimentos.

3.3 - A fiscalização do trabalho e a Lei 6.019/74 - Trabalho Temporário

Outra lei considerada flexibilizadora das relações de trabalho foi a Lei nº 6.019, de 03.01.74, eis que até então a "bilateralidade" que sempre fora a regra, onde a figura do empregado contracenava com a do empregador e apenas entre eles o contrato era tratado. Esta lei trás para a arena do trabalho uma terceira pessoa: a empresa de trabalho temporário que se encarrega de contratar o trabalhador temporário, mediante um contrato de natureza trabalhista, e colocá-lo a disposição de uma empresa tomadora dos serviços, através de um contrato de natureza civil.

Contudo, o funcionamento da empresa de trabalho temporário submete-se a certas regras específicas traçadas na citada lei, devendo ser registrada também no Ministério do Trabalho (art. 6º e 9º)e a colocação de trabalhador temporário a disposição do tomador dos serviços condiciona-se a que sejam observadas as prescrições da referida lei, sob pena de nulidade e formação do vínculo empregatício com a tomadora. A permissão da lei é para casos específicos, conforme disposto no artigo 2º: "Trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física para atender à necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanentemente ou a acréscimo extraordinário de serviços". Também o trabalhador temporário goza de certos direitos específicos, entre eles remuneração equivalente à percebida pelos empregados de mesma categoria da empresa tomadora, jornada de 8 horas, férias proporcionais ao término do contrato, etc.. Assim, não é ampla a possibilidade de utilização do trabalhador temporário, ao contrário, apenas é legal quando a situação que impele a contratação é subsumida integralmente no permissivo da lei e, nesse sentido é a orientação doutrinária de TEIXEIRA FILHO, citando também MARANHÃO:

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‘correspondendo - não há negá-lo - a uma necessidade socioeconômica, o contrato de fornecimento de mão-de-obra pode tornar-se, no entanto, instrumento de burla e fraude às leis de proteção ao trabalhador subordinado’. "E tal se dá sempre que esse tipo especial de prestação de serviços ocorre" substituindo-se à via normal da contratação". [26]

Diante de mais essa modalidade contratual, a Fiscalização do Trabalho há que alçar sua mira para horizontes que podem estar cobrindo desvirtuamentos ou fraudes à legislação trabalhista. E esta ação precisa ser uma verdadeira auditoria nos procedimentos e elementos que envolvem a contratação do trabalho temporário, de modo a constatar fielmente a sua regularidade, tudo com vistas a uma eventual declaração de nulidade da intermediação e conclusão pelo vínculo diretamente com a tomadora dos serviços. Não há dúvidas que a edição da Lei nº 6.019/74 permitindo a tomada de mão-de-obra temporária trouxe para a Inspeção do Trabalho novos encargos de vigilância.

3.4 - A fiscalização do Trabalho e a Lei nº 6.494/77 - Estágios

Com esta lei permitiu-se às pessoas jurídicas de Direito Privado, aos órgãos de Administração Pública e as Instituições de Ensino aceitar, como estagiários, os alunos regularmente matriculados em cursos vinculados ao ensino público ou particular, desde que, comprovadamente freqüentem cursos de educação superior, de ensino médio, de educação profissional de nível médio ou superior ou escola de educação especial.

Essa flexibilização, aplaudida unanimemente quanto ao propósito com que foi editada, acabou, na prática, promovendo sérias distorções no cumprimento da legislação trabalhista. Milhares de empregadores passaram a conceder estágios a estudantes com a clara intenção de mascarar a relação de emprego que de fato existe entre o estudante e o concedente do estágio, ficando, assim, "isentos" dos custos trabalhistas da contratação empregatícia, ante a proteção de um contrato de estágio que quanto à formalidade atende as prescrições da lei.

Ocorre, contudo, que a própria legislação reguladora da concessão desses estágios estabelece critérios para sua realização de forma legal, entre eles destacam-se: a obrigação de estarem os estagiários freqüentando cursos de educação superior, de ensino médio, de educação profissional de nível médio ou superior ou escolas de educação especial (par. 1º, art. 1º, Lei 6404/77); que o estágio somente poderá ocorrer em unidades que tenham condições de propiciar experiência prática na linha de formação do estagiário (par. 2º, art. 1º); que o estágio pode assumir a forma de atividades de extensão, mediante a participação do estudante em empreendimentos ou projetos de interesse social (art. 2º). Ainda, por seu turno, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 6494, de 07.12.96, modificou a organização dos cursos profissionalizantes e os inseriu no ensino médio, além de permitir a instituição educacional optar por oferecer grade curricular complementar a determinada profissionalização.

