Introdução
O presente artigo busca debater a problemática da responsabilidade do Estado, em posição de garantidor, pelos danos ocorridos no interior dos presídios e estabelecimentos prisionais no território brasileiro. A população carcerária brasileira recrudesce de forma assustadora. Segundo a ultima atualização do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a população carcerária brasileira excedeu o quantum de 700.000 presos, incluindo as pessoas em prisão domiciliar. O princípio da dignidade da pessoa humana, basilar e fundamental a todo o ordenamento jurídico, é diretor e limitador da atuação estatal. Ao ser preso, o cidadão em conflito com a lei não perde todos os seus direitos, apenas a sua liberdade.
Conceituar dignidade da pessoa humana, ainda nos dias de hoje é um enorme desafio. Isto ocorre porque o conceito de dignidade da pessoa humana encontra-se no rol daqueles considerados vagos e imprecisos. Isso se dá pelo fato do conceito estar em constante transformação, pois a sua construção é fruto de um processo histórico que se amolda cultural e historicamente a cada sociedade.
Contudo, embora haja uma dificuldade em delimitar o espectro de incidência e a amplitude de tal conceito, entendido como uma qualidade que compõe e integra a própria condição humana, sendo ainda irrenunciável e inalienável. Assim até o mais vil e cruel dos homens é portador desse valor. Podemos adotar a conceituação proposta por Ingo Wolfgang Sarlet, que condensou alguns dos pensamentos mais utilizados para definir o conceito de dignidade da pessoa humana:
"qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos".
Os direitos fundamentais do cidadão preso
Uma vez que reconhecemos que todo ser humano é alcançado pelo principio da dignidade humana, mesmo quando infringi as normas que regem a sociedade. O senso comum nos leva a uma interpretação errônea dos Direitos inerentes a pessoa humana.
Porém, tal princípio, como afirmamos anteriormente, se construiu com tempo e continua em processo de construção. A história ensinou à humanidade a importância de preservar os pilares do princípio da dignidade da pessoa humana. As atrocidades cometidas pelo nazismo com o anteparo da lei conduziram ao processo de irradiação dos direitos inerentes a pessoa humana nas Constituições dos estados, principalmente os democráticos.
O legislador constituinte, ao formular a Constituição da Republica Federativa do Brasil, demonstrou evidente preocupação ao dar a tal princípio a envergadura de princípio constitucional, além disso, a Constituição Federal proíbe as penas cruéis (art. 5º , XLVII , e , CF/88), e garante ao cidadão-preso o respeito à integridade física e moral (art. 5º , XLIX , CF/88).
Assim, como princípio de envergadura constitucional, a dignidade da pessoa humana deve ser interpretada como norma de hierarquia superior, destinada a limitar e direcionar tanto o sistema legiferante, como o jurisdicional. Assim, por exemplo, o legislador infraconstitucional estaria proibido de criar normas incriminadoras que cominassem na aplicação de penas cruéis, ou de natureza aflitiva por atentar diretamente contra o princípio da dignidade da pessoa humana. Como afirma Lucrecio Rebollo Delgado:
“a dignidade humana constitui não somente a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, senão que entraria também a afirmação positiva de pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo”.
O Estado como garantidor e a responsabilidade civil objetiva do Estado.
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 37, §6º, atribui ao Estado a obrigação de responder pelos danos causados por seus agentes públicos durante o exercício da função pública. Trata-se da chamada “Responsabilidade Civil do Estado”, que compele o Poder Público a reparar a transgressão civil daqueles que agem em seu nome.
Tal responsabilização é decorrente do ônus estatal, visto que apesar do Estado ser detentor de soberania sobre os seus administrados, o Estado é limitado pelos ditames da lei, tendo assim que reparar os danos cometidos por seus agentes, ou por agentes pertencentes a pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, seja em condutas comissivas ou omissivas.
Ante a previsão constitucional da responsabilidade civil objetiva em caso de dano ocasionado por agentes do Estado pertencentes a administração pública direta ou indireta, ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, surge o questionamento quanto a responsabilidade estatal, na posição de garantidor, dos danos ocorridos em desfavor de presos no interior dos estabelecimentos prisionais, afinal o Estado tem o dever de zelar pela integridade física e moral dos detentos sob os seus cuidados, dessa forma apesar do Estado possuir o monopólio do uso da força, o seu ius puniendi possui limitações e não excluiu o dever de proteção dos cidadãos em conflito com a lei.
