Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o mercado de compras governamentais corresponde, em média, a 13% do produto interno bruto (PIB) brasileiro.[1] Isso significa algo em torno de R$ 850 Bi somente no exercício de 2017, considerando os dados fornecidos pelo IBGE (2)
Atualmente, o cenário que se revela é de expectativa generalizada da sociedade civil quanto a um novo marco legal para as contratações públicas. O texto que tramita no Congresso Nacional tem sido objeto de análise por parte de especialistas, obtendo, como não poderia deixar de ser, críticas e elogios. A ampla revisão é um antigo pleito de compradores públicos, da doutrina, de consultores privados e do mercado, que enxergam no texto atual um obstáculo ao aperfeiçoamento do processo, à obtenção de melhores resultados e ao controle da corrupção. Neste particular, o Relatório Econômico da OCDE, apresentado em fevereiro de 2018, recomendou expressamente a reavaliação completa das leis de contratação pública brasileiras, especialmente focando “o modo com que suas muitas complexidades e isenções afetam a integridade dos processos de licitação e a concorrência”.
Ao longo dos 25 anos de existência da Lei 8.666/93, o que era, considerando o momento histórico de sua edição (pós impeachment de Fernando Collor de Mello e escândalo dos “anões do orçamento”, ano do plebiscito para escolha da forma de governo, auge da hiperinflação, mudança da moeda para Cruzeiro Real, término da chamada “década perdida”, período em que o PIB do Brasil encolheu em termos absolutos), uma evolução em face da norma anterior pós ditadura, o Decreto-Lei 2.300/86, e um conjunto razoável de regras voltadas para a segurança do processo, foi aos poucos sendo transformada para acomodar demandas sociais, execução de planos de governo, novas estratégias de desenvolvimento nacional, sem, contudo, ser reformada e aperfeiçoada em aspectos que a tornavam obsoleta ou se mostravam ineficazes, como a demasiada complexidade do procedimento, a fragilidade moral gerada pela intensa burocracia, a imprecisão das normas sobre sanções, a perda da qualidade diante de limites desnecessários, a onerosidade gerada pelos custos de transação. E foi assim que, hoje, a Lei 8.666, inicialmente uma norma voltada para as aquisições do Poder Público, transformou-se em um importante instrumento para a realização de políticas públicas, contendo disposições que privilegiam o desenvolvimento nacional sustentável, o desenvolvimento de produtos e serviços manufaturados nacionais, ações de inovação, associações de catadores de produtos recicláveis, reserva de cargos para pessoa com deficiência ou reabilitado da Previdência Social, além de resguardarem contra a prática do trabalho de menor em condições vedadas pela Constituição Federal. Nessa linha, a Lei Complementar nº 123/06, que juntamente com a criação do pregão e do RDC, compõe a tríade das alterações de maior impacto nas compras públicas brasileiras, abriu esse importante e sólido mercado às microempresa e empresa de pequeno porte, autorizando o tratamento diferenciado e favorecido quando em competição com empresas de médio e grande porte.
Infelizmente, ao tempo em que o Estado se dedicou a fazer do seu poder de compra uma ferramenta por excelência para a implementação de políticas públicas, trazendo para as compras públicas o positivo efeito da criação de valor público (public value), não houve igual preocupação com a implementação de estratégias que fossem suficientes para aumentar o valor do dinheiro (value for money), com base em menores custos de aquisição e maior eficiência, em prejuízo do objetivo primário do processo de contratação: a compra com qualidade, a um justo preço. A compra pública parece ter se tornado a solução para muitas coisas, menos para obter a compra mais econômica, com qualidade. Com efeito, a ineficácia da compra pública ainda é pauta nas principais rodas de discussão, nos artigos publicados por profissionais especializados, nas dissertações e teses desenvolvidas nas universidades. O Poder Público continua comprando mal, pagando valores acima do mercado, pagando pelo risco que a contratação pública gera para o contratante privado e, em claro contrassenso, desperdiçando recursos que poderiam estar sendo investidos nas próprias políticas públicas. Nesse ambiente de discussão tão controverso, por outro lado, ainda há quem acredite que a Administração Pública deve se satisfazer com a qualidade mínima, priorizando o menor preço; que a qualidade do produto ou serviço ofertado e a efetividade da contratação não será afetada pelo acirramento da competitividade no pregão eletrônico e que o fornecedor oferecerá seu melhor produto, da melhor marca, mesmo sabendo que a disputa será pelo preço; que o fornecedor entregará o objeto conforme ajustado mesmo que tenha ofertado um desconto muito maior do que o que costuma praticar no mercado privado; que o preço não é afetado pelos custos de transação inerentes (álea ordinária) à contratação administrativa; que o mercado das compras públicas, nas atuais condições de contratação, realmente fomenta o interesse dos melhores fornecedores à participação e gera os melhores negócios para o comprador. E, em relação à principal política pública implementada por meio da compra pública, que levou à adjudicação de 26,31% do total das compras realizadas pelo governo federal entre 2013 e maio de 2018 a micro e pequenas empresas, mesmo após mais de 10 anos de sua implementação ainda não há mecanismos que possibilitem atenuar os impactos negativos que tais contratações geram nos objetivos da contratação pública, como os frequentes inadimplementos e rescisões contratuais.