E são essas exigências, em geral, que deixam de ser observadas quando, por exemplo, uma determinada empresa que não cuida de empreendimento ou projeto de interesse social contrata um estagiário de ensino médio não profissionalizante (2º grau) para desempenhar atividades rotineiras do estabelecimento, eis que neste caso o aluno de 2º grau não profissionalizante apenas poderia freqüentar estágio em empreendimentos ou projetos de interesse social. Outro exemplo encontramos quando a unidade concedente não proporciona condições para a experiência prática na linha de formação do estudante de ensino profissionalizante. Levantamentos indicam que ante as exigências da lei é altíssimo o número de estágios irregulares no Brasil e é aí que entra a Fiscalização do Trabalho no contexto desta flexibilização, buscando identificar os casos de contratação de empregados sob a "máscara" do termo de compromisso de estágio firmado entre as partes e com a interveniência de instituição de ensino, colhendo as provas dos requisitos da relação de emprego e determinando a regularização dos vínculos mediante anotação da CTPS do empregado, além da correspondente autuação e remessa de relatório ao Ministério Público do Trabalho.

Gizado, assim, que na esteira dessa lei flexibilizadora das relações de trabalho o espaço no qual atua a fiscalização do trabalho está ampliado e o caminhar na estrada alargada será muito árduo.

3.5 - A fiscalização do trabalho e o parágrafo único do art. 442 CLT - Cooperativa

A lei nº 8.949, de 09.12.94, inseriu no artigo 442 da Consolidação das Leis do Trabalho o parágrafo único. Eis os termos dessa flexibilização: "Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela."

Afirma-se que com essa alteração surgiu uma das piores formas de precarização das relações de trabalho em nosso país: as cooperativas de trabalho. Com elas milhares de trabalhadores viram ruir suas conquistas mínimas alcançadas ao longo de décadas, dada a forte campanha engendrada por alguns seguimentos empresariais e lideranças arregimentadoras de mão-de-obra, que formalizam cooperativas de trabalho com o evidente intuito de fraudar a legislação trabalhista ante uma simulação de trabalho cooperado.

O cooperativismo tem como fundamento o desenvolvimento social e econômico dos membros cooperados, conforme emana do conceito doutrinário de cooperativa, aprovado no Congresso de Praga (1948) pela Aliança Cooperativa Internacional, nestes termos: "será considerada como Cooperativa, seja qual for a sua constituição legal, toda associação de pessoas que tenha por fim a melhoria econômica e social de seus membros pela exploração de uma empresa baseada na ajuda mútua e que observe os princípios de Rochdale". Princípios de Rochdale são princípios fundamentais de uma sociedade cooperativa, quais sejam: adesão livre, singularidade do voto, a distribuição pro rata das transações dos membros, juros limitados sobre o capital, neutralidade política e religiosa, administração democrática, vendas a dinheiro e à vista e desenvolvimento da educação.

No Brasil, com a Lei nº 5.764/71, o sistema de cooperativa foi implantado com esses mesmos princípios, além de acoplar os princípios da dupla qualidade e o da identidade profissional. Além desses, a doutrina confirma os princípios da igualdade social e da retribuição pessoal diferenciada.