Assim surge a responsabilidade civil do Estado, que obriga o Poder Público a reparar danos causados por seus agentes durante o exercício da sua função, o termo agente público nesse caso é utilizado em sentido amplo.Contudo em caso de dolo ou culpa do agente, o Estado pode acionar o agente de forma regressiva.
Segundo ensinam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo:
No âmbito do Direito Público, temos que a responsabilidade civil da Administração Pública evidencia-se na obrigação que tem o Estado de indenizar os danos patrimoniais ou morais que seus agentes, atuando em seu nome, ou seja, na qualidade de agentes públicos, causem à esfera juridicamente tutelada dos particulares. Traduz-se, pois, na obrigação de reparar economicamente danos patrimoniais, e com tal reparação se exaure. [...] A nosso ver, a fundamentação da responsabilidade estatal reside na busca de uma repartição isonômica, equânime, do ônus proveniente de atos ou dos efeitos oriundos das atividades da Administração. [...] (ALEXANDRINO & PAULO, 2015, pp. 846; 849-850)
A doutrina brasileira se baseia na teoria dos risco, em uma de suas modalidades, para definir a responsabilidade objetiva independente de culpa. Dentre as teorias tais como a Teoria do risco criado, onde o agente cria o risco, decorrente de outra pessoa ou coisa, prevista no art. 938 do Código Civil, a teoria do risco da atividade, onde a própria atividade desempenhada cria riscos a terceiros, prevista na segunda parte do art. 927, parágrafo único do Código Civil. Contudo ao tratar da responsabilidade objetiva no tocante a atuação do Estado, a doutrina baseia-se em três teorias: A Teoria do risco administrativo; A Teoria da culpa administrativa; e a Teoria do risco integral.
A doutrina majoritária adota a Teoria do risco administrativo nos casos de responsabilidade objetiva do estado. Para tal teoria o Estado deve responder por dano causado ao administrado independente de dolo ou culpa na sua atuação, bastando ao particular a comprovação do fato que acarretou o dano, assim temos três elementos para a comprovação do dano: que a conduta danosa tenha sido praticada no exercício da atribuição do agente; a existência do dano; e o nexo de causalidade entre a conduta comissiva ou omissiva que resultou no evento danoso.
Na responsabilidade civil objetiva não há a necessidade de comprovação de dolo ou culpa, tais modalidades de culpa são elementos subjetivos unicamente necessários em caso de ação regressiva.
No mesmo sentido resta o seguinte julgado do STF:
[...] A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que as pessoas jurídicas de direito público respondem objetivamente pelos danos que causarem a terceiros, com fundamento no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, tanto por atos comissivos quanto por atos omissivos, desde que demonstrado o nexo causal entre o dano e a omissão do Poder Público. [...] (STF. 2ª Turma. ARE 897890 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 22/09/2015)
Conclusão
Ante ao exposto concluímos que o Estado, na posição de garantidor, tem o dever pelas pessoas que estão sob seus cuidados, zelando pela integridade física e moral dos mesmos, e em caso de ocorrência de dano ocorrido em desfavor do preso, ainda que o dano seja resultado de uma conduta omissiva, o Estado deve responder por tal omissão, pois caberia ao Estado impedir a ocorrência do fato danoso, equiparando-se assim a conduta comissiva.
Por fim, ante a existência de diversos dispositivos legais de natureza infraconstitucional e constitucional que trazer o dever do Estado de zelar pela integridade física do preso sob sua custódia. Assim qualquer dano ocorrido no interior dos estabelecimentos prisionais implica em falha dos institutos estatais, ou seja, toda estrutura estatal e todo o anteparo legal no tocante ao sistema carcerário falhou, ficando assim o Estado responsável por qualquer dano sofrido no interior de tais unidades.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Código Civil 2002. Senado Federal. Código Civil Brasileiro: e legislação correlata. 2. ed. Brasilia: Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. 3.ed, São Paulo: Saraiva, 2004, p.153-252.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 1..ed. São Paulo. Edipro, 1999.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27.ed. São Paulo: Atlas, 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 41.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013..
DEMARCHI, Lizandra Pereira. Os direitos fundamentais do cidadão preso: uma questão de dignidade e de responsabilidade social. Disponível em http://www.lfg.com.br 9 setembro. 2008.