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As tendências do Direito Civil brasileiro na pós-modernidade

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23/04/2005 às 00:00
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O trabalho busca traçar um panorama histórico e ideológico de nossa juscivilística, de modo a viabilizar o entendimento crítico da atual realidade de nosso Direito Civil, concluindo pela total inadequação do novo diploma legal à sua realidade.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho não é pretensioso a ponto de querer esmiuçar toda a trajetória do Direito Civil brasileiro na profundidade que ele verdadeiramente apresenta. Ater-nos-emos a traçar um panorama histórico e ideológico de nossa juscivilística, de modo a viabilizar o entendimento crítico da atual realidade de nosso Direito Civil.

Isto porque para compreendermos as tendências apontadas na contemporaneidade, precisamos pesquisar as razões históricas, ideológicas, políticas, econômicas e sociais que as impulsionaram ao longo dos tempos. Somente assim, será possível questionar o caminho traçado pelo legislador do Código Civil em vigor, que não se coaduna com as necessidades sociais e jurisdicionais de nosso país.

Por estas razões, iniciaremos nosso trajeto pesquisando as influências do ordenamento jurídico que se instalou em nossas terras com o descobrimento de nosso país. Estudaremos como ocorreu a transição das Ordenações Filipinas para o Código Civil de 1916, o movimento de codificação e seu contexto histórico.

Logo após, deteremo-nos em pesquisar as características do Código de Bevilácqua, suas influências ideológicas e literárias. Veremos qual a estrutura adotada na sua elaboração e a forma como ela reflete exatamente o pensamento da sociedade contemporânea à sua formulação. Louvaremos seus méritos.

Passaremos a entender a evolução paradigmática que o Direito Civil brasileiro sofreu no último século e como a complexidade da sociedade superou de forma incontrolável os dogmas do positivismo e da codificação.

Adentraremos em todos os aspectos da denominada "crise" do Direito Civil. Traçaremos seu conceito, seus contornos e suas razões. Neste capítulo, dedicado à "crise", nos muniremos, então, dos argumentos para questionarmos a elaboração e a promulgação de um código civil na atualidade.

Após, delinearemos os contornos juscivilísticos da contemporaneidade e concluiremos pela total inadequação do novo diploma legal à sua realidade.

O tema é longo, intrincado e polêmico. Confesso, que, por vezes, o desânimo e a vontade de desistir me tentaram. Mas a angústia que me causa um novo código civil em nossos tempos que, não bastasse sua total inadequação histórica e ideológica, não contou sequer com a participação discursiva de seus destinatários, me desafiou pela sua conclusão.

Perdoem-me pela brevidade por vezes adotada em alguns tópicos, mas ela foi necessária para se manter o correto alinhamento metodológico e fidelidade ao tema central.


1) RAÍZES DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

Remontar as origens históricas de nosso Direito Privado é imprescindível para a exata compreensão dos contornos juscivilísticos da contemporaneidade. Na fala de Luiz Edson Fachin "... busquemos, nas origens, aspectos do legado histórico para o Brasil contemporâneo, principiando pela formulação colonial cuja análise não pode descurar da herança colonial do Estado brasileiro".(FACHIN, 2003, p.439)

Giordano Bruno Soares Roberto emenda:

Não é possível compreender o momento atual do Direito Privado brasileiro sem olhar para sua história. Para tanto, não será suficiente começar com o desembarque das caravelas portuguesas em 1500. A história é mais antiga.

O Direito brasileiro é filho do Direito Português que, a seu turno, participa de um contexto mais amplo. (ROBERTO, 2003, p. 5)

Portanto, para esboçarmos um breve histórico da civilística brasileira, nos parece impossível dissociá-lo da história do Direito Português, em um primeiro momento, e do Direito Europeu, como um todo, em um segundo momento.

Durante toda o período de colonização, o "direito brasileiro" se resumia ao que era posto pelas Ordenações do Reino de Portugal. Em outras palavras, nossos direitos civis não passavam de simples extensão dos direitos de nossos colonizadores, cuja influência em nosso ordenamento jurídico não pode ser relegada ao desentendimento.

1.1) Evolução histórica: Das Ordenações Filipinas ao Código Civil de 1916

Antes de iniciarmos este tópico, é necessário consignar que a fase do Brasil colônia é marcada por um certo obscurantismo, sendo difícil pesquisar o delineamento do ordenamento jurídico que aqui se instalou naqueles tempos, sendo pouquíssimos os autores que cuidam do tema.

As Ordenações Filipinas eram uma compilação jurídica marcada pelas influências do Direito Romano, Canônico e Germânico, que juntos constituíam os elementos fundantes do Direito Português. E como não poderia deixar de ser, foram forjadas em tom patriarcalista e patrimonialista.

A fase do Brasil-Colônia caracteriza-se pela aplicação das Ordenações Filipinas, legislação Portuguesa que já era, no dizer de Coelho da Rocha, "atrasada, retrógrada", mantendo em vigor, na época moderna, regras do século XV. Trazidas para o Brasil, consolidou-se aqui esse atraso.(AMARAL, 2003, p. 126)

Foram compiladas durante os reinados de Filipe I e Filipe II e publicadas no ano de 1603. Vigeram desde o início do século XVII até a proclamação da independência brasileira em 1822. Regeram o ordenamento jurídico privado no Brasil por mais de 300 anos, portanto. Foi quando, finalmente, o Direito privado brasileiro teve que se emancipar e trilhar rumo próprio.

Portugal foi um dos países europeus que mais demorou a ceder às influências do Iluminismo, movimento iniciado por volta do século XVIII e que significou verdadeira renovação do direito, pois pregava a luta da razão contra o autoritarismo e visava abolir velhas tradições jurídicas e o império do Direito Natural.

O primeiro Código Civil português foi promulgado em 1867. Foi o fim das Ordenações Filipinas como regramento da civilística no "além mar". No Brasil, a codificação levou mais tempo para se implementar e corporificar. As Ordenações vigeram, ainda, por algum tempo.

Havia muitas barreiras que deveriam ser ainda ultrapassadas. O atraso originado do fato de nosso país continuar ser regido pelas Ordenações, o inchaço legislativo causado pela infinidade de leis e outras formas normativas que foram editadas para complementá-las e a busca por identidade jurídica que atendesse às necessidades dos jurisdicionados brasileiros eram algumas delas.

Neste contexto, o primeiro Código Civil brasileiro só vigorou a partir do ano de 1917. Foram noventa e dois anos de processo de elaboração. De autoria do jovem Clóvis Bevilácqua, renovou o direito brasileiro, dentro de uma filosofia marcada pelo liberalismo político e econômico.

Dentre outras características marcantes, foi saudado pela crítica nacional e internacional por sua clareza e boa técnica. Vinha estruturado da seguinte maneira:

O projeto de Clóvis Bevilácqua compunha-se de uma lei de introdução, uma parte geral dividida em três livros, pessoas, bens, nascimento e extinção de direitos, e uma parte especial, desdobrada em quatro livros, direito de família, direito das coisas, direito das obrigações e direito das sucessões. Caracterizava-se pela "harmonia entre a ordem e a liberdade, entre a tradição e o progresso". Adotava a concepção de Ihering em matéria de posse, embora não exclusivamente, e disciplinava o direito de propriedade sem o absolutismo do direito romano. Apresentava algumas idéias novas, como o reconhecimento de filhos ilegítimos de qualquer espécie, a investigação de paternidade, a insolvência civil, a igualdade jurídica dos cônjuges, idéias essas não-aceitas pela primeira comissão revisora, que modificou um pouco o sistema originário do autor. (AMARAL, 2003, p. 129)

Vigorou durante quase um século em nosso país. Apesar de todos os seus méritos, não havia nenhuma chance de continuar regendo a complexa vida social da pós-modernidade. O código começou a ruir desde sua entrada em vigor. A multiplicidade da sociedade hodierna fez com que o valioso diploma de Bevilácqua caísse no inevitável obsoletismo.

O ordenamento juscivilístico reclamava reforma, urgentemente. Surge diante de nós - quase que caído dos céus - um novo código. A esperada renovação. Será?

1.2) Movimento de Codificação

O movimento de codificação é fruto do jusracionalismo. Conforme lição de Francisco Amaral, a codicização pode ser resumida nas seguintes palavras:

Em senso estrito, significa o processo de elaboração legislativa que marcou os séculos XVIII e XIX, de acordo com critérios científicos decorrentes dos jusnaturalismo e o iluminismo, e que produziu os códigos, leis gerais e sistemáticas.