As Cooperativas de Trabalho, em geral, passam ao largo desses princípios do cooperativismo, como se depreende deste trecho de um relatório de um Auditor-Fiscal do Trabalho elaborado numa fiscalização realizada numa empresa:

Já são onze horas da noite. Desde às sete horas da manhã trabalhadores carregam e descarregam caminhões, empilhando caixas.Não ganham nenhum adicional por trabalharem por tantas horas, tampouco por já ser noite. Calçam chinelos, não usam luvas, seus pés e mãos ficam mercê da sorte no manuseio das cargas. Quando por acaso se machucam ou ficam doentes, impedidos de trabalhar por alguns dias,não recebem pagamento algum. Eles e suas famílias estão entregues à própria sorte. Não têm direito a vale-transporte, salário-família ou qualquer outro benefício. Ao final quando não são mais necessários, são descartados sem direito a nenhuma indenização ou aviso prévio e não podem amparar-se no seguro desemprego. Ainda neste outro: "......maus empresários têm montado cooperativas de trabalho,utilizando-se de intermediários, e substituindo seus trabalhadores, contratados, sujeitos dos direitos trabalhistas, por "cooperados", que são arregimentados sem que saibam sequer o que significa uma cooperativa. Não lhes é oferecida alternativa. Vão descobrindo aos poucos o que significa essa sua condição de "cooperado". Quando chega o natal, procuram saber do décimo terceiro. Não têm direito. Após um ano de trabalho, cansados, com a família ansiosa por compartilhar um período de férias, descobrem que as não terão. Pouco a pouco, ficam sabendo de sua real condição, descrita a mim por um cooperado: "Somos quase que escravos" [27]

Diante desse quadro cabe à Inspeção do Trabalho, no que tange ao trabalho prestado por cooperativas de trabalho, promover ações de fiscalização que revelem com segurança a realidade das condições de trabalho, de modo a aferir se os princípios do cooperativismo estão sendo observados e por conseqüência a melhoria da condição social dos trabalhadores associados ou, se ao contrário, a terceirização do trabalho via cooperativa é mais uma simulação para fraudar as leis trabalhistas, impedindo os interessados ao recebimento de direitos trabalhistas consagrados na legislação. Neste caso a documentação de toda a situação e condição de trabalho é indispensável à imposição de penalidades, ao levantamento de direitos dos trabalhadores, à determinação de correção da irregularidade e comunicação ao Ministério Público, o que implica análise de contratos de fornecimento de mão-de-obra, das condições de segurança, da situação pregressa de cada trabalhador mediante entrevista, da constituição da cooperativa e outros procedimentos que possam revelar a realidade dos fatos que cercam a exploração do trabalho dos associados.

Nesse passo, juntamente com outras instituições, ganhou a Inspeção do Trabalho a responsabilidade pelo desenvolvimento e promoção de métodos de fiscalização que mirem nas fraudes engendradas por empregadores, detendo a marcha destruidora do sistema de proteção laboral e, na mão firme do poder de polícia do Estado buscar resgatar a dignidade humana dos trabalhadores, contribuindo para a reposição do império da Constituição e da Lei.

3.6 - A fiscalização do trabalho e a Lei nº 9.601/98 - Contrato de Trabalho por Prazo Determinado e o Banco de Horas.

A Lei nº 9.601, de 21.01.98, veio flexibilizar os artigos 59 e seus parágrafos e 443 e parágrafos da Consolidação das Leis do Trabalho. No que tange ao art. 59 esta lei autorizou o chamado "Banco de Horas", em que o empregador fica dispensado do pagamento dos adicionais de horas extras mediante a compensação das horas trabalhadas além da jornada normal de trabalho dentro de um determinado período. Já no que se refere ao artigo 443 a lei flexibilizou aquelas limitações para a validade do contrato de trabalho por prazo determinado, desde que observadas as regras traçadas na lei.

Contudo, essa alteração na legislação do trabalho trouxe certos critérios a serem observados pelos empregadores para dela beneficiarem-se. Para o apelidado ‘banco de horas", onde são creditadas ou debitadas as horas aquém ou além da jornada normal, a citada lei impõe, entre outras, as seguintes exigências para sua validade:

a) que a instituição da compensação decorra de norma coletiva de trabalho (Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho);

b) a limitação da jornada diária em 10 horas de trabalho;

c) a limitação das horas trabalhadas no período de um ano à soma das jornadas previstas;

d) pagamento das horas não compensadas, com o devido acréscimo legal, em caso de despedida do empregado antes do término da compensação.

