INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo demonstrar que o rol de hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento não deve ser considerado como taxativo, mas, sim, meramente exemplificativo, permitindo, consequentemente, interpretação extensiva, pelo operador do direito, quando da ocorrência do caso concreto.
Devemos deixar registrado, desde já, que tal entendimento, no presente trabalho, ficará adstrito, exclusivamente, à hipótese contida no inciso XI, do art. 1.015, da Lei 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil, que trata da possibilidade de interposição de agravo de instrumento quando houver, segundo o entendimento do juiz, por meio de pronunciamento de cunho decisório, que resolve questão incidente, também chamada de decisão interlocutória[2], redistribuição do ônus da prova, disciplinado pelo disposto no § 1.º, do art. 373, desse mesmo diploma legal.
A justificativa do presente estudo é demonstrar que esse dispositivo pode ser interpretado de maneira extensiva, permitindo, assim, a interposição desse reclamo quando a decisão interlocutória versar sobre a inversão do ônus da prova, tratada pelo art. 6.º, VIII, da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1.990, o Código de Defesa do Consumidor[3], porque idêntica a sua finalidade no processo civil.
Do estudo aprofundado do Código de Processo Civil, e não apenas a questão que será aqui estudada, percebemos que o legislador buscou dar maior celeridade à tramitação dos processos, sem que isso pudesse resultar, do seu ponto de vista, na inobservância dos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e contraditório, consagrados pela Constituição Federal de 1988, mais precisamente no texto do art. 5.º, LV[4].
Entretanto, ao analisarmos as hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento, descritas no rol do seu art. 1.015, percebemos que o legislador acabou “limitando”, indevidamente, as hipóteses do cabimento deste recurso, conforme trataremos a seguir.
2. DO CABIMENTO DO RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NO PROCESSO CIVIL
Sabemos que o recurso de agravo de instrumento, no ordenamento jurídico pátrio, é o remédio processual adequado à impugnação das decisões interlocutórias, proferidas pelos magistrados de primeira instância, tanto na fase de conhecimento, do procedimento comum, quanto na fase de cumprimento de sentença.
Em outras palavras, podemos dizer que é o meio pelo qual a parte que se sentiu “prejudicada” pode demonstrar a sua irresignação, perante a segunda instância, objetivando a reforma da decisão do juízo de piso.
Entretanto, com o advento do atual Código de Processo Civil, s.m.j., não se admite a interposição de agravo de instrumento contra qualquer decisão interlocutória. Há necessidade de que a decisão recorrida esteja elencada no rol do art. 1.015, a seguir transcritas: (I) tutelas provisórias; (II) mérito do processo; (III) rejeição da alegação de convenção de arbitragem; (IV) incidente de desconsideração da personalidade jurídica; (V) rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação; (VI) exibição ou posse de documento ou coisa; (VII) exclusão de litisconsorte; (VIII) rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio; (IX) admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros; (X) concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução; (XI) redistribuição do ônus da prova nos termos dartrt 373, § 1.º; e (XIII) - outros casos expressamente referidos em lei.
Luiz Guilherme Marinoni[5], traz entendimento com o qual compartilhamos, no sentido de que a taxatividade do rol do art. 1.015, “não quer dizer, porém, que não se possa utilizar a analogia para interpretação das hipóteses contidas nos textos. O fato de o legislador construir um rol taxativo não elimina a necessidade de interpretação para sua compreensão: em outras palavras, a taxatividade não elimina a equivocidade dos dispositivos e a necessidade de se adscrever sentido aos textos mediante interpretação.”
No mesmo sentido, FREDIE DIDIER JR. e LEONARDO CARNEIRO DA CUNHA[6], entendem que o rol elencado no art. 1.015 é taxativo. Contudo, segundo eles, “a taxatividade não é, porém, incompatível coma interpretação extensiva. Embora taxativas as hipóteses de decisões agraváveis, é possível interpretação extensiva de cada um dos seus tipos.”
Ainda, segundo esses mesmos autores, “a interpretação extensiva opera por comparações e isonomizações, não por encaixes e subsunções. As hipóteses de agravo de instrumento são taxativas e estão previstas no art. 1.015 do CPC. Se não se adotar a interpretação extensiva, corre-se o risco de se ressuscitar o uso anômalo e excessivo do mandado de segurança contra ato judicial, o que é muito pior, inclusive em termos de política judiciária.”
O objeto do nosso estudo, portanto, conforme mencionado alhures, diz respeito, exclusivamente, à hipótese prevista no inciso XI, porquanto demonstraremos a possibilidade de interpretação extensiva deste dispositivo, sem prejuízo da análise aprofundada das demais hipóteses, oportunamente.