Sua causa imediata é a necessidade de unificar e uniformizar a legislação vigente em determinada matéria, simplificando o direito e facilitando o seu conhecimento, dando-lhe ainda mais certeza e estabilidade. Eventualmente, constitui-se em instrumento de reforma de sociedade como reflexo da evolução social. Seu fundamento filosófico ou ideológico é o jusracionalismo, que vê nos códigos o instrumento de planejamento global da sociedade pela reordenação sistemática e inovadora da matéria jurídica, pelo que se afirma que os "os códigos jusnaturalistas foram atos de transformações revolucionárias". (AMARAL, 2003, p. 122 e 123)

1.2.1) Breve histórico

A tendência à codificação encontra seu primeiro indício no Direito Romano, sobretudo no Corpus Iuris Civile, que apesar de não se tratar de um típico texto codificado, constitui-se em importante síntese jurídica compilada pelo Imperador Justiniano e um dos mais importantes legados do Direito Romano.

O movimento de codificação propriamente dito tem seu lugar a partir da Idade média, através da gradativa substituição da autoridade papal e do imperador pela soberania dos Estados Nacionais. Foi sustentado por correntes sociais e impulsionado por alguns fatores estratégicos, de cunho político, econômico e intelectual.

Entendamos por fator político o fato de os soberanos enxergarem na promulgação de seus códigos nacionais um componente essencial para a implementação de políticas de unificação de seus Estados, que passavam a assumir a missão de garantir o bem estar de seus cidadãos.

O fator econômico, a seu turno, revelava os códigos nacionais como resposta adequada às reivindicações por liberdade e responsabilidade da burguesia, uma classe média que emergia e lutava pela abolição das barreiras discriminatórias do feudalismo. Ademais, com o passar do tempo, o direito codificado provou ser excelente instrumento para suprir as necessidades da economia capitalista de classe média do século XIX.

Por fim, devemos analisar a influência do fator intelectual que se resumia à rejeição de velhos dogmas e tradições religiosas, no intuito de colocar o homem e seu bem estar no centro da filosofia iluminista. Novas concepções surgiram e a idéia de que o homem era um ser criado a imagem de Deus e colocado acima da natureza não se coadunava com as balizas do novo discurso científico.

Os primeiros códigos foram fruto do chamado Despotismo Esclarecido, a exemplo do Código da Prússia, em 1794, considerado o primeiro código moderno, e o Código da Áustria, em 1786.

Contudo, o divisor de águas da era da codificação foi o Código Civil Francês, fruto do trabalho - encomendado por Napoleão Bonaparte - de uma comissão de quatro juristas, Tronchet, Bigot du Prémameneu, Portalis e Malevile.

O Code Civil recebeu elogios por sua linguagem clara e precisa; seu conteúdo foi aplaudido devido à sua moderação, equilíbrio e praticidade. O tom era individualista e patrimonialista: o principal escopo era tutelar e proteger os direitos dos proprietários.

O diploma francês rompeu fronteiras. Foi modelo para a feitura de códigos nacionais por toda a Europa e sua influência somente foi mitigada com o surgimento do Código alemão (BGB - Burgeliches Gesetzbuch), em fins do século XIX, apesar da enorme resistência teórica de alguns de seus juristas, ilustrada pelo histórico embate entre Thibaut e Savigny.

Nosso país trilhou esse mesmo caminho, e sob todas essas influências, promulgou o primeiro Código Civil no ano de 1916, tendo como principal idealizador Clóvis Bevilácqua, que ninguém ousa negar que constitui uma grande obra, de conteúdo extraordinário, de primeira qualidade.

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1.2.2) Pano de fundo da Codificação

Sempre houve dúvidas nos sistemas jurídicos modernos em relação à necessidade ou não de codificar o Direito Privado. Como dito acima, tal questionamento remonta à polêmica suscitada acima entre Savigny e Thibaut (1).

Não há que se olvidar que a codificação traz inúmeras vantagens, como a de facilitar a visualização dos institutos jurídicos. Mas também traz desvantagens, já que muitas vezes, estático que é, o código não consegue acompanhar as alterações pelas quais passa a sociedade e nem prever a multiplicidade de relações que dela podem emergir.

Contudo, como mencionado, existem razões históricas, políticas e econômicas que apontaram a codificação como a melhor alternativa para assegurar a soberania dos Estados Nacionais e o bem estar de seus cidadãos, justificando o movimento e sua respectiva prevalência nos últimos séculos.

O Iluminismo pode ser considerado um marco na história do Direito e por conseqüência, da codificação. Colocou em xeque a estrutura e os dogmas do ancién regime.