Relativamente ao Contrato por Prazo determinado as alterações mais relevantes são:

a) que as contratações sejam previstas em Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho;

b) que represente acréscimo no número de empregados da empresa ou estabelecimento;

c) que garanta estabilidade aos empregados dela detentores durante a vigência do contrato por prazo determinado;

d) a redução de alíqüotas de certas contribuições sociais;

Diante dessa flexibilização a Inspeção do Trabalho passou a cuidar para que não ocorresse o desvirtuamento do propósito da lei, eis que não raramente os empregadores, ávidos por reduzir custos com a mão-de-obra, buscam o respaldo formal da lei para acobertar a fraude. Com efeito, certas questões são extremamente relevantes, devendo ser auditadas com toda a atenção que possibilite a descoberta de simulações voltadas à fraude, sendo exemplo: a substituição de empregados contratados a prazo indeterminado por outros contratados a prazo determinado, a manipulação de dados na definição de percentuais de trabalhadores contratados a prazo determinado, apresentação de Convenção ou Acordo Coletivo de Trabalho sem a observância das formalidades que a lei lhes impõe para que vigorem, manutenção das condições de trabalho baseadas na lei flexibilizadora além dos prazos previstos em normas coletivas ou na própria lei, ausência de isonomia de tratamento dos direitos dos trabalhadores sujeitos à lei 9.601/98. Dessa observância poderá resultar a determinação de ajustes na aplicação da norma flexibilizadora ou até mesmo a consideração de nulidade e conseqüente determinação de pagamentos de direitos e reversão à ordem legal.

3.7 - A fiscalização do trabalho e a Lei nº 9.608/98 - Serviço Voluntário

Dentre as leis que vêm flexibilizando as relações trabalhistas, considera-se a que disciplinou a prestação de serviço voluntário uma das mais coerentes, eis que possibilitou diversas instituições, públicas e privadas sem fins lucrativos, a alavancarem o desenvolvimento de atividades beneficentes de apoio em vários seguimentos.

Até a edição da Lei nº 9.608, em 18/02/98, não havia uma definição legislativa da questão do serviço voluntário que estabelecesse claramente os limites da relação entre o prestador do serviço voluntário e a entidade, implicando uma certa insegurança às partes. De acordo com o texto desta lei, para seus fins, o serviço voluntário é "a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade. (art. 1º). A prestação do serviço voluntário na forma da lei não gera vínculo de emprego nem obrigações trabalhistas ou previdenciária, podendo o prestador do serviço ser reembolsado pelas despesas que realizar no desempenho da atividade voluntariosa mediante expressa previsão e autorização da entidade".

Em razão dessa importante definição legal do serviço voluntário o cesto de modalidades de simulações para a fraude da legislação trabalhista ganhou mais uma alternativa. Instituições constituídas mediante o atendimento formal das prescrições da lei podem simular a prestação do serviço voluntário de seus colaboradores remunerados, mediante a formalização de termos de adesão, mascarando as remunerações com a natureza de "ressarcimento de despesas", de modo a fugir das obrigações legais dos reais vínculos de emprego que possui.

Mas essa alternativa para a fraude não serve à crítica da lei, dada a importância desta para permitir que instituições sérias possam desempenhar seu papel de forma segura ante as possíveis demandas trabalhistas de colaboradores mal intencionados e abusos da própria instituição no que tange a contratação de pessoal. A lei está bem colocada e cabe aos órgãos de fiscalização acompanhar a sua devida aplicação.Aqui se abre mais uma missão para Inspeção do Trabalho:verificação criteriosa dos reais fins das instituições que utilizam os serviços voluntários de colaboradores e a natureza dos contratos dos colaboradores, buscando identificar possíveis desvios e fazendo prevalecer a ordem legal.

3.8 - A fiscalização do trabalho e a Lei nº 9.841/99 - Microempresa e Empresa de Pequeno Porte

A Lei nº 9.841, de 05.10.99, que instituiu o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, trouxe para elas tratamento jurídico diferenciado em diversos aspectos, entre eles o que diz respeito ao regime previdenciário e trabalhista, mediante a prescrição de abrandamento de obrigações trabalhistas, conforme consta nos artigos 10 a 13 da lei. Entre as quais destacam-se:

a) desobrigação de anotação da jornada de trabalho;

b) desobrigação da anotação de férias nos registros do empregado;

c) desobrigação de empregar e matricular aprendizes;

d) desobrigação de possuir o "Livro de Inspeção do Trabalho";

e) direito ao critério da dupla visita quando fiscalizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Essa importante flexibilização trouxe para a Inspeção do Trabalho certo aumento de tempo para o desenvolvimento de determinadas ações fiscais, dada a desobrigação de documentação de questões trabalhistas, como é o caso da jornada de trabalho e das férias, de modo que a operação fiscal submete-se a critérios de apuração mais complexos e, por conseqüência, são mais demoradas as respostas das demandas.

3.9 - A fiscalização do trabalho e a Medida Provisória nº 1.952 - Suspensão do Contrato de Trabalho para Qualificação Profissional

Por esta medida legislativa foi inserido o artigo 476-A na Consolidação das Leis do Trabalho, permitindo a suspensão do contrato de trabalho, por um período de 2 (dois) a 5 (cinco) meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador, com duração equivalente à suspensão contratual, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo de trabalho e aquiescência formal do empregado, ficando asseguradas a este, quando do retorno ao trabalho, todas as vantagens que, na sua ausência, tenham sido concedidas à categoria a que pertence.

Essa medida flexibilizadora teve aspectos muito positivos no que se refere à criação de melhores condições para qualificação do trabalhador brasileiro, mediante a desoneração do empregador de certos custos da manutenção do empregado no período de participação nos programas. Por outro lado, carreou para a Inspeção do Trabalho a vigilância na aplicação dessa suspensão bilateral do contrato de trabalho, de modo a combater os abusos que eventualmente possam ocorrer, dado que no Brasil não é novidade a utilização de instrumentos legais para camuflar o descumprimento da lei.

Com efeito, a citada norma sujeita a suspensão contratual a certos requisitos, que se não observados implicam utilização indevida dos benefícios prescritos e, nesse sentido, a ação fiscal deve atentar, entre outras, em especial para as questões a seguir:

a) quanto à observação dos períodos máximos permitidos para suspensão do contrato;

b) quanto ao número de suspensões de um mesmo contrato dentro do lapso de tempo determinado (uma vez a cada 16 meses);

c) quanto ao pagamento de benefícios voluntariamente concedidos pelo empregador;

d) quanto às dispensas de empregados no transcurso da suspensão ou imediatamente após;

e) se o curso ou programa de qualificação foi de fato ministrado no período da suspensão do contrato;

f) se a aquiescência formal do empregado para suspensão do contrato foi livremente decidida por ele;

g) se os instrumentos coletivos de trabalho que autorizaram a suspensão observou os requisitos legais da negociação coletiva.

Sendo comprovada a utilização da suspensão do contrato de trabalho com o intuito de descumprimento da legislação do trabalho, compete à fiscalização do trabalho desconsiderá-la e cobrar os direitos trabalhistas decorrentes dos contratos. Mostra-se assim mais uma norma flexibilizadora das relações do trabalho que aumenta o ângulo de observação da Inspeção Estatal, afastando-a cada vez mais do modelo formalista da análise para levá-la a modos de operação que dêem efetividade ao princípio protecionista do Direito do Trabalho.

3.10 - A fiscalização do trabalho e o artigo 627-A da CLT - Novo Perfil da Inspeção Estatal

Em 09.12.99, pela Medida Provisória nº 1.952-18, o Presidente da República promoveu a inserção do art. 627-A na CLT. Essa providência legislativa foi adotada para dar sustentação ao cumprimento do "Programa de Transformação do MTE", que contempla a construção de um "Novo Perfil da Fiscalização do Trabalho", cujo ponto central é o estabelecimento de modos de procedimentos ancorados em novos instrumentos que possibilitem, com maior eficácia, o combate às infrações e o correto cumprimento da legislação trabalhista.

Com efeito, o art. 627-A da Consolidação das Leis do Trabalho veio permitir que o Auditor-Fiscal do Trabalho promova a ação fiscal mediante a instauração de "Mesas de Entendimento", objetivando a orientação sobre o cumprimento das leis de proteção ao trabalho, bem como a prevenção e o saneamento de infrações à legislação mediante Termo de Compromisso firmado pelo empregador infrator, que se livrará da autuação prescrita no art. 628 da CLT mediante o cumprimento do compromisso firmado.

Essa alteração na legislação provocou a reação de alguns profissionais que militam na área do Direito do Trabalho, sob a alegação de que o Estado estaria abrindo mão do seu poder de polícia. Contudo, não é essa a conclusão mais adequada ao caso, dado que essa alteração apenas trouxe a possibilidade da utilização do poder discricionário do Auditor-Fiscal em face de determinadas circunstâncias observadas nas ações de fiscalização. "O poder de polícia é inerente e indissociável da função fiscalizadora, somente podendo ser suprimido em virtude de lei. É o que garante aos agentes do Estado o acesso às instalações, documentos e informações da empresa e, em especial, dota-os do poder de sanção". [28]

Nesse norte, passa a ter a Inspeção do Trabalho mais uma alternativa para o desempenho de sua missão constitucional, que é a de zelar pelo cumprimento da legislação de proteção ao trabalhador, podendo lançar mão de um instrumento que possa possibilitar o êxito da missão. Para tanto, o Auditor-Fiscal do Trabalho precisa estar preparado, também, para o exercício da função de mediação, eis que a alternativa da "mesa de entendimento" implica a negociação em busca de resultados que melhor atendam ao cumprimento da legislação trabalhista, onde ganha o trabalhador com a real proteção de seus direitos e ganha o empregador com a desoneração da autuação e com a orientação recebida.

Presente, pois, mais uma norma flexibilizadora das relações do trabalho que implicam aprimoramento da Inspeção Estatal e ampliação do seu espaço de ação.

3.11 - A fiscalização do trabalho e a Lei nº 9.958/00 -Comissão de Conciliação Prévia

Com a edição da Lei nº 9.958, de 12.01.2000, foi disciplinada a instituição das Comissões de Conciliação Prévia, de composição paritária, com representantes dos empregados e dos empregadores. Estas comissões têm por atribuição a tentativa de conciliação das partes para uma composição que ponha termo aos eventuais conflitos individuais de trabalho.

Uma vez instituída a Comissão, seja no âmbito da empresa ou entre os sindicatos, representante dos trabalhadores e representante da classe patronal, as demandas na Justiça do Trabalho ficam condicionadas à prévia tentativa de conciliação perante a Comissão de Conciliação Prévia, devendo ser provada essa tentativa por meio de certidão ou ata da reunião de conciliação. Com essa norma jurídica surgiu um novo pressuposto processual a ser observado quando se intentar ações na justiça especializada: o da prova de tentativa de conciliação perante a comissão, quando esta funcionar para a categoria a que se vincula o trabalhador. Outrossim, alguns profissionais do direito consideram essa nova exigência uma condição da ação e não um pressuposto processual, além de outros que a consideram mesmo inconstitucional e que exigência alguma há de ser feita. Contudo, conclui-se que a melhor doutrina a concebe como um pressuposto processual e nesse sentido pende a jurisprudência que ora se forma.

Embora pareça que reflexo algum essa lei possa ter trazido para a Inspeção do Trabalho, a verdade é que não obstante sejam poucas as Comissões de Conciliação Prévia instituídas até então, uma nova demanda é sinalizada para ser atendida pela fiscalização do trabalho. Começa a surgir nos plantões de orientação das Delegacias Regionais do Trabalho um tipo específico de solicitação de determinados trabalhadores: a orientação quanto a seus direitos trabalhistas e respectivos valores a receber decorrentes de contratos de trabalho com vistas à negociação perante as Comissões de Conciliação Prévia. Assim, começa a revelar-se mais essa demanda diante das inovações criadas por essa Lei.

3.12 - A fiscalização do trabalho e a Reforma Trabalhista - o Projeto de Lei nº 5.483/01 - Supremacia do Negociado sobre o Legislado.

Das propostas de alteração na legislação para flexibilização das relações do trabalho, a mais polêmica foi a que propôs nova redação do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho. Este projeto de lei foi retirado do Congresso Nacional pelo governo Lula. De acordo com a proposta, as condições de trabalho seriam reguladas por Convenção ou Acordo Coletivo de Trabalho e, na ausência destes, reguladas pela lei.