Diante do caso concreto, o operador do direito deve estar bem atento às hipóteses delimitadas no rol do art. 1015, do Código de Processo Civil e, quando a decisão interlocutória proferida pelo magistrado, de primeira instância, não se amoldar em qualquer delas, o momento adequado à demonstração do seu inconformismo se dará em sede de preliminar de recurso de apelação[7], por força da determinação do art. 1009, § 1.º, do mesmo diploma legal, tendo em vista que para estes casos não haverá a ocorrência da preclusão. Acaso haja reforma da decisão interlocutória vergastada, restará prejudicado, por conseguinte, o conhecimento das razões do recurso de apelação, no que tange ao seu mérito propriamente dito.
Ainda que respeitada seja a intenção do legislador, no sentido de buscar maior celeridade ao processo judicial, não nos parece sensato “limitar” as hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento pela possibilidade de se deixar o julgador, de primeira instância, com “poderes” quase que ilimitados, por conta do subjetivismo do seu convencimento, no que se refere às decisões interlocutórias, proferidas no curso do processo, tendentes a causar prejuízos imediatos a partes.
Podemos dizer o mesmo acerca das decisões que versarem sobre o deferimento ou indeferimento do ônus da prova que, conforme veremos adiante, contraria o comando legal, positivado no inciso VIII, do art. 6.º, da legislação consumerista, que determina que o consumidor, no processo civil, deve ter facilitado a defesa de seus direitos.
A facilitação tratada pela lei especial, por si só, permite que haja a interpretação extensiva da hipótese do art. XI, art. 1.015, do Código de Processo Civil. Facilitar não é sinônimo dificultar, muito menos de “postergar” a impugnação dessa matéria apenas no momento da interposição do recurso de apelação, como matéria preliminar, quando já estará encerrada a fase processual, destinada à instrução do feito.
Logo, em hipótese alguma, poderíamos considerar a possibilidade de se tolher o direito de qualquer dos litigantes, em processo judicial, quando da incidência do Código de Defesa do Consumidor, no que se refere à impossibilidade da interposição do recurso de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que verse sobre o deferimento ou indeferimento da inversão do ônus da prova porque, via de regra, as provas são produzidas com o objetivo da formação da convicção do julgador.
Por outro lado, essa limitação também não nos parece adequada pela possibilidade do perecimento da prova a ser produzida judicialmente. Com a atual sistemática, as matérias não abarcadas no rol “taxativo” do art. 1015, do Código de Processo Civil, conforme já esclarecido, deverão ser arguidas em preliminar de recurso de apelação. Porém, não podemos deixar de lado a primeira parte da redação do inciso VIII, do art. 6.º, do Código de Defesa do Consumidor que prevê como direito básico do consumidor, a facilitação da defesa dos seus direitos, em juízo.
Acaso não se entenda pela possibilidade de interposição do recurso de agravo de instrumento, quando a decisão interlocutória versar sobre a “inversão do ônus da prova”, a parte ficará refém da inegável demora no julgamento do seu recurso de apelação que, por si só, poderá acarretar o perecimento da prova, indispensável à tutela do seu direito, sendo certo que, após a sua tramitação no tribunal, uma vez acolhida a matéria preliminar, também necessitará aguardar o retorno dos autos à vara de origem, após a certificação do trânsito em julgado, até que o juízo de primeira instância receba novamente o processo e possa retomar a marcha processual, determinando a inversão do ônus da prova, nos exatos termos do acórdão.
Somente após a observância do comando estabelecido no acórdão pelo juiz e pelas partes litigantes, bem como após a retomada da tramitação do processo com o encerramento da fase instrutória, é que será proferida nova sentença. Tal fato contribuirá, inclusive, com o atraso na tramitação de outros feitos, em decorrência do “retrabalho” por parte Poder Judiciário.
Como dissemos, o retardamento da reforma da decisão que verse sobre a inversão do ônus da prova dará ensejo, muitas das vezes, à possibilidade do perecimento da prova que deveria ser produzida pelas partes litigantes. A consequência lógica que podemos chegar, neste caso, é que o magistrado não terá à sua disposição todos os elementos necessários à formação da sua convicção, essencial à correta aplicação da norma vigente ao caso concreto. Não haverá, nem mesmo com o acolhimento da matéria preliminar de apelação, a efetiva entrega da prestação jurisdicional às partes.
Não se trata, portanto, da mera observância da taxatividade do rol do art. 1015, do Código de Processo Civil, mas, sim, da projeção das consequências fáticas que a não admissão da possibilidade da interpretação extensiva do seu inciso XI acarretará ao ordenamento jurídico como um todo.
