A Constituição resiste! Votar para que (m)?

24/05/2018 às 16:50
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Num contexto de baixa representatividade popular e crise política cabe questionar se a Constituição tem sido cumprida e em que grau a soberania popular é respeitada.

“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” É este o texto do parágrafo único, art. 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil que, conforme dispõe também o art. 1º, “constitui-se em Estado Democrático de Direito”, tendo como fundamentos “a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político”. São objetivos fundamentais descritos na Constituição (art. 3º): “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

E ouço muito falar de constitucionalidade e inconstitucionalidade, crise e conflitos de poderes, sem sequer considerar a fonte da qual emana todo o poder, os fundamentos sob os quais se constitui e legitima o Estado, e os objetivos declarados como fundamentais pelo povo por meio de seus representantes num momento de lucidez, em que havia de fato alguma representação da soberania popular.

Como é possível conceber que um Presidente eleito seja deposto por representantes que não representam, de fato, os interesses do povo e aquele que o substitui permaneça no poder estando desaprovado pela grande maioria da população? E pior, que governe em sentido contrário ao indicado pelo povo com o voto, lançando mão de medidas provisórias ou pressionando o Congresso para tratar de temas delicados em velocidade absurda para o bom senso, talvez porque o que parece irrefletido seja fruto de uma reflexão há muito estabelecida de que o povo não sabe o que é melhor para si próprio e é possível, talvez aconselhável, fazer o melhor apenas para alguns. – É possível argumentar que a legitimidade de um presidente e parlamentares do Congresso seja a mesma, mas é notório que no Brasil o Presidente eleito representa muito mais o modelo de país e interesses pretendidos pelo povo de um modo geral do que os parlamentares. Esta é a minha percepção, aceito argumento que a enfrente e esclareça eventuais falhas de meu raciocínio –.

Pois bem, o problema é que enquanto supostamente o povo não sabe o que é melhor para o país como um todo, a classe política em exercício tampouco se importa em indicar o caminho ou atuar no sentido do bem comum, pelo contrário, aparentemente, na maioria das vezes, atua em benefício próprio ou em benefício daqueles que patrocinaram sua candidatura, o que na verdade não deixa de ser agir em benefício próprio diante das vantagens do mandato eletivo. Peço escusas por até aqui repetir o óbvio, mas em meio a tanta confusão o evidente não se mostra com a devida clareza.

Talvez seja eu afetado por miopia e nada do aqui dito de fato ocorra. São tantos focos, tantos temas em debate na atualidade, tantas pautas, tanta informação. Mentiras tornadas verdades e verdades tornadas mentiras. Confesso, o esforço de tentar ouvir as vozes dissonantes, por fim apenas confirma ser a razão secundária na formação dos juízos de valor e opiniões. Contudo, pensar nas consequências limita o desejo, o impulso violento de ser cruel, atualmente tão aclamado por pessoas tão perdidas que não enxergam, mesmo diante de tantos exemplos históricos, a quantidade de dor, sofrimento e morte que esse impulso irracional pode causar.

Se não há nenhum consenso atual, se o ódio com ódio se paga, se a religião é manipulada e distorcida para negar o amor ao próximo, resta-nos a Constituição concebida num momento de razoável estabilidade e convergência e o que ela nos diz em sua essência é que o melhor caminho é a democracia, a paz, a luta contra a desigualdade e o preconceito, a dignidade da vida e do trabalho humano, uma justiça e sociedade solidária e fraterna. E nada disso que ela dispõe é mera utopia, mas resultado de um momento de reflexão profunda do contexto histórico e social do povo e diante da observação das consequências de posições contrárias na história da humanidade.

Concluiu o povo do Brasil há 30 anos que o melhor é a liberdade, o melhor é o respeito à diferença, o melhor é conferir aos outros os mesmos direitos que confere a si, as mesmas oportunidades, sonhos e esperanças. Foi nesse país que nasci e cresci, tendo praticamente a mesma idade da Constituição, e percebo, acredito que, mesmo diante de todos os problemas existentes, o caminho escolhido não foi equivocado, mas que apenas falta muito para concretizarmos esses projetos não podendo retroceder no tempo, voltar aos erros do passado como se nunca aprendêssemos.

Melhor não saber o que fazer com a liberdade, entediar-se com ela, do que renunciá-la. Melhor ter alguns direitos e algumas oportunidades, do que não ter esperança de melhorias. Melhor amar que odiar, melhor viver que morrer, melhor sonhar que desistir e resignar com o sofrimento. Melhor ser feliz, alegre, que triste.

Todo poder emana do povo e apenas o povo, igual em suas diferenças, é capaz de determinar o próprio destino. Acredito que ainda prepondera nos corações e mentes da população brasileira, num equilíbrio entre razão e emoção, os mesmos anseios e preocupações manifestados na Constituição Federal de 1.988 e que a união em torno de seus propósitos fundamentais é um caminho inicial para sairmos de todas as crises e conflitos hoje vivenciados.

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E uma questão se coloca: Votar para que (m)? Se o voto é a oportunidade, talvez ilusória, de um povo expressar sua vontade, ainda que de fato não represente um real poder decisório afinal, este direito, que não veio gratuitamente, é apenas a primeira página de um livro a ser escrito, no qual a participação popular orienta a gestão pública de modo a construir o país que se quer, desenvolvido, mais justo, menos desigual, com oportunidades a todos. É difícil racionalmente conceber que o voto de um povo a buscar tais realizações não se destine a quem se disponha, de forma séria e responsável, a buscá-las.

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