Mas não é ilimitado o poder de disposição das partes para a contratação coletiva. Esta proposta legislativa que permitiria a disposição dos direitos regulados em lei traçou os limites para a negociação, ressalvando as questões de interesse financeiro da União e ainda, obviamente os direitos trabalhistas com prescrição constitucional, de modo que essas questões não poderiam ser contrariadas pela convenção ou acordo coletivo. Eis os termos da proposta de alteração, in verbis:

"Art. 1º - Na ausência de convenção ou acordo coletivo, firmados por manifestação expressa da vontade das partes e observadas as demais disposições do Título VI desta Consolidação, a lei regulará as condições de trabalho."

"par. 1º - A convenção ou acordo coletivo, respeitados os direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal, não podem contrariar lei complementar, as leis nºs 6321, de 14 de abril de 1976, e 7418, de 16 de dezembro de 1985, a legislação tributária, a previdenciária e a relativa ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS, bem como as normas de segurança e saúde do trabalho."

Pondera-se, conforme depreendido das disposições transcritas, que a iniciativa do executivo federal na flexibilização da legislação do trabalho evidenciava dois pontos bem característicos. Um é quanto a obviedade do enunciado que expressa "respeito aos direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal" quando da negociação coletiva, eis que por esta lei ordinária jamais poderiam tais direitos serem desprezados. Afirma-se até que tal redação foi promovida para atenuar a preocupação daqueles seguimentos contrários a essa alteração na CLT. O outro ponto que sobressai foi a preocupação do Governo Federal em retirar do campo da negociação coletiva exatamente as questões que refletem diretamente no equilíbrio fiscal, ou seja, com possibilidade de impacto no orçamento em razão de comprometimento na arrecadação federal. Esta a razão para a proibição de contrariedade de lei complementar, que normalmente dispõem sobre tributos, da lei 6321/76, que dispõe sobre o Programa de Alimentação do Trabalhador -PAT, disciplinando a forma de benefício junto ao Imposto de Renda das empresas que aderem ao programa, da lei 7418/85, que trata do Vale-Transporte concedido ao trabalhador e os benefícios junto ao Imposto de Renda decorrente da concessão regular, e ainda, da legislação tributária, previdenciária e do FGTS, que são fontes principais da arrecadação federal. Quanto as normas de segurança e de saúde do trabalhador, também a ressalva feita é evidente, eis que o reflexo da precarização decorrentes de afrouxamento das normas de segurança e saúde recai exatamente nos cofres da União, em razão das contas hospitalares no tratamento de acidentados e dos benefícios previdenciários com incapacidade ou morte dos trabalhadores.

Em que pese infrutífera a tentativa, até então, da alteração proposta para o art. 618 da CLT através desse projeto de lei, ainda não está totalmente afastada a possibilidade de tal intento, haja vista que diversos seguimentos da sociedade continuam pressionando para que se promova a chamada "Reforma Trabalhista" que está na agenda do atual governo, o que possibilitaria ser novamente colocada proposta com o mesmo teor daquela constante do Projeto de Lei nº 5.483/01.

Com essa polêmica possibilidade de alteração da legislação, a Inspeção do Trabalho passaria a alçar sua mira também para outros alvos além daqueles que já se encontram no seu raio de ação. A função de vigilância seria desenvolvida no viés da liberdade de contratação coletiva, de modo a acompanhar o fiel cumprimento da legislação trabalhista, agora observando tanto o interesse dos trabalhadores quanto aqueles interesses reservados pelo governo federal de cunho arrecadatório.

A contratação coletiva de trabalho, como fonte do direito do trabalho, já é objeto de acompanhamento pela inspeção do trabalho quanto a sua fiel aplicação no que tange a parte normativa e, eventual incremento de normas autônomas, tornará mais abrangente a atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho que terão,numa determinada ação fiscal, uma variedade de normas a serem analisadas e as conseqüentes implicações ao caso concreto observado, de modo que eventuais convenções ou acordos coletivos de trabalho concebidos como tábua de limitações dos direitos trabalhistas insculpidos na Constituição Federal sejam firmemente combatidos.

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Sobre o autor
José Manoel Machado

bacharel em Direito e Administração de Empresas, auditor-fiscal do Trabalho no Espírito Santo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, José Manoel. A fiscalização do trabalho frente à flexibilização das normas trabalhistas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 644, 13 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6599. Acesso em: 7 mai. 2024.

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