A situação é agravada pela incapacidade de agentes - especialmente, mas não apenas, estaduais e municipais -, uma verdadeira endemia gerada pela falta de capacitação decorrente, no mais das vezes, da falta de consciência, por parte das autoridades, de que a atividade de contratação é fundamental e estratégica para a obtenção os fins institucionais. Parece ter sido esse o motivo que acabou conduzindo o Tribunal de Contas da União em uma atuação “didática”, mostrando ao agente público alguns caminhos na interpretação de uma legislação tão complexa. Se hoje chegamos em um ponto em que essa atuação é criticada por alguns efeitos produzidos - o medo de decidir diferentemente do que pensa o controle e, consequentemente, uma gestão pública que não realiza gestão[3] - é preciso ter a compreensão de que a independência não será possível sem investimento em capacitação – recomendação, aliás, presente em um sem-número de acórdãos daquela Corte de Contas.
A mudança desse estado de coisas é visivelmente urgente. São necessárias alterações normativas profundas e nova cultura para as compras públicas, o que inclui reduzir o abismo existente entre compras públicas e privadas. É preciso olhar para fora e, com cuidado, copiar – sim, isso não é um pecado - do mercado privado métodos, processos, estratégias que possibilitem a obtenção de melhores resultados. Significa deixar de lado o preconceito, o pressuposto de que a Administração Pública é melhor do que a empresa privada e, por isso, o privado não serve para o público; de que há um “mercado de compras públicas diferente do mercado de compras privadas”. Deve-se repensar o sistema e considerar alternativas como[4]:
1. reduzir custos de aquisição, relacionados a despesas com obtenção de documentos e certidões, à especificação do objeto detalhada e ao formalismo do processo, fatores que demandam a manutenção de estrutura funcional maior e pessoal especializado;
2. restringir a licitação a fornecedores pré-qualificados, sem considerar tal medida uma afronta à competição e à isonomia, eis que privilegia a eficiência e a eficácia da contratação;
3. considerar a reputação do fornecedor como mecanismo para promover melhorias, estabelecendo um sistema de avaliação de fornecedores e formação de cadastro positivo ou ranking, passível de levar a uma contratação direta, a uma melhor pontuação técnica ou mesmo como condição à habilitação;
4. reduzir os custos de transação decorrentes do princípio da desconfiança mútua, de custos extras e incertezas que imperam na contratações públicas, simplificando procedimentos e reduzindo a imperatividade de ações administrativas que geram insegurança ao fornecedor e possível impacto no lucro, reconhecendo que isso não afetará sobremaneira o interesse público se houver um planejamento adequado;
5. criar sistemas de incentivos baseados em recompensas, como a utilização do instrumento de medição de resultados - IMR para pagamento de bônus, não somente para descontos, para fomentar o interesse dos fornecedores em maximizar esforços para um melhor desempenho;
6. criar mecanismos de governança distintos dos tradicionais para contratos com maior complexidade, de modo a alcançar os problemas específicos que afetam tais ajustes, deixando de pensar em um “regime jurídico único” para todo e qualquer contrato;
7. permitir que a escolha do fornecedor possa ser, quando necessário, orientada a partir da sua capacidade em controlar o processo de produção e de entregar o produto com qualidade, reconhecendo que as especificações do objeto, sozinhas, não garantem a qualidade do produto; atualmente, todo o peso da aferição da qualidade se concentra na análise da amostra e no recebimento do objeto;
8. estabelecer indicadores de eficácia para o controle de resultados, os quais considerem não só a redução no preço contratado, mas os custos ex post, relacionados à entrega no prazo e às especificações estabelecidas no edital;
9. restringir a prerrogativa administrativa de atrasar o pagamento a situações específicas e excepcionais, especialmente em contratos celebrados com micro e pequenas empresas;
10. permitir que a divulgação ou não do valor orçado resulte de análise discricionária do gestor público e integre a estratégia de cada licitação, considerando concretamente se os benefícios normais da divulgação, que são o aumento da concorrência e a redução dos lances ofertados, poderão ou não ocorrer;
11. implementar política de monitoramento do contrato que fixe normas e parâmetros para a clara definição dos comportamentos considerados inadequados ao fornecedor, de modo que a fiscalização se centre na coleta de informações necessárias a verificar, objetivamente, o comportamento do fornecedor, aplicar os incentivos para a melhoria da eficácia do contrato e garantir um desempenho que atenda aos padrões pré-definidos;
12. impor, para os casos aplicáveis, a obrigatoriedade das centrais de compras/centrais de licitação, visando reduzir quantitativa e qualitativamente as chances de ocorrência de desvios e corrupção, proporcionar uma gestão mais eficiente dos processos e uma maior economicidade em compras com escala;
13. condicionar a celebração de contratos de grande vulto à existência de programas de integridade no âmbito da empresa contratada;
14. explicitar quais normas, no âmbito da Lei Geral, são consideradas normas especiais e, portanto, não são de atendimento obrigatório por estados e municípios, que poderão normatizar as questões de acordo com a sua realidade e construir soluções concretas e eficazes no seu âmbito específico;
15. tornar obrigatório, como pressuposto do princípio da eficiência das compras públicas, o treinamento sistemático dos servidores responsáveis pelas contratações públicas, incluindo a estruturação das licitações, a detecção de práticas de conluio (conforme recomendação OCDE, 2012b) e a gestão eficaz do contrato, sendo considerada falha grave de gestão administrativa a ausência de programa de capacitação devidamente executado.
Recentemente, inaugurando uma grande e positiva mudança, a Lei 13.303/16 instituiu um novo regime de contratações para as empresas estatais e as desvinculou das amarras da Lei Geral, permitindo uma aproximação com as práticas do setor privado. Sob o enfoque ora tratado, foi fundamental a atenuação da posição de supremacia em relação aos fornecedores, tornando regra a submissão do ajuste à vontade dos contratantes e aos objetivos do contrato. A crítica fica por conta da “esquizofrenia” provocada pela inclusão das entidades prestadoras de serviço público nesse regime, já que, a rigor, o interesse público que as move não se distingue daquele que move a Administração Pública direta. Não se trata de questionar a constitucionalidade da medida, mas, sim, a coerência do sistema. Cairia por terra essa observação se, na verdade, fosse este um novo passo rumo à alteração de todo o pensar do Direito Administrativo brasileiro, conforme o precursor escólio de Humberto Ávila em seu “Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”[54]; se fosse o início gradual, lento, de uma profunda modificação, voltada para uma verdadeira revolução causada pela destituição, senão total, mas parcial do Estado de sua posição privilegiada em face do particular. Não é isso o que se observa, contudo, uma vez que o texto que tramita no Congresso Nacional com o propósito de substituir a Lei 8.666 não contempla esse veio transformador, a despeito de todos os merecidos elogios.
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Notas
[1] Conforme www.fnde.gov.br/acoes/compras-governamentais/sobre-compras-governamentais, acesso em 31.5.2018.
[2] Segundo notícia atualizada em 10.4.2018, o PIB de 2017 fechou em R$ 6,6 trilhões (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias.html).
[3] Vide GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle e DANTAS, Bruno. O risco de “infantilizar” a gestão pública.
[4] Algumas dessas medidas ou medidas similares às indicadas já estão contempladas nas propostas que estão em debate no Congresso Nacional, ao propósito de substituir a Lei 8.666.
[5] In Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 7, outubro, 2001.