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O dano moral na investigação criminal

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03/05/2005 às 00:00
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3 - O Bom senso e o respeito pelas garantias constitucionais

O bom senso. Eis uma realidade tão pouco percebida e, ainda mais, tão pouco praticada pelo homem moderno. As coisas se tornaram tão dinâmicas e, ao mesmo tempo, tão desumanas, que o homem se esqueceu de que há três regras fundamentais de sabedoria, que devem nortear qualquer decisão, quais sejam: 1ª) nunca tome atalhos na vida; 2ª) nunca seja curioso e 3ª) nunca tome decisões estando sobre a influência de sentimentos fortes como a raiva, a ansiedade e a paixão.

As pessoas andam tão sem tempo, que se esqueceram de que, qualquer ato de reflexão exige o transcurso do tempo necessário para que as ideias se organizem e o melhor caminho seja seguido. Diante disso, desta ausência de tempo, se precipitam. E ao se precipitarem, acabam tomando decisões que findam por ocasionar ainda mais transtorno. O desenvolvimento dos mais variados recursos tecnológicos deveria ter gerado ao homem moderno um aumento em seu tempo disponível, para que o mesmo se dedicasse a assuntos de cunho filosófico, buscando entender a si mesmo, pois, somente quanto alcançar o auto-entendimento é que terá condições e recursos de entender o Universo do qual faz parte. A máquina deveria fazer o trabalho pesado, propiciando ao homem moderno dedicar-se mais a si mesmo. Mas, o que ocorreu, infelizmente, foi que a máquina absorveu o homem, “coisificando[4]” o mesmo.

Se formos analisar com parcimônia a estrutura do Código de Processo Penal, ver-se-á que, diante dele, o acusado deve merecer o status de pessoa intocável, até que se prove, de forma cabal e sem a menor sombra de dúvidas, que o mesmo realmente praticou o delito cuja acusação pesa sobre o mesmo. Todas aquelas garantias foram criadas e encartadas no ordenamento jurídico, justamente para que o princípio maior, qual seja, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana[5] da fosse seguido à risca.

Infelizmente, nosso ordenamento jurídico vem passando por uma verdadeira fase de discrepâncias, de contrassensos, e de ilogicidades, posto que, as normas criadas não estão sendo seguidas. O mesmo Estado que prometeu zelar por seus administrados, que prometeu instituir e salvaguardar a ordem e a paz sociais, por meio da proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, vem falhando em sua promessa desde longa data. Por meio do Contrato Social, contrato supremo muito bem descrito e analisado por Jean Jacques Rousseau, o Estado prometeu a cada cidadão, em troca da perda de parcela de sua inestimável liberdade, em zelar pela integridade da pessoa humana, em todos os seus vértices e desdobramentos, desde o mais singelo, até o mais complexo dos direitos fundamentais, sem distinção, sem discriminação, sem limitação, sem discursos hipócritas e sem demagogia.

E é pela luta destas garantias fundamentais que empenhamos todo nosso tempo para a pesquisa, a análise, o diálogo e a reflexão. Somente através das políticas adequadas será possível uma minimização da violência e da criminalidade reinante em nossa sociedade.

Ainda nos causa grande tristeza a visão que as pessoas têm dos que são condenados a cumprir suas respectivas penas (restritivas de direitos e/ou privativas de liberdade), condizentes com a modalidade delituosa em que foram aprioristicamente enquadrados, julgados e condenados. A Opinião Pública, como ressaltado acima, é a sobre-pena, que nunca cessa. As pessoas têm a visão equivocada de que condenado tem que sofrer mesmo, tem que pagar, que apodrecer na cadeia. Mas, o que esta mesma sociedade se esquece é que ela própria é uma das responsáveis pelo criminoso real e pelo criminoso em potencial. A sociedade cria seus doentes e depois vira as costas para os mesmos.

Este processo oncogênico da criminalidade tem suas raízes lá na abolição do regime escravocrata. A liberdade do negro não representou, na mesma medida e intensidade, sua reintegração ao seio social que outrora o escravizava, muito pelo contrário, o processo de libertação do escravo representou seu abandono à própria sorte. Malvisto e malquisto pela sociedade que o “libertava”, foi obrigado a viver na margem da sociedade burguesa que aflorava. Não se pode perder de vista o fato de que, naquela época, o negro ainda era visto como coisa, como “res”. Foi liberto dos grilhões de ferro da escravidão, mas, preso novamente pelos grilhões imorais da indiferença, da discriminação, do descaso, da violência étnica sem limites.

Desta forma, inegavelmente, foi a sociedade que hoje reclama e clama por justiça quem, no passado, fez as escolhas e traçou os caminhos pelos quais foi possível chegar-se ao ponto (caótico) no qual se chegou nos dias atuais. Nós, enquanto seres integrantes da sociedade e enquanto pessoas que escolhem, pelo voto, seus representantes é que fizemos as escolhas equivocadas que, nos dias atuais, tantos transtornos nos causa. Somos nós que, dia após dia, construímos os degraus que deveremos subir amanhã, rumo à nossa evolução, ou o precipício no qual quedaremos, fatidicamente, rumo ao nosso retrocesso. Tudo na vida é um ato de escolha. Certa vez Einstein disse:

A vida é como jogar uma bola na parede:

– Se for jogada uma bola azul, ela voltará azul;

– Se for jogada uma bola verde, ela voltará verde;

– Se a bola for jogada fraca, ela voltará fraca;

– Se a bola for jogada com força, ela voltará com força.  Por isso, nunca “jogue uma bola na vida” de forma que você não esteja pronto a recebê-la. “A vida não dá nem empresta; não se comove nem se apieda. Tudo quanto ela faz é retribuir e transferir aquilo que nós lhe oferecemos.

Albert Einstein

E aqui necessário se faz relembrar as palavras de Antoine de Saint-Exupèry, na obra “O Pequeno Príncipe”: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Somos nós quem construímos os rumos da humanidade. E, se hoje a sociedade se encontra no sistema caótico em que está é porque alguém, ou melhor, todo um conjunto de pessoas fez, no passado, as escolhas erradas. Não permitamos que estas mesmas escolhas erradas sejam refeitas.

Assim expôs sua visão, o professor Marco Antonio Vilas Boas:

A sociedade brasileira, historicamente, criou as condições para a marginalidade e não é justo que jogue as pedras sem primeiramente solucionar o foco da doença contagiosa. Foi instituída a favelização sem oferecer empregos e meios de sobrevivência aos excluídos, negros, brancos e mestiços. Há necessidade de repressão ao crime – isto ninguém duvida – porém, com critérios humanitários e batendo ao peito: mea culpa. A sociedade brasileira tem esta inestimável dívida para com os excluídos que ela própria criou, principalmente os negros. Não existissem tantas explorações com base na legalidade, tantas misérias ocasionadas pela má distribuição de renda e tanta omissão no atendimento ao povo menos afortunado, certamente as prisões não estariam abarrotadas e o problema carcerário teria um enfrentamento menos hipócrita e mais eficiente. A reeducação, como meta, passaria a ser uma realidade, não para daqui a um milênio, mas para o amanhã próximo. (Boas, 2003, p. 91)

Não se tente justificar a injustiça sobre as bases frágeis no falso medo. As leis rígidas, em realidade, elaboradas pela elite, tendem apenas a tentar mascarar a realidade, a realidade de que é esta mesma elite, tão pseudo-apavorada, pseudo moralmente evoluída e pseudo politicamente correta, a verdadeira responsável pelas mais avassaladoras e repugnantes misérias humanas. E entender esta realidade é, inegavelmente, uma questão de bom senso. Entender a realidade e, entendendo-a, compreendê-la e, compreendendo-a, guiar-se consoante este entendimento é princípio salutar de bom senso e de humanidade.

Todo efeito tem uma causa que o gerou. Esse fenômeno é conhecido como Lei de Ação e Reação. Nada vem do nada, tudo o que existe vem de algo pré-existente. Este enunciado é consectário da Teoria da Biogênese que, em Biologia, explica a origem da vida no Planeta Terra. Nas relações jurídicas, igualmente, tudo tem uma origem, uma causa, geradora das mais variadas situações, que exigem o concurso das leis para a resolução dos problemas surgidos. Poderíamos chamar isso de Teoria da Biogênese Jurídica. Todo ato jurídico pressupõe a manifestação de uma vontade ou a execução de um determinado ato para que tenha seu nascedouro. Quando o Estado, como dito acima, avocou a si o direito de administrar a vida das pessoas, igualmente, no mesmo sentido e na mesma intensidade, trouxe a si as responsabilidades inerentes a esta função. Uma vez que estamos num Estado de Direito, isso está a significar que, o mesmo Estado que promulga leis, também deve se submeter a elas, caso contrário, instituiríamos o despotismo ou a tirania, tal qual ocorreu em França da Idade Média, com Luiz XIV, quando o mesmo disse “o Estado sou eu”. Desta forma, se a responsabilidade civil é o ramo do direito que liga cada pessoa às consequências de seus atos, liga, outrossim, o Estado, a todos os resultados lesivos que, no desempenho de seu desiderato, tenha causado a outrem.

Com muito mais razão, em sede de Direito penal, esta responsabilidade irá aflorar com mais intensidade, posto que, quando a persecutio criminis, ou persecução penal é posta em movimento, a mesma coloca em risco, direitos personalíssimos impostergáveis do ser humano, como dignidade humana, intimidade, honra, vida privada pessoal e familiar, dentre outros direitos. A persecução penal gera para o Estado, uma grande carga de responsabilidade, posto que, o potencial lesivo é bem maior. Quando o Estado se lança na persecução penal de determinado indivíduo, os holofotes da indiscrição são colocados sobre o mesmo, reluzindo e expondo-o em todas as direções.

Como já ressaltado, o procedimento investigativo, realizado na fase inquisitorial, que é o momento em que se procede à coleta de provas para a formação do arcabouço acusatório, visando apurar a autoria e materialidade delitivas, transforma-se em momento no qual os maiores deslizes podem ser cometidos pelos agentes estatais. É, certamente, o momento no qual a vida do investigado é revirada de cabeça para baixo. Inúmeras perguntas são feitas, muitas pessoas são interrogadas e, neste orbe de pessoas entram os familiares, os colegas de trabalho, os amigos próximos e todos aqueles que possam ter visto ou saibam de alguma coisa relacionada à notícia do crime. Os familiares saem humilhados, expostos que são à opinião pública, já aos amigos, a estes se abre a oportunidade para as dúvidas, as incertezas, as indagações sem fim. Perguntas do seguinte jaez: Será que fulano fez isso? Será que a pessoa em quem eu tanto confiava seria capaz de tal ato? Será que o mesmo é culpado? Posso continuar confiando nesta pessoa? Será que eu serei a próxima pessoa a ser enganada?

Num mundo onde a amizade perde terreno para o egoísmo, para o egocentrismo, para a vaidade descomedida, pequenas dúvidas, infelizmente, fazem naufragar grandes amizades. Se bem que, em verdade, quando uma amizade naufraga, a verdadeira amizade nunca existiu de fato. Vejam que interessante: você faz tudo pelas pessoas, dá o que você tem e o que você não tem. Ajuda a todos indistintamente, dá o suor, e luta lado a lado com seu companheiro do dia a dia, não mede esforços para fazer sempre o melhor e da melhor forma possível. Até aí você é elogiado e aclamado. Mas, quando uma dúvida surge, quando alguma calúnia pesa sobre seus ombros você é imediatamente julgado, condenado, vilipendiado, e posto de lado. E mesmo que você prove sua inocência, as pessoas não fazem absolutamente nada para resgatar aqueles sentimentos belos da amizade e do amor. Realmente, como dizia Einstein: Há duas coisas infinitas: o Universo e a tolice dos homens.

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Somente as amizades verdadeiras possibilitam que se possa suportar um amontoado de coisas que se fazem presentes em nossas vidas a todo o momento.

Mas, retomando a discussão inicial. Quando o processo investigativo encontra-se em curso, as autoridades responsáveis pela presidência do mesmo devem movimentar-se com o maior cuidado possível. Cada passo deve ser meticulosamente dado, justamente, para se evitar nulidades desnecessárias, que são sempre praticadas quando se desrespeita direitos fundamentais da pessoa humana.

Desta forma, no momento da investigação, o bom senso deve ser o maior guia dos investigadores. Pautar-se pela lógica e pelo bom senso significa não acreditar em julgamentos preconcebidos ou meros indícios, bem como em não permitir que a comoção social ou o sensacionalismo da mídia possam interferir na apuração da verdade dos fatos[6], que é a verdade formal. O emocionalismo, bem como o sensacionalismo são apenas falsas realidades que conspurcam o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. O bom senso, numa singela definição, traduz-se na necessidade do respeito aos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, bem como no exato entendimento e compreensão da realidade fenomenológica ao nosso redor, de tal forma a se evitar os pré-julgamentos, bem como o grande traidor, que atende pelo nome de preconceito.

É muito importante, igualmente, que a autoridade policial não se deixe seduzir pelos holofotes da mídia, deixando aflorar, em seu âmago, o sentimento de autopromoção pessoal e profissional. Inúmeros delegados de polícia, a exemplo de algumas celebridades hollywoodianas, dão a cada passo da investigação criminal, entrevistas coletivas à imprensa, colocando os meios de comunicação de massa, a par de todos os informes e detalhes do caso. Isso não conspurca apenas a lisura e seriedade com as quais o Inquérito Policial deve ser conduzido, mas, fundamentalmente, coloca em risco as garantias constitucionais da vida privada, da honra, da intimidade e, o mais importante, o princípio da presunção de inocência, que devem ser garantidas ao investigado. Assim estabelece o art. 20 do Código de Processo Penal, nestes termos: Art. 20.  A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.

O artigo citado diz que o sigilo será decretado no Inquérito, sempre que tal medida mostrar-se necessária à “elucidação do fato” ou tal providência for exigida no “interesse da sociedade”. Mas, pergunta-se: onde fica o interesse do investigado (ou indiciado)? Não há no processo investigativo a figura do acusado, designação dada ao suposto autor do fato criminoso apenas nos autos da ação penal, porventura, instaurada. Portanto, em nossa opinião, o artigo 20 do Código de Processo Penal necessita de uma atualização constitucional, para que se inclua a decretação do sigilo, no interesse do acusado e visando salvaguardar sua integridade física e moral, bem como em respeito ao precitado princípio constitucional da presunção de inocência.

Portanto, de lege ferenda, o artigo 20 do Código de Processo Penal, em nossa opinião, deveria assim estar (ou ser) redigido: Art. 20.  A autoridade assegurará, no inquérito, o sigilo necessário à elucidação do fato, ou exigido pelo interesse da sociedade, ou ainda o exigir os interesses e segurança do investigado. É a vida do investigado, suposto autor do fato delituoso, que será devassada e exposta ao escárnio público e não a dos membros da sociedade. Alguns podem redarguir, dizendo que, em referida dicção, por nós proposta, do artigo 20 do Código de Processo Penal, deveria, igualmente, estar incluso os interesses da vítima, podendo a autoridade, em decorrência deste permissivo, decretar o sigilo do Inquérito Policial para preservar os interesses desta. Concordamos plenamente com a salvaguarda daquele que, injustamente, foi submetido a um dano, ocasionado pelo comportamento criminoso do autor do fato, mas, os interesses da vítima já se encontram insertos na expressão interesse da sociedade, constante do dispositivo. O que falta mesmo, por parte da lei processual penal é voltar mais seus olhos para os direitos do investigado, que fica desprotegido e lançado numa zona de esfumaçamento, no que diz respeito à garantia e proteção aos seus direitos fundamentais, constitucional e supraconstitucionalmente[7] garantidos.

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Sobre o autor
Rodrigo Mendes Delgado

Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; [email protected])

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELGADO, Rodrigo Mendes. O dano moral na investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 667, 3 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6673. Acesso em: 20 abr. 2024.

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