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A necessidade de uma ciência do direito policial para efetivação de uma atividade policial constitucional

27/06/2018 às 14:13
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É essencial que enxerguemos a atividade de polícia como materialização da soberania de um Estado que tutela e garante os direitos, liberdades e garantias fundamentais de todos os seres humanos.

A evolução do Direito, que acompanha a diuturna mutabilidade da cultura social, faz surgir novos saberes e ramos que se orientam entre as esferas pública e privada. Um deles é a Teoria Geral do Direito Policial, cujo maior desafio para a comunidade científica é a sistematização de uma área de conhecimento policial que fundamente, sob a égide de um sólido Estado Democrático de Direito, sua dimensão normativa, com perspectiva multifacetada pautada por balizadores diversos, como a paz social, a ordem (pública, administrativa e judiciária) e a tutela dos direitos dos cidadãos (em uma ótica eminentemente humanista).

Para tanto, é necessário metodificar a gnose tipicamente policial, superando a defasada visão da abordagem policial como ato de mero conhecimento, para incluí-la como sujeito intrínseco ao processo construtivo do saber científico. Noutros termos, entendemos como essencial justificar cientificamente o exercício policial investigativo, de modo a garantir a legitimidade de sua atuação e evitar que "a descrença do cidadão no direito penal seja refraccionada" a esta atividade (GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro, A cientificidade da actuação policial como garante dos direitos humanos, 2010; p. 15).

Nesse contexto, identificamos o objeto material do estudo científico ora em análise: a atividade de polícia (entendida em sentido amplo, em perspectiva jusconstitucional, jusordinária e jusinternacional - VALENTE, Manuel Guedes, 2015; p. 37), vista como primordial à harmonia humana, à garantia da segurança e ao bem-estar.

De outro lado, atrelado à atividade policial, também é possível aventar a 'segurança' como objeto digno de tutela jurídica em um Estado de Direito material democrático, entendida como instrumento essencial para que se possa ter liberdade (“fim desejável por parte de quem se coloca do ponto de vista do indivíduo” - BOBBIO, Norberto 2000, p. 319)[1]. Nesse sentido, é impossível que um grupo comunitário seja livre (veja-se que os axiomas polícia-segurança-liberdade estão umbilicalmente interligados) e que exista coesão social (núcleo da soberania estatal) sem que haja, conforme ensina o professor Manuel Valente, a edificação do trinômio pensar cultural de um povo, pensar ontológico do ser humano e pensar conceptual de Estado (GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro, Teoria Geral do Direito Policial, 2015; p. 46).

Diante deste quadro, podemos dizer que a cientificidade da atuação policial se justifica e deve ser norteada à garantia dos direitos humanos, de modo que exista um equilíbrio entre a tutela de bens jurídicos e a defesa do criminoso perante a atuação punitiva do Estado. Logo, a polícia "tem de optar pela solução menos restritiva ou onerosa para a esfera de livre actuação dos indivíduos - um imperativo de razão prática que não dispensa a procura da solução mais correcta, mesmo que não seja a liberdade total" (GUEDES VALENTE, Manuel Monteiro, 2015, p. 187).

Verificamos, assim, hodiernamente, a edificação de uma nova polícia (bem diferente de tempos anteriores às Constituições Democráticas, onde mostrava-se opressora, despótica e mero instrumento dos detentores do poder político[2]), que é limitada, em sua atividade preventiva ou repressiva, pelos mandamentos do ordenamento vigente - constitucional e legal. Essa limitação é conditio sine qua non para a "validade do Direito policial, de sentido material (axiológico-normativo-material) e, como tal, fundamento não só da legitimidade instituinte, mas verdadeiramente de validade instituinte” (NEVES, A. Castanheira, 2003; p. 211).

Essa nova polícia requer um novo saber, que envolve a incorporação dos comandos constitucionais atinentes à segurança e à defesa da garantia dos direitos dos cidadãos, de modo que o nómos formação esteja em perfeita sintonia com o nómos saber (materializado pelos baluartes saber-fazer, saber-pensar e saber-saber) (VALENTE, Manuel Guedes,  O(s) saber(es) e a formação como nómos de afirmação dos modelos constitucionais de polícia, 2015, p. 36-37).

É preciso, nesse diapasão, que a atividade policial, em sua concreta pretensão científica, esteja em consonância com a equidade, a harmonia e a dignidade da pessoa humana. Além disso, deve estar submetida a princípios norteadores diversos, como o da realidade (limitador do prazer egoístico e do estado da natureza), da equidade (consecução efetiva do trinômio liberdade, justiça e segurança), da legalidade material, da igualdade, da proporcionalidade (vedação ao excesso), da constitucionalidade (dimensão material da tutela jurídica do homem, através da sujeição dos poderes constituídos à Constituição), da boa-fé, da prossecução do interesse público, da atuação preventiva e, com especial relevância, da humanidade (VALENTE, Manuel, A ciência jurídica como caminho de afirmação e valoração do ser humano, 2013; p. 49-62).

Mutatis mutandis, a submissão da atividade policial aos vetores principiológicos dominantes (de direito material e constitucionais) é essencial à sua legitimidade/validade, uma vez que somente assim é possível chegar ao império da ratio iuris, com a criação de um Direito Policial ancorado no tridimensionalismo jurídico e nos ditames de política criminal. Não se olvida, contudo, que a ciência policial, apesar de ainda estar em processo de consolidação epistemológica, possui uma identidade democrática personalíssima. Portanto, não deve se acorrentar a primados meramente dogmáticos, já que possui autonomia para elaboração de quadro axiológico, doutrinário, filosófico e principiológico próprio.

Resta evidente, por conseguinte, que, com o pensar científico interdisciplinar e humanista, passa-se de uma polícia meramente executora de ordens dos governantes superiores para uma garantidora de direitos dos cidadãos, onde prepondera um olhar crítico finalisticamente conduzido à defesa de um sistema amparado na tetratologia de Ferrajoli (normas legítimas, válidas, vigentes e efetivas - FERRAJOLI, 2005, p. 357-362). Nesse sentido, "a polícia é ou deve ser, hoje, um garante da liberdade do cidadão face às ofensas ilícitas concretizadas e produzidas quer por outrem quer pelo próprio Estado” (VALENTE, Manuel Guedes, Teoria Geral do Direito Policial, 2015, p. 55).

Nesse viés, a polícia assume verdadeira posição soberana, uma vez que visa resguardar aos cidadãos um ambiente livre, seguro e de bem-estar. Porém, sua soberania é limitada, já que “fundada no princípio da vontade popular, com declarações de direitos humanos” (DIPPEL, 2007; p. 61). Assim, o policial responde perante o Estado e também os cidadãos.

Não menos importante, é essencial destacarmos que, em disciplinamento penal, é necessária a cooperação policial nacional e internacional, uma vez que o direito policial "não se confina, hoje, a um espaço territorial exíguo e fixo por fronteiras terrestres" (PEREIRA, Eliomar da Silva, 2015. p. 88).

Com efeito, é preciso que se construa uma ciência policial que erija e se submeta a uma ordem jurídica mista (interna e supranacional legítima) (CANOTILHO e MOREIRA, 2010, p. 799). Enxergando o Direito Policial sob um prisma cosmopolita e transdisciplinar, o doutrinador Manuel Valente preceitua que é preciso que a teoria geral desenvolva um agir de polícia que se enraíze como uma lei universal, mas concomitantemente respeite as diferenças culturais, sociais, econômicas, jurídicas e políticas (Manuel Guedes, A Ciência Policial na Sociedade Tardo-Moderna como fundamento do Estado de direito democrático, 2011, p. 49).

Essa visão do Direito Policial é decorrência lógica de sua atuação enquanto guardiã do Estado democrático de Direito (BOBBIO, 2002, p. 70), garante de direitos humanos e da ordem jurídico-material vigente. Deve a atividade policial, enquanto ciência, portanto, ser a corporificação da vontade popular (entendida em sentido lato), ou seja, pautada em primados de uma convicção epistemológica e axiológica que possam atender às demandas insurgentes dos fenômenos sociais.

Importa-nos destacar, por oportuno, que somos plenamente conscientes da possibilidade latente de falibilidade da atividade policial, mesmo se devidamente pautada por critérios puramente científicos. Entretanto, depreendemos que os riscos de erro tornam-se diminutos quando se busca um saber policial entendido como um todo unificado e integrado, onde se busca exaltar o Direito Penal do fato (objeto), e não do autor. Nessa toada, denota-se imprescindível que os agentes policiais sejam muito bem orientados quanto à Teoria que ora apreciamos, uma vez que, quando no exercício de suas atividades, tornam-se a exteriorização física do Estado e o rosto visível da lei. Deve o policial, desta feita, enquanto agente estatal, entender seu papel de instrumento de concretização de direitos, segurança e liberdade, sem esquecer-se dos balizadores legais/principiológicos de sua atividade. 

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Diante de todo o conteúdo sufragado, concluímos que a edificação de uma sólida Teoria Geral de Direito Policial, com teorização sistematizada do seu objeto e delineamento dos princípios gerais regentes, tem sido essencial para que se consolide uma ciência eminentemente policial.

Com efeito, autonomizar o conhecimento policial como novo saber jusfilosófico permite que a polícia assuma que atua pelo, para e com o ser humano. Assim, os direitos humanos servem como fundamento e limite à atuação policial, o que garante sua legitimidade constitucional e norteia a atividade pela prevenção, e não pela reação.

Ademais, é absolutamente essencial que enxerguemos a atividade de polícia como materialização da soberania de um Estado que tutela e garante os direitos, liberdades e garantias fundamentais de todos os seres humanos. Apenas desta forma será possível fazer com que a atividade de polícia possa ser enxergada como uma atividade de liberdade e não exclusivamente de coação.

Por derradeiro, se pretendemos teorizar e pragmatizar uma polícia adequada aos ditames democráticos, ela necessariamente precisa ser valorizada em todos os seus aspectos (organização, estrutura e função), de modo que tudo que aqui debatemos não fique adstrito apenas à realidade acadêmica.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECCARIA, Cezar -  Dos Delitos e Das Penas. Lisboa: Fundação Calouste GULBENKIAN, 1998. ISBN 972310816X.

BOBBIO, Norberto - Teoria geral da política. A filosofia política e as lições dos clássicos. Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. ISBN 9788535206463.

BOBBIO, Norberto - A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 14.ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2002. ISBN 8535215611.

CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital - Constituição da República Portuguesa Anotada – Vol. I. e Vol. II, 4.ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. ISBN 9789723222869.

DIPPEL, Horst. - História do Constitucionalismo Moderno: Novas Perspectivas. Tradução de António Manuel Hespanha e Cristina Nogueira da Silva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. ISBN 9723112035.

FERRAJOLI, Luigi - Derecho y Razon. Teoria del Garantismo Penal. Tradução de Perfecto A. Ibáñez, Alfonso R. Miguel, Juan Carlos B. Mohino, Juan Terradillos Basoco, Rocío C. Bandrés. 7.ª Edição. Madrid: Editorial Trotta, 2005. ISBN 970-32-4131-X.

PEREIRA, Eliomar da Silva - Introdução às Ciências Policiais- A Polícia entre Ciência e Política. Lisboa: Almedina, 2015. ISBN: 9788563182784.

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes - A Ciência Policial na Sociedade Tardo-Moderna como fundamento do Estado de direito democrático, 2011, In Revista Brasileira de Ciências Policiais. Vol. 2, n.º 2, JUL/DEZ. ISSN: 19811732.

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes - A cientificidade da actuação policial como garante dos direitos humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília: Academia Nacional de Polícia, vol. I, nº I, jan-jun 2010.

VALENTE, Manuel Guedes - O(s) saber(es) e a formação como nómos de afirmação dos modelos constitucionais de polícia. REVISTA BRASILEIRA DE SEGURANÇA PÚBLICA, Ano: 2015 | Volume: 9 | Número: 1, ISSN: 19811659

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes - Segurança (Interna). Um conceito em (re) construção face à consciencialização de bem vital supranacional. Lisboa: VI Congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política - ISCSP/UTL, