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O dano moral na investigação criminal

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03/05/2005 às 00:00
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2 - Como os acusados são tratados pelos agentes estatais

Em verdade, como ressaltado acima, está havendo uma gritante inversão de valores, notadamente dos valores processuais, que devem funcionar como garantias do cidadão. Valores como isonomia das partes (art. 5º, caput, da CF/88), direito ao contraditório e à ampla defesa (inciso LV, do art. 5º, da CF/88), direito à individualização das penas (inciso XLVI, do art. 5º, da CF/88) (,) e o direito ao mais importante dos princípios (constitucional e processual penal) que devem vigorar e lançar seus efeitos dentro da esfera penal, qual seja, o princípio da inocência (inciso LVII, do art. 5º, da CF/88), já acima descrito.

Estamos, constantemente, assistindo a esta mutação teratológica da realidade, onde os princípios fundamentais da pessoa humana estão sendo conspurcados em nome das formalidades vazias e banais, em nome do sensacionalismo, em nome da tirania, em nome de uma realidade de injustiças que, sinceramente, não se justifica. Quantos agentes estatais, dentre os quais, Delegados de Polícia, estão deixando muito a desejar nos procedimentos investigativos? Quantos policiais militares, nos mais diferentes pontos do país, não agem como animais irracionais, usando de truculência no processo investigativo, arrancando confissões dos acusados (meros averiguados), por meio da tortura e da selvageria? Quantos interrogatórios não têm sido forjados e obtidos por meio da dor e do sangue dos acusados? Quantos porões de Delegacias não têm sido usados para a encenação das mais variadas carnificinas? Quantos gritos de socorro não têm sido abafados, sufocados e reprimidos, de vítimas indefesas do sistema que as prometeu defender a qualquer custo? Este o quadro caótico e bárbaro em que a sociedade brasileira se encontra inserida. Policiais que vendem sua honra e dignidade por propinas das mais variadas ordens. A ditadura no Brasil nunca acabou, apenas camuflou-se sob o manto de uma pseudo-democracia. Uma democracia falha, hipócrita e mentirosa, que dá voz aos ricos e sufoca o clamor dos pobres e humildes. Uma democracia mesquinha, que atende aos interesses dos economicamente mais abastados, em detrimento da ampla maioria de despossuídos, que rastejam na miséria produzida pelo lamaçal da prostituição moral dos políticos que os representam. Deve-se ter grande cuidado ao se investigar uma notícia que chega à Delegacia, a chamada notitia criminis, pois, o alvo da investigação criminal é uma pessoa, um ser humano, e não uma “coisa”, um simples objeto sem valor e, atrelado a esta pessoa (objeto da investigação) está sua intimidade, sua vida privada, sua honra, sua imagem e sua família. Que as autoridades policiais não se esqueçam disto.

O simples fato de um acusado adentrar as portas de uma Delegacia para depor, não autoriza, a quem quer que seja, a desferir qualquer julgamento contra aquela pessoa, posto que não há a certeza de nada, quanto à imputação que lhe é direcionada, vez que o conjunto probatório mal está formado, ou melhor, nem mesmo foi iniciado, e, mesmo que se saiba que determinada pessoa é culpada pelo cometimento de um determinado ilícito, quem o homem, o mero mortal, pensa que é para julgar seu próximo? Não nos esqueçamos de algo inegável: uma variabilidade de fatores sociológicos muito amplos leva as pessoas a tomarem atitudes, ou a praticarem atos nem sempre desejados, mas que são levadas a fazer o que fizeram porque nunca aprenderam a fazer de outro modo, porque a sociedade nunca lhes deu um chance. Quando uma determinada conduta passa a existir no mundo fenomenológico, a mesma deve ser analisada com muita parcimônia e racionalidade.

Quem julga por padrões moralistas equivocados (notadamente os de cunho religioso) não tem certeza de que, se nas mesmas condições e sob os fatores psíquicos que incidiram sobre o acusado, não teria feito o mesmo, ou pior. Nossas imperfeições morais ainda são muitas e variadas, o que nos retira o direito de julgar a quem quer que seja. Claro que os comportamentos ilícitos não podem ficar impunes. Por isso, os povos civilizados estabelecem seus regramentos jurídicos que, em última análise e, pelo menos do ponto de visto sócio-filosófico, expressam a vontade de todos os membros da sociedade na qual aqueles regramentos vigem. Mas, mesmo o julgamento judicial de uma pessoa, deve ser cercado de garantias, como a de se assegurar à mesma o direito de se defender, de produzir todas as provas que a tentem inocentar da acusação que lhe é imputada, de ser considerada inocente até uma decisão final da qual não caiba mais qualquer espécie de recurso, bem como o direito à duração razoável do processo, para que este não se prolongue pela eternidade. Estas algumas das garantias asseguradas pelos povos civilizados aos seus membros. Outras garantias há e outras ainda podem vir a ser criadas, no futuro, dependendo das necessidades criadas pelo desenvolvimento tecnológico dos povos. Portanto, todo julgamento deve ser racional, equilibrado e garantista[2].

Procedimentos investigativos equivocados podem criar novos problemas. O que se nota é que as pessoas, mesmo que absolvidas, não estão isentas de uma pena. Pasmem: mesmo sendo inocente, o indivíduo não se escusa de uma pena, muito mais severa, muito mais infamante do que as penas legalmente estabelecidas, a pena do descaso, da humilhação, da vergonha e do escárnio público, imposta por uma sociedade que não perdoa e que nunca esquece.

Diligências mal conduzidas podem marcar indelevelmente a vida de uma pessoa.

Neste sentido, o douto professor Marco Antonio Vilas Boas, assim se expressou em sua copiosa obra, já citada, nestes termos:

A ação oficial, nestes parâmetros, poderá formar novos degenerados. Se a iniciativa estatal cria seus monstros, deve criar também seus antídotos. A investigação começa por instituir a primeira pena ao indivíduo, haurida que é pela reprovação da comunidade. Muitas vezes, este tipo extra-oficial de punir torna-se mais grave que a punição atribuída pelos órgãos competentes. Assim, começa-se a investigação como uma sobre-pena, pouco se importando com o resultado final ou mesmo se o investigado ou réu vai ou não ser inocentado. Já a pena, como um resultado da prova condenatória comprovada, não deixa de ser um meio. Enfim, prova, pena e sentença não passam de singelos meios para atingir-se um fim último: a reeducação. Todos estes estágios percorrem os caminhos da certeza. Assim, investigação, prova, certeza, sentença e pena constituem-se em simples acessórios. Não há meio nem acessório que possa se sobrepor ao principal, nos terrenos da personalidade do homem, protagonista e sujeito primeiro da investigação e da prova. Todavia, o que se vê, sem sombra de dúvida, é que o personagem principal decaiu de seu alto degrau humano e passou a ser um simples objeto da investigação, subordinado quando deveria ser o subordinante. Há a contradição, pois, o sujeito que deveria ser em si, a finalidade, passa a ser o próprio objeto a investigar, em completo desmonte de seus direitos de personalidade.

(...)

Em últimas palavras, não há dúvida de que a investigação criminal pode ser uma fábrica de danos, das mais eficientes. Se o indivíduo é absolvido, sobram-lhe os efeitos mais perversos da própria inocência, obrigado a assentar-se ao banco dos réus, custear profissionais para sua defesa, suportar noites mal dormidas e ter seu nome na vitrina da opinião pública que jamais perdoa.

(...)

Relativamente ao inquérito policial, uma preocupação básica relevante não pode desmerecer um breve comentário. Quem dá início à investigação tem a grande responsabilidade de não criar vítimas.” (Vilas Boas, 2003, p. 8-9)

A última frase do texto transcrito possui um peso e uma responsabilidade aos agentes policiais de grande transcendência. O professor Marco Antonio Vilas Boas disse: “Quem dá início à investigação tem a grande responsabilidade de não criar vítimas”. Diante da profundidade da sentença enunciada, pergunto: em quantos procedimentos investigativos, o investigado, abruptamente, não se transformou em vítima? Vítima da tirania, das investigações mal conduzidas, vítima dos pré-conceitos e dos pré-julgamentos. Certamente, em um sem número de casos. Esta é a sobre-pena, alertada pelo professor Marco Antonio Vilas Boas. Uma pena extra-oficial, extra-humana, extrassensível. Uma punição desumana, mesquinha, ignóbil e cruel, mas que é praticada a todo o momento. As atitudes mais vis, cruéis e ignóbeis são praticadas pelos que detém o poder, pelos que estão nos altos cargos, mas, ficam encobertos pela mediocridade, pela propina bem paga e, somente de forma esporádica, surgem como escândalos, mas, surgem apenas como instrumento de disputa pelo poder, nada mais. Fatalmente o escândalo será esquecido, pois, não fomos educados para preservar a informação, mas, para simplesmente, ouvi-la e ignorá-la. Isso quando se trata dos que detém e exercem o poder. Há uma frase que diz que o jornal de hoje embrulha o peixe na feira de amanhã.

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Entretanto, a situação do homem comum, do que trabalha e paga seus impostos, do que se submete às infindáveis filas do sistema de saúde, um sistema degradado e doente que o país mantém é diametralmente oposta. São humilhados, marcados a ferro e fogo e perseguidos pela boca infamante de uma sociedade hipócrita e mesquinha.

Quem passou por esta situação, jamais poderá esquecê-la e não por falta de força de vontade, não porque a pessoa não queira esquecer, mas sim, e fundamentalmente, porque ela não pode. Estas situações produzem em nossas almas feridas profundas, feridas que sulcam e transfixam nossos sentimentos. Para os que batem e humilham, o esquecimento pode ser fácil e até conveniente, mas, para os que apanham e são humilhados, sempre resta a dor dos hematomas que nunca param de doer. Uma alma dilacerada pode levar muito tempo para se recompor, e isso, quando a recomposição dos pedaços nos quais a mesma se fracionou é possível. Há pedaços que, indiscutivelmente, nunca mais se juntam. Fica a fissura a demonstrar uma alma combalida pela violência da indiferença, do desrespeito e da ignorância humana.

O procedimento investigativo, realizado pelas autoridades policiais é um instrumento informativo, que deve ser conduzido de tal forma a angariar provas que, de certa forma, possam dar uma visão panorâmica do que verdadeiramente possa ter ocorrido, confirmando ou infirmando a notitia criminis. A Delegacia é um ambiente destinado a receber a notitia criminis, processar as informações, determinar que os agentes policiais saiam a campo, na coleta das provas, sempre se pautando pelos princípios fundamentais garantidores da dignidade da pessoa humana, e tudo isso, sob a supervisão de uma autoridade superior, ou seja, o Delegado de Polícia, que preside o Inquérito Policial. O Delegado pode até ter sua opinião pessoal sobre o caso que lhe é apresentado e, evidente que terá, posto tratar-se de um ser humano, dotado de razão e vontade própria, entretanto, esta opinião pessoal não pode interferir no andamento e condução do inquérito policial. Somente o juiz julga, e isso, consoante a legislação e as provas carreadas aos autos.

Assim, não compete às autoridades policiais emitirem qualquer tipo de julgamento em relação à pessoa que esteja sendo averiguada, posto que, apenas em tese, a mesma pode ter cometido algum ato contrário à lei. A investigação sempre parte de uma hipótese. A hipótese não traduz juízo de certeza.

E o que é a hipótese? A hipótese, consoante o léxico é: Filos. Suposição que orienta uma investigação por antecipar características prováveis do objeto investigado e que vale, quer pela confirmação dessas características, quer pelo encontro de novos caminhos de investigação; hipótese heurística. Filos. Proposição que se admite de modo provisório como princípio do qual se pode deduzir um conjunto dado de proposições[3]. Veja a primeira estrutura frásica: “suposição que orienta uma investigação”, portanto, a hipótese é uma suposição. E o que vem a ser uma suposição? Novamente, recorrendo ao mesmo léxico, temos que suposição significa: Ato ou efeito de supor, e supor é justamente valer-se da conjetura, da presunção, da imaginação. Nem sempre a imaginação corresponde à verdade. Aquilo que é engendrado no campo dos sonhos, do imaginário, nem sempre corresponde à realidade fenomenológica que se está investigando. No campo onírico tudo é possível. Pessoas flutuam, as nuvens são feitas de algodão, e tudo o mais. Julgar uma pessoa, julgar um ser humano, requer muito mais do que meras hipóteses e meras suposições. Exige, acima de tudo, certeza.

Muitos agentes policiais têm tratado meros suspeitos como criminosos culpados, como se já estivessem cumprindo pena e com sentença penal transitada em julgado. É, deveras, interessante e estarrecedor como a sociedade vem passando por esta inversão drástica de valores, ressalte-se mais uma vez. Quantos policiais militares, também agentes estatais, que, no momento do atendimento de uma ocorrência, não transformam o suspeito em objeto de suas frustrações, inclusive, agredindo fisicamente estas pessoas? Essa é a polícia que está destinada à segurança da população? Que segurança estes policiais podem oferecer? Mormente, quando são um risco para eles mesmos? Um total despreparo é o que se verifica na formação profissional destes agentes estatais. Isso, quando não pensam que estão acima da lei. Sinceramente, esta realidade tem que mudar. O destino e a manutenção da harmonia social dependem disso, ou seja, do abandono destes pseudo-valores, voltando-se, urgentemente, à observância obrigatória dos princípios inerentes à dignidade da pessoa humana.

O homem é o sujeito da investigação e não seu objeto. Coisas não têm sentimentos, mas, pessoas sim. Pessoas sentem, se emocionam, se afligem, choram, tem medo, raiva, ansiedade. Ninguém pode avaliar o preço de uma noite de sono tranquilo. Somente aqueles que já perderam uma noite de sono, que a passaram em claro, com medo, com pavor, com raiva pela acusação falsa que pesa nos ombros é que sabem o valor desta noite perdida. Nenhuma soma em dinheiro, prazer ou luxo podem compensar ou equivaler a uma noite de sono tranquilo. Somente pessoas insanas podem pensar em tal barganha.

Sinceramente: as pessoas deveriam se sensibilizar mais pelo sofrimento alheio, pois, o sofrimento de nosso semelhante hoje, pode ser o nosso, amanhã.

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Sobre o autor
Rodrigo Mendes Delgado

Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; [email protected])

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELGADO, Rodrigo Mendes. O dano moral na investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 667, 3 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6673. Acesso em: 22 dez. 2024.

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