Combateu, primordialmente, a desigualdade dos homens perante a lei e as limitações às pessoas e à propriedade. Nas palavras de Caenegem "´liberdade´ e ´igualdade´ eram, portanto, exigências essenciais tanto nos programas políticos dos déspotas esclarecidos quanto na Revolução Francesa" (CAENEGEM, 1999, p. 162).

O movimento das Luzes criticou, ainda, o absolutismo, a exclusão popular, a autoridade da Igreja e suas ligações com o Estado. Em resumo, significou:

O velho mundo passou por uma renovação radical, guiada pelos princípios da razão humana e pelo objetivo de alcançar a felicidade do homem. A realização desse objetivo parecia requerer agora que o fardo dos séculos precedentes fosse rejeitado. Aplicado ao direito, esse programa significava que a proliferação de normas jurídicas deveria ser drasticamente reduzida, que o desenvolvimento gradual do direito deveria ser substituído por um plano de reforma e por uma abordagem sistemática, e, por fim, que não se deveria emprestar autoridade absoluta nem aos valores tradicionais, como direito romano, nem aos juristas e juízes eruditos, que se proclamavam "oráculos" do direito.

Os velhos costumes e os livros autorizados deveriam ser substituídos por um novo direito livremente concebido pelo homem moderno, cujo único princípio diretor fosse a razão. Esse novo direito deveria ser isento de qualquer obscurantismo. Ele constituiria um sistema claro e aberto, compreensível para o povo, pois, de agora em diante, o direito deveria estará serviço do povo. (CAENEGEM, 1999, p.163)

Tudo isso apontava a busca por um ordenamento jurídico marcado pela sistematização, pela unicidade e coerência, que assegurasse, acima de tudo o desenvolvimento racional da sociedade. De acordo com Francisco Amaral:

Ao Iluminismo ligava-se diretamente o racionalismo, a doutrina segundo a qual a única fonte do conhecimento seria a razão. No campo jurídico, o racionalismo embasava a doutrina do direito natural, rectius, do jusracionalismo, que defendia a racionalização e a sistematização do direito, isto é, a reunião dos princípios e regras num corpo unitário e coerente, o sistema jurídico. A razão iluminista preconizava, assim, a idéia de sistema no direito, do que resultaram os códigos e as constituições do séc. XVIII e XIX. Diz-se, por isso, que a ligação do iluminismo com o jusracionalismo produziu a primeira onda de codificação moderna os códigos são a representação da sistematicidade do direito e levam ao desenvolvimento do pensamento sistemático na realização do direito. (AMARAL, 2003, p. 68)

Perseguia-se, sobretudo, segurança jurídica. A criação de um novo sistema jurídico baseado em um único corpo normativo despontava como a solução almejada, pois na "codificação, idéias e ideais repousam, estabilizam e conservam. Um código fotografa valores e os preserva". (FACHIN, 2000, p. 199)

Os códigos representariam uma ruptura da velha ordem, através do estabelecimento racional de uma nova. Seriam esperança de segurança jurídica, efetivada através de uma seqüência ordenada e sistematizada de artigos, que tratassem de forma igualitária todos os cidadãos. Além disso, pareciam revelar um sistema jurídico auto-suficiente, onde outros corpos normativos não seriam mais necessários.

Nas célebres palavras de Giselda Hironaka:

Desta era – da era da racionalização da vida jurídica – resultou, como conseqüência imediata, a concepção do direito como um sistema. E, como tal, o processo de codificação se tornou imperioso, visando unificar e uniformizar a legislação vigente, emprestando-lhe um sistema, uma ordem, uma carga didática, uma possibilidade melhor, ou maior, de compreensão destas próprias regras e de comparação destas com outros povos.

Esta foi a importante fase de organização codicista, que atendeu às necessidades e reclamos de uma época que visava superar a insegurança. E apresentou suas vantagens, entre elas – uma que desejo citar – a de traduzir-se, o código, em instrumental de garantia das liberdades civis. (HIRONAKA, 2003, p. 97)

Outro fator relevante que estimulou a codificação foi a garantia de separação entre a sociedade civil e o Estado. Os cidadãos procuravam proteção para os abusos causados pelas interferências estatais em sua esfera privada.

A dogmática iluminista estabeleceu a dicotomia entre Direito Privado e Direito Público. Ao Direito Público caberia promover a proteção do cidadão em face do Estado, através de mecanismos definidos na lei. Por sua vez, o âmbito do direito privado, seria aquele onde a autonomia da vontade reinaria absoluta, sem interferências. A pretensão dos códigos civis era atuar neste segundo segmento, ordenando as condutas jurídico-privadas dos cidadãos, tornando-se o centro desse regramento.

Assim, dentro dessa visão segmentada do Direito, fazia todo sentido apontar o Código Civil como centro do ordenamento do direito privado, restando à Constituição a função de carta política regulamentadora do Estado; suas normas eram exclusivamente dirigidas ao legislador.

1.3) Características do Código Civil de 1916

Uma vez proclamada a independência do Brasil, uma lei editada em outubro de 1823 determinou a manutenção das Ordenações Filipinas em nossas terras, bem como demais formas normativas emanadas dos imperadores portugueses que vigoravam até a data de 26 de abril de 1821.

A Constituição do Império de 1824 estabeleceu que fossem organizados um código civil e também um criminal, em caráter de urgência. Pois bem. Nosso diploma civil passou por uma série de fases e demorou quase um século para ser elaborado, aprovado e promulgado.

Informação de extrema relevância, pois nos força a analisar o fato de que nosso Código fora confeccionado em um tempo – e para esse tempo - e acabou por regrar um momento histórico, político, econômico e social completamente distinto, fundado em princípios quase que opostos aos de sua feitura.

Ou seja, o Código Civil foi elaborado ainda, dentro da dogmática que apartava o Direito Público do Direito Privado, envolto pelos ideais de liberalismo e individualismo.

Quando foi promulgado, essa realidade já estava em crise, tendo em vista a enorme quantidade de demandas sociais que exigiam a intervenção estatal. O voluntarismo puro não mais se enquadrava no cenário que ora se apresentava.

A esse respeito, o Prof. César Fiúza ilustra: "O Código Civil foi elaborado sob a inspiração do Estado Liberal burguês, do século XIX. Não se adequava, evidentemente, às aspirações do emergente Estado social, instalado no Brasil já no início do século XX". (FIÚZA, 2003, p. 30)

Francisco Amaral também retrata com muita clareza:

O Código Civil de 1916 era um código de sua época, elaborado a partir da realizada típica de uma sociedade colonial, traduzindo uma visão do mundo condicionado pela circunstância histórica, física e étnica em que se revela. Sendo a cristalização axiológica das idéias dominantes, detentores do poder político e social da época, por sua vez determinadas, ou condicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e sociais.(AMARAL, 2003, p. 131)

Pois bem. A despeito da inadequação temporal, adentremos ao conteúdo e ideologia do diploma. O Código Bevilácqua foi fruto das influências da Escola da Exegese (2) . Era inspirado nos ideais de completude e unicidade, com vistas a promover segurança social e jurídica.

Além disso, foi instituído como norma exclusiva das relações privadas. Desta forma, corroborou a tese Iluminista que estabeleceu marcada dicotomia entre as esferas do Direito Público e do Direito Privado.

Tutelava o sujeito, enquanto proprietário, pois era fundado em teorias individualistas e voluntaristas. Dava enorme liberdade ao princípio da autonomia da vontade, facilitando a transferência e o acúmulo de riquezas. Prof. Gustavo Tepedino resume:

O código civil, como se sabe, quando entrou em vigor, em 1917, refletia o pensamento dominante das elites européias do século XIX, consubstanciado no individualismo e no liberalismo jurídicos. O indivíduo, considerado sujeito de direito por sua capacidade de ser titular de relações patrimoniais, deveria ter plena liberdade para a apropriação, de tal sorte que o direito civil se estruturava a partir de dois grandes alicerces, o contrato e a propriedade, instrumentos que asseguravam o tráfego jurídico com vistas à aquisição e à manutenção do patrimônio. (TEPEDINO, 2003, p.116)

E independentemente da inadequação do código ao seu tempo, às reivindicações de seus destinatários ou de sua ideologia, o Código Civil brasileiro de 1916 teve seus méritos.

Importante característica foi sua originalidade ou nacionalidade. Seu mentor soube aproveitar as contribuições das ciências jurídicas de outros povos. Adaptou o que se enquadrava em nossa realidade; rejeitou o que não nos servia, criando algo, por muitas vezes, genuinamente brasileiro.

Destacou-se, ainda, por sua forma literária, por sua pureza de linguagem. Brilhou por apresentar uma correção de conceitos ímpar. Giordano Bruno S. Roberto assinala:

Sua forma literária também merece elogios. As correções feitas a partir das críticas de Rui certamente contribuíram para a pureza da linguagem. Para Pontes de Miranda, "poucos artistas da palavra, em Portugal e no Brasil, poderiam comparar qualquer de suas obras ao Código".

Outra característica do Código é a sua preocupação com a correção da linguagem e dos conceitos do que com as possibilidades de aplicação prática dos preceitos. (ROBERTO, 2003, p. 72)

1.3.1) O trinômio fundamental: estrutura do Código

O Código de 1916 fora estruturado em um trinômio fundamental que se resume aos elementos propriedade, autonomia da vontade e família. Revelava, como consignado, a ideologia liberalista representativa dos interesses da classe burguesa mercantil.

De irretocável síntese do Prof. César Fiúza, extraímos preciosa lição:

As instituições de Direito Civil foram tradicionalmente aprisionadas em quatro grandes ramos, quais sejam, o Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, o Direito de Família e o Direito das Sucessões. Assim está disposta a matéria das grandes codificações dos séculos XIX e XX, assim é ensinada nos cursos de Direito. Na verdade, procedendo a um corte epistemológico, descobre-se que o sustentáculo desses quatro grandes ramos é, tradicionalmente, a autonomia da vontade, a propriedade e a família. (FIÚZA, 2003, p. 24)

O diploma possuía inspiração estritamente individualista e garantia, por conseqüência, o direito de propriedade e de liberdade contratual, como frutos do liberalismo econômico dominante. "O Código Civil brasileiro, em suma, é o espelho fiel do patrimônio como valor nuclear privado tradicional. O patrimônio é, nele, uma esfera composta de coisas suscetíveis de apropriação e trânsito jurídico."(FACHIN, 2001, p. 69)

Até mesmo o mais pessoal dos direitos civis, o da família, era marcado pelo predomínio do patrimônio.

O Código Bevilácqua apresentava um Direito de Família que se assentava em um arcabouço patriarcalista e hierarquizado. Era fruto inevitável da sociedade onde se originou, marcada pela monogamia, que nada mais era do que forma de preservar o patrimônio construído: "A preocupação da sociedade do início do século passado era estritamente de caráter patrimonial, e o casamento foi a maneira encontrada para garantir a transmissão de bens a quem é ‘sangue do meu sangue’". (DIAS, 2004, p.16)

Tanto o afeto quanto o amor não eram elementos preponderantes para a caracterização de uma família; aquele não era visto como valor jurídico. Nossa doutrina jurídica herdou a estrutura familiar do Direito Romano "como unidade jurídica, econômica e religiosa, fundada na autoridade de um chefe, tendo essa estrutura perdurado até os nossos tempos". (PEREIRA, 2004, p. 640)

A família do Código Bevilácqua era, assim, uma comunidade instaurada pelo matrimônio – seu componente essencial - e unida por laços de sangue. Por esta razão, a lei facilitava o acesso ao casamento.

Bem, apesar da indiscutível importância desse trinômio na base de nossa civilística, um olhar mais profundo na sistemática adotada pelo diploma nos revela que a propriedade sempre fora a verdadeira pedra angular, sobre a qual o ordenamento jurídico se apoiou.

O patrimônio era a dimensão econômica da personalidade; garantia de proteção e preservação do indivíduo frente ao Estado; o sujeito somente existia na medida que possuía e se possuía; era protegido enquanto proprietário, contratante, marido ou herdeiro. Nesta esteira, Taísa Maria Macena de Lima acentua:

O antigo Código Civil brasileiro – influenciado pela doutrinas voluntaristas – dava ênfase ao indivíduo, porém nos papéis de proprietário e contratante. Noutros termos, o legislador de 1916 ocupou-se mais das relações jurídicas patrimoniais que das relações jurídicas existenciais, dando relevo ao direito de propriedade. (LIMA, 2003, p.250)

Portanto, os valores existenciais foram relegados a segundo plano pelo Código Civil de 1916. Só começaram a assumir merecida posição de destaque com o advento da Constituição Federal de 1988 e a instauração do Estado Democrático de Direito, que erigiu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República, momento em que os institutos jurídicos passaram a ser funcionalizados para a promoção do desenvolvimento pleno do homem, como estudaremos adiante.

