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Inconstitucionalidade da transferência de depósitos judiciais instituída pela Lei n. 13.463/2017

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Resumo:


  • A Lei nº 13.463/2017, que cancela Requisições de Pequeno Valor e precatórios não sacados após dois anos, é criticada por ser considerada inconstitucional, pois interfere na propriedade privada sem previsão constitucional e viola princípios como a duração razoável do processo e a efetividade da jurisdição.

  • A lei prevê que os valores não sacados sejam transferidos para a Conta Única do Tesouro Nacional, tratando-se de uma apropriação indevida de recursos que pertencem aos credores e não ao Estado, gerando uma demora ainda maior no pagamento devido aos credores.

  • Argumenta-se que a transferência dos valores para o Tesouro Nacional é uma forma de intervenção estatal não autorizada pela Constituição e que a lei também viola a Convenção Americana de Direitos Humanos, sendo, portanto, inconstitucional e anticonvencional.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A transferência do depósito judicial para a conta única do tesouro nacional é inconstitucional, pois é uma hipótese de intervenção do Estado na propriedade privada não autorizada expressamente pela Constituição.

INTRODUÇÃO: O trabalho critica as normas da Lei no 13.463, de 06.07.2017, que determinaram o cancelamento das Requisições de Pequeno Valor – RPV e dos precatórios cujos valores depositados há mais de dois anos não houvessem sido levantados pelos seus respectivos titulares. Mostra que essas normas são inconstitucionais, por resultarem em intervenção do Estado na propriedade privada em hipótese não prevista na Constituição Federal e por ofenderem os princípios da duração razoável do processo e da efetividade da jurisdição.           

PALAVRAS – CHAVE: TRANSFERÊNCIA – DEPÓSITOS – JUDICIAIS – LEI 13.463/2017


TRANSFERÊNCIA DE DEPÓSITOS JUDICIAIS INSTITUÍDA PELA LEI nº 13.463/2017

O artigo 2º da Lei no 13.463, de 06.07.2017, determinou o cancelamento das Requisições de Pequeno Valor – RPV e dos precatórios cujos montantes depositados há 02 (dois) anos ou mais não houvessem sido levantados pelos seus respectivos titulares.

O artigo 3º dessa mesma Lei estipula que poderá ser expedido nova Requisição de Pequeno Valor – RPV ou novo precatório, a requerimento do credor; essa nova requisição de pagamento, segundo o parágrafo único, “[...] conservará a ordem cronológica do requisitório anterior e a remuneração correspondente a todo o período”.

O artigo 1º, parágrafo único diz que as remunerações das disponibilidades dos recursos depositados constituirão “receitas”.

Tanto os depósitos para pagamentos de Requisições de Pequeno Valor – RPV, como de precatórios, e seus “rendimentos”, sendo “[...] transferidos para a Conta Única do Tesouro Nacional”, na dicção do art. 2º, parágrafo 1º daquela Lei.

A Lei no 13.463/2017 preocupou-se em assegurar que o credor poderia pedir nova Requisição de Pequeno Valor – RPV ou precatório, o que deixa claro que não é o direito ao crédito em si, mas o seu objeto material – os dinheiros depositados – que estão sendo incorporados ao Tesouro Nacional, como “receita” daqueles devedores.

Percebe-se, sem maior dificuldade, que há um apossamento, pela entidade de direito público interno – União Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios – de dinheiros que, no todo ou em parte, não lhes pertencem, mas sim, aos credores da Fazenda Pública.

Os credores são privados de seus créditos por anos.

A farra dos devedores públicos apossarem-se do dinheiro pago aos seus credores via Requisições de Pequeno Valor – RPV ou precatórios começou com a Lei no 9.703/98, cujo artigo 1o, § 3o, I determinou a restituição àqueles, no prazo de vinte e quatro horas, depois de ordem judicial.

O Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade desse abuso, ora alegando que o depósito judicial seria uma “faculdade” do particular[2], ora que não haveria “empréstimo compulsório” ou “confisco” porque garantida a restituição, “inclusive melhorando as condições do depósito”[3], e sempre acentuando que o precatório é um procedimento administrativo, embora sujeito ao controle do juiz.

Por que a “melhoria das relações” entre a CEF e o Tesouro Nacional (Ministro Ilmar Galvão, ADI 1933-1-MC) deveria se dar com o apossamento do dinheiro que não pertenciam aos devedores (os entes públicos), mas aos seus credores, é que não se disse.

Como a Lei no 9.703/98 foi declarada constitucional, era previsível que o abuso se agigantasse.

Estados e Municípios entraram na festa, como era de se esperar depois de decisões como aquelas proferidas pelo STF.[4]

Como se costuma dizer, nada é tão ruim que não possa ficar ainda pior.

Se o abuso da Lei no 9.730/98 ainda podia ser relevado pelo Supremo Tribunal Federal por causa da garantia da restituição ao credor no prazo de 24 (vinte e quatro) horas do dinheiro transferido à Conta Única do Tesouro Nacional, o que dizer da Lei no 13.463/2017, que condiciona essa restituição à expedição de novo precatório, para pagamento em exercício financeiro subsequente – na melhor das hipóteses?

O problema nunca foi o depósito ser uma “faculdade” do particular, para suspender a exigibilidade do crédito impugnado e assim precaver-se contra juros, multas de mora, multas de ofício, correção monetária estratosférica, negativa de expedição de certidões de regularidade fiscal, e assim por diante.

A questão sempre foi a falta de justa causa – constitucional – para que a União Federal e os demais entes públicos – devedores contumazes e caloteiros históricos – se apossassem das quantias que não lhes pertenciam, no todo ou em parte.

Se o apossamento não caracterizaria “empréstimo compulsório” ou “confisco”, teria sido o caso de o STF esclarecer a que figura jurídica corresponderia, já que o Poder Público só pode se adentrar na propriedade particular nas estritas hipóteses previstas na Constituição Federal.

E pelo menos até a Emenda Constitucional no 94/2016, não havia qualquer autorização constitucional para que os depósitos que pertenciam aos credores das Administrações Públicas passassem a constituir-se em “receitas” delas.

Desde a decisão proferida na ADI 1933-1-MC, o STF argumenta que, com a “transferência”, o contribuinte e a Fazenda Pública seriam postos em “pé de igualdade”.

Se a Fazenda Pública também tivesse que depositar para garantia das ações fiscais e não fiscais que ajuizasse contra os particulares, até se poderia levar o argumento da equiparação mais a sério.

Mas, como a Fazenda Pública está dispensada por lei de proceder a depósitos para suspender a exigibilidade de créditos que lhe são exigidos, inclusive com base em decisões judiciais transitadas em julgado, a equiparação não se sustenta.

Se o Supremo Tribunal Federal quiser ser fiel à sua própria jurisprudência e às razões que a firmaram, terá que reconhecer a inconstitucionalidade material dessa modalidade de “transferência” criada pela Lei no 13.463/2017, se não pela absoluta ausência de justa causa para o ente público apossar-se do que não lhe pertence, mas sim ao seu credor, pelo fato de que a restituição só se dará anos depois, e isso se houver restituição – quantos Estados não têm vivido sob estado de greve de seus servidores, por incapacidade de lhes pagarem salários, aposentadorias e pensões?

A Lei no 13.463/2017 assegurou “a remuneração correspondente a todo o período” em seu artigo 3o, parágrafo único.

Mas, que “remuneração”? E quanto a que período?