Quando o estado não consegue tutelar, de maneira adequada, o bem da vida de seus jurisdicionados, não há como se falar na observância da segurança, da ordem, tampouco da paz social pretendida.
3. DA FORMAÇÃO DA CONVICÇÃO DO MAGISTRADO
3.1. O JUIZ COMO DESTINATÁRIO DAS PROVAS PRODUZIDAS NO PROCESSO
Segundo os ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior[8], “todos os pretensos direitos subjetivos que podem figurar nos litígios a serem solucionados pelo processo se originam de fatos (ex facto ius oritur). Por isso, o autor, quando propõe a ação, e o réu, quando oferece sua resposta, hão de invocar fatos que procurem justificar a pretensão de um e a resistência do outro. Do exame dos fatos e de sua adequação ao direito objetivo, o juiz extrairá a solução do litígio que será revelada na sentença.”
Marcus Vinícius Rios Gonçalves[9], por sua vez, ensina que “a prova é destinada a convencer o juiz, a respeito dos fatos controvertidos. Ele é o destinatário da prova. Por isso, sua participação na fase instrutória não deve ficar relegada a um segundo plano, de mero espectador das provas requeridas e produzidas pelas partes: cumpre-lhe decidir quais as necessárias ou úteis para esclarecer os fatos obscuros. Mas ele nem sempre terá condições de saber que provas são viáveis. Por exemplo: se há testemunha do fato, se existe algum documento que possa comprová-lo. Por isso, a produção da prova deverá resultar de atuação conjunta das partes e do juiz. Cumpre àqueles, na petição inicial, contestação, fase ordinária e fase instrutória requerer as provas por meio das quais pretendam convencer o juiz. E a este decidir quais são efetivamente necessárias e quais podem ser dispensadas, podendo determinar prova que não tenha sido requerida, ou indeferir prova postulada, cuja realização não lhe pareça necessária.”
Percebemos, então, que o magistrado, por ser o destinatário das provas produzidas pelas partes litigantes, somente proferirá sentença após a formação da sua convicção, tal como previsto no art. 369, do Código de Processo Civil, tanto que ele poderá, conforme a redação do art. 370[10], do mesmo diploma legal, de ofício ou a requerimento da parte, “determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.”
A procedência total, a procedência parcial ou até mesmo a improcedência dos pedidos formulados na petição inicial, estão intimamente ligadas à convicção do juiz que, por sua vez, decorre das provas que as partes litigantes foram capazes de produzir no processo.
4. REGRA GERAL DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO CIVIL
Segundo José Eduardo Carreira Alvim[11], o ônus probatório “corresponde ao encargo que pesa sobre as partes, de ministrar provas sobre os fatos que constituem fundamento das pretensões deduzidas no processo.”
Ainda, conforme seus ensinamentos, “ônus não é o mesmo que obrigação, mas apenas um encargo que pesa sobre a parte. A obrigação é sempre em relação a alguém, havendo uma relação jurídica entre dois sujeitos, em que a satisfação da obrigação é do interesse do titular do direito. O ônus, por seu turno, é em relação a si próprio, em que satisfazer o ônus é interesse do próprio onerado. Assim, o devedor tem uma obrigação para com o credor; enquanto o réu tem o ônus da contestação.”
Para Sérgio Pinto Martins[12], ônus “é o encargo de a parte provar em juízo suas alegações para o convencimento do juiz e, por isso, não é uma obrigação ou um dever, mas um encargo que a parte deve se desincumbir para provas as suas alegações. A parte corre o risco de não ver provadas as suas alegações e não ser vencedora na sua postulação.”
Por força da disposição contida no art. 373, I e II, do Código de Processo Civil, em juízo, tanto o autor quanto o réu, têm o ônus da produção de provas. Assim, incumbe ao autor a comprovação dos fatos constitutivos do seu direito e, ao réu, a demonstração dos fatos que impeçam, modifiquem ou até mesmo, extingam o direito do autor.
Desse modo, podemos dizer que as partes litigantes, no curso do processo, têm o ônus de produzirem as provas acerca daquilo que alegaram, seja na petição inicial, seja na contestação, com vistas a obtenção de um desfecho favorável ao seu direito.
Não se trata de uma obrigação. Porém, de acordo com os ensinamentos doutrinários trazidos, percebemos que a não desincumbência do ônus da prova, por parte do autor, ou do réu, dependendo do caso concreto, acarretará consequências desfavoráveis, quando da decisão do magistrado, na medida em que restará fragilizada a tutela, pelo estado, do direito posto em juízo.