Prof. Cézar Fiúza nos adianta o tema, em mais de uma de suas brilhantes sínteses:

Vive-se hoje no Brasil os alvores do Estado Democrático de Direito. Este é o momento da conscientização desse novo paradigma. Só agora assumem a devida importância os princípios e os valores constitucionais por que se deve pautar todo o sistema jurídico. Constitucionalização ou publicização do Direito Civil entram na temática do dia. O Código Civil não seria mais o centro do ordenamento civil. Seu lugar ocupa a Constituição, seus princípios e valores. Diz-se que os pilares de sustentação do Direito Civil, família, propriedade e autonomia da vontade, deixaram de sê-lo. O único pilar que sustenta toda a estrutura é o ser humano, a dignidade da pessoa, sua promoção espiritual, social e econômico. Este pilar sta, por sua vez, enraizado na Constituição. Tudo isso, não há dúvidas, dá o que pensar. (FIUZA, 2003, p. 29)

1.3.2) Influência positivista: a busca por segurança jurídica

Um dos principais objetivos do Direito sempre foi promover segurança jurídica, que, de forma genérica, significa paz e estabilidade; certeza na realização do Direito. Dentro da visão moderna, era, acima de tudo, a busca do cidadão por proteção em relação aos abusos do Poder Público em sua esfera privada.

Procuraremos entender, agora, qual a origem de sua relação com o positivismo jurídico e suas influências no Código Civil de 1916. Partiremos das palavras de Francisco Amaral:

A segurança jurídica, significando a estabilidade nas relações e a garantia de sua permanência, justifica o formalismo no direito e encontra no positivismo o seu principal fundamento teórico. Apresenta-se tanto como uma segurança de orientação, que se refere ao conhecimento que os destinatários têm das respectivas normas de direito, como também uma segurança de realização, ou confiança na ordem, que é a certeza do exercício dos direitos e do cumprimento dos deveres. Significa, portanto a possibilidade de cada um compreender o que é e o que não é lícito, podendo, conseqüentemente, regular seus atos e seu comportamento. Constitui-se, por isso, no mais antigo valor, na premissa de todas as civilizações. (AMARAL, 2003, p. 118-19)

Desenvolvido nos séculos XIX e XX, o positivismo jurídico - exprimido pelo pensamento da Escola da Exegese - procurava interpretar o direito como um sistema fechado, exaustivo e casuístico, a ponto de ser capaz de prever e regular todas as relações sociais que, por ventura, emergissem. A esse respeito, leciona Marcelo Galuppo:

...[ ] a Escola da Exegese pressupõe uma onisciência que lhe permite, por meio da construção de um sistema, presente explicitamente no próprio código, regular todas as ações humanas possíveis, também de forma racional. E, em caso de omissão de norma explícita, por ser um sistema, o Código permitiria aplicação de uma lógica dedutiva por intermédio da qual se extraísse, de outras normas, a norma adequada ao caso concreto. (GALUPPO, 2003, p. 171-172)

Assim, esse pensamento sistemático, onde o Direito é concebido como conjunto de normas jurídicas racionalmente elaborado, marcado pela unidade, plenitude, coordenação e subordinação de seus elementos, encerraria em si todas as soluções para os problemas surgidos na vida social. Na fala de César Fiúza:

A idéia dominante no positivismo jurídico, que imperou no Brasil até a década de 1970/1980, era a de ser possível uma legislação a tal ponto exaustiva e completa que enclausurasse o sistema, colocando-o a salvo de qualquer arroubo criativo que não tivesse origem no próprio Poder Legislativo. (FIUZA, 2003, p. 29-30)

A ideologia fundante do positivismo foi acirrada no Normativismo de Hans Kelsen, para quem o Direito se resumiria àquele colocado pelo Estado. A legitimidade dessas normas seria sempre uma outra, hierarquicamente antecedente, de maneira sucessiva, até se alcançar a Norma Fundamental, que confere legitimidade a todo o ordenamento jurídico.

Portanto, fica fácil vislumbrar como o Direito, concebido sob a visão do positivismo jurídico, seria capaz de promover a tão perseguida segurança jurídica: através da exaustão e da previsibilidade. Os parâmetros para toda a esfera privada já estariam previamente traçados.

Tendo em vista a completude da norma, ao intérprete era atribuída tão somente a função de revelar seu conteúdo. Sua atividade hermenêutica era esvaziada, evitando soluções no caso concreto que não estivessem cabalmente enquadradas na letra da lei. Jurisprudência e doutrina não eram fontes válidas de Direito. Francisco Amaral resume:

Em primeiro lugar a segurança, valor fundamental dos códigos civis do século passado, que consagrando a separação entre a sociedade civil e o Estado, visavam proteger a liberdade do indivíduo na sua vida particular contra a ingerência do poder público. Desse valor nasceu a pretensão de estabilidade dos Códigos, considerados como capazes de abarcar em todo seu sistema a multiplicidade das relações jurídicas privadas. (AMARAL, 2003, p. 151)

A justiça era consectário lógico da aplicação da lei, feita através de procedimento quase que mecânico, de subsunção da norma ao caso concreto.

Contudo, existe uma realidade histórica por trás de toda essa ideologia, que sempre procurava se atracar em portos seguros, erigindo a segurança jurídica como prioridade absoluta. Giselda Hironaka a explicita muito bem:

Os paradigmas fundamentais que erigiram a modernidade foram paradigmas que precisaram se impor, primeiro, à face do absolutismo que marcou a finalização do período medievo e, depois, paradigmas que precisaram superar os horrores de uma Primeira Grande Guerra. Tempos de alterações profundas e de busca de uma superação de injustiças e desigualdades enormes, esses tempos foram aqueles em que a prioridade era a conquista da segurança jurídica, da preservação dos direitos, do estabelecimento das igualdades e da consideração máxima ao indivíduo.

Por tudo isso e por isso mesmo, os paradigmas deste tempo pretérito oram os paradigmas da lei e da jurisdição, a significar que a segurança pretendida e ansiada devesse resultar de uma construção normativa que fosse suficientemente abstrata para ser universal, e que fosse suficientemente clara para ser abrangente de todas as hipóteses realizáveis. (HIRONAKA, 2004)

O Código Civil de 1916 foi elaborado no século XIX e promulgado no século XX. É indiscutivelmente filho do positivismo jurídico, tendo se assentado, portanto, na busca por segurança jurídica, que fora priorizada em relação à realização da justiça.

Neste aspecto, ouso fazer humilde consideração para afirmar que, talvez, a justiça não tenha sido simplesmente relegada a segundo plano. A concepção de justiça é que era diferenciada. Isto porque, dentro da ótica positivista, a aplicação da lei gerava , infalivelmente, decisões justas. Assim, garantir a segurança jurídica seria, indiretamente, de alguma forma, promover justiça.

Acontece, que, apesar da incessante busca por um sistema fechado, capaz de promover segurança jurídica, através do estabelecimento de ideais liberalistas e positivistas, a verdade é que esta estrutura não conseguiria se manter e não se sustentaria com o passar do tempo e diante da complexidade social. O sistema começou a ruir assim que foi instaurado. César Fiúza consigna brilhantemente:

Se observamos o comportamento dos tribunais, através dos tempos, chegaremos à conclusão de que o sistema sempre foi aberto. O tratamento sempre foi casuístico. A interpretação sempre foi argumentativa. O medo da arbitrariedade de um judiciário sem freios e sem preparo técnico é que levou os juristas, em vão à tarefa de tentar fechar o sistema. Mesmo na época da Escola da Exegese, os Tribunais franceses não se fecharam às inovações hermenêuticas, baseadas em pura argumentação jurídica. (FIUZA, 2003, p. 35)

Assim, a "crise" do Direito Civil, que estudaremos no capítulo a seguir, vem ocorrendo há séculos. Na atualidade, perante os novos paradigmas que surgiram, sobretudo, com o advento do Estado Democrático de Direito, ela atinge seu ápice e nos força a questionar a dogmática que colecionamos com o tempo. Prof. César Fiúza acrescenta, concluindo nosso pensamento:

O temor da arbitrariedade judicial é absolutamente absurdo, em nossos dias, dados os mecanismos de segurança do próprio sistema jurídico. São limites impostos pela dogmática, pela Constituição, pelos valores e princípios vigentes, como o duplo grau de jurisdição. Ademais, a argumentação deve ser racional e jurídica. Isso significa que o intérprete partirá do sistema, adequando a norma ao caso concreto, co base em valores e princípios constitucionalmente aceitos, para que a justiça prevaleça no caso concreto. (FIUZA, 2003, p. 35)

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Sobre a autora
Renata de Lima Rodrigues

advogada em Belo Horizonte (MG),professora da PUC/MG, especialista em Direito Civil pelo Instituto de Educação Continuada da PUC/MG, mestranda em Direito Privado pela PUC/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Renata Lima. As tendências do Direito Civil brasileiro na pós-modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 655, 23 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6617. Acesso em: 18 abr. 2024.

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