Por exemplo: juros de mora e correção monetária entre a “data de realização dos cálculos e a da requisição ou do precatório”? Excetuando-se o período de tempo entre a requisição e o novo depósito?[5]

Sendo a “transferência” criada pela Lei no 13.463/2017 inconstitucional, seja pela absoluta falta de justa causa para que a “receita” do credor torne-se “receita” do devedor, seja porque a restituição, se houver, se dará depois de anos, e não em “vinte e quatro horas”, como dizia a Lei no 9.703/98, não é apenas de “remuneração” que se deve falar, mas sim em “indenização” – e a mais ampla possível, ou seja, englobando lucros cessantes, danos emergentes, correção monetária pelo índice que melhor reflita a inflação e juros de mora de 12% (doze por cento) ao ano (art. 406 CC).

Sob pena de, mais uma vez, privilegiar-se os entes públicos devedores e caloteiros históricos contra seus credores, é de justiça entender-se que o período deverá ser aquele durante o qual os dinheiros tiverem estado fora da disponibilidade do credor, ou seja, desde a data da “transferência” e até a efetiva restituição, e não apenas entre a data do cálculo e a nova requisição de pagamento, como é o entendimento do STF.

É ainda oportuno chamar a atenção para a falta completa de razoabilidade e a quebra da isonomia na “transferência”, uma vez que a Lei no 13.463/2017 trata do mesmo modo os depósitos judiciais não tenham sido movimentados por razões ligadas ao próprio processo, e não pela vontade do credor, e aqueles pelos quais o credor se desinteressou.[6]

Como adverte Perelman, “[...] uma regra justa não é arbitrária, deve possuir um fundamento justificativo em razão, mesmo que esse fundamento não suscite um acordo unânime.”[7]

Qual o fundamento da Lei no 13.463/2017? Apenas fazer caixa para o Governo? Com dinheiro que não é da União Federal, mas de seus credores?

Certamente essa não é uma hipótese de interferência do Estado na propriedade privada, ou na efetividade dos processos judiciais, autorizada pelo artigo 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica.[8]

A Lei no 13.463/2017, assim, pode ser também submetida ao controle judicial difuso de convencionalidade,[9] além de passível de controles direto e difuso de constitucionalidade.

O absurdo da situação pode levar até ao ponto em que um depósito judicial, tornado herança jacente ou vacante por falta de herdeiros do credor falecido, tenha essa receita – no sentido próprio do termo – estadual “transferida” para a Conta Única do Tesouro Nacional, com evidente quebra do princípio federativo.

Também é merecedora de registro a transparência com que se conduziram Tribunais, como o TRF da 4a Região, que disponibilizou consulta pública dos RPVs e dos precatórios com saldos pendentes que sofreriam a “transferência”.[10]

Por fim, é importante observar que já foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5755, contra a Lei no 13.463/2017, que dispõe sobre os recursos destinados aos pagamentos decorrentes de precatórios e de Requisições de Pequeno Valor (RPV) federais.

Aguardemos a próxima interpretação do STF...


CONCLUSÕES

Com a Lei no 13.463/2017, os credores da Fazenda Pública serão desapossados do dinheiro que lhes pertence, com a justificativa de que não foram levantados depois de dois anos de depositados judicialmente.

Ocorre que o dinheiro depositado pertence ao credor (particular), não ao devedor (ente público).

A transferência do depósito judicial para a Conta Única do Tesouro Nacional é inconstitucional, pois é uma hipótese de intervenção do Estado na propriedade privada não autorizada expressamente pela Constituição Federal.

Essa farra começou com a Lei no 9.738/993, tolerada pelo Supremo Tribunal Federal porque o dinheiro transferido à Conta Única do Tesouro Nacional seria restituído ao particular, em vinte e quatro horas.

Com a Lei no 13.463/2017, esse prazo transformou-se em anos, já que todo o procedimento de execução contra a Fazenda Pública deverá recomeçar do zero.

O abuso chegou ao ponto de Estados buscarem transferir para seus Tesouros os depósitos judiciais feitos em processos judiciais envolvendo somente particulares.

Há falta completa de razoabilidade e a quebra da isonomia na “transferência”, uma vez que a Lei no 13.463/2017 trata do mesmo modo os depósitos judiciais não tenham sido movimentados por razões ligadas ao próprio processo, e não pela vontade do credor, e aqueles pelos quais o credor se desinteressou.

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A Lei no 13.463/2017 atenta contra os princípios constitucionais da duração razoável do processo e da efetividade da execução, incorporados nos artigos 1o e 4o do CPC.

A Lei no 13.463/2017 também fere o artigo 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Portanto, a Lei no 13.463/2017 é inconstitucional e anticonvencional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva,  2016.

BRASIL. Tribunal Regional Federal (4. Região). TRF4 disponibiliza consulta pública de precatórios e RPVs com saldo pendente. Disponível em: <http://boletimjuridico.publicacoesonline.com.br/trf4-disponibiliza-consulta-publica-de-precatorios-e-rpvs-com-saldo-pendente/>. Acesso em: 12 abr. 2018.

______. Superior Tribunal Federal. RE 579.431. Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. DJE 30 jun. 2017.

______. Superior Tribunal Federal. Súmula 456. ARE 638195. Pleno. Rel. Min. Joaquim Barbosa. julg. 29 mai. 2013.

CARPENA, Márcio Louzada. Da garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional e o processo contemporâneo. In: PORTO, Sérgio Gilberto (Org.). As garantias do cidadão no processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso “Cinco Aposentados” vs. Peru, sentença de 28.02.2003. Disponível  em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/94e99edfc08ad3aa6a2b2cb5fed16fff.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2018.

GRECO, Leonard. Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2005.

KIDRICK, Tiago Beck. Lei de cancelamento de precatórios e RPV causa preocupação. Disponível em: <http://www.fetapergs.org.br/index.php/noticias/item/354-lei-do-cancelamento-de-precatorios-e-rpvs-federais-causa-preocupacao-por-tiago-beck-kidricki>. Acesso em: 12 abr. 2018.

LIMA, Georges Marmestein. Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4666/criticas-a-teoria-das-geracoes-ou-mesmo-dimensoes-dos-direitos-fundamentais>. Acesso em: 13 abr. 2018.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Controle concentrado de convencionalidade tem singularidades no Brasil. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-abr-24/valerio-mazzuoli-controle-convencionalidade-singularidades>. Acesso em: 13 abr. 2018.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de (Org.). Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PERLINGEIRO, Ricardo. A justiça administrativa brasileira comparada. Disponível em: <https://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/1646/1593>. Acesso em: 13 abr. 2018.

PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

SADEK, Maria Teresa Aina Sadek. Poder Judiciário. In: GIOVANNI, Geraldo di; NOGUEIRA, Marco Aurélio (Orgs.). Dicionário de Políticas Públicas. 2. ed. 1. reimp. São Paulo: Editora UNESP, 2015.

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Sobre os autores
Alberto Nogueira Júnior

juiz federal no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutor em Direito pela Universidade Gama Filho, professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor dos livros: "Medidas Cautelares Inominadas Satisfativas ou Justiça Cautelar" (LTr, São Paulo, 1998), "Cidadania e Direito de Acesso aos Documentos Administrativos" (Renovar, Rio de Janeiro, 2003) e "Segurança - Nacional, Pública e Nuclear - e o direito à informação" (UniverCidade/Citibooks, 2006); "Tutelas de Urgência em Matéria Tributária" (Forum/2011, em coautoria); "Dignidade da Pessoa Humana e Processo" (Biblioteca 24horas, 2014); "Comentários à Lei da Segurança Jurídica e Eficiência" (Lumen Juris, 2019).

Kátia Saba Laranjeira

Advogada, Analista de Sistemas e Matemática com pós graduação na área tributária, de sistemas e administração

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA JÚNIOR, Alberto ; LARANJEIRA, Kátia Saba. Inconstitucionalidade da transferência de depósitos judiciais instituída pela Lei n. 13.463/2017. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5536, 28 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66684. Acesso em: 21 dez. 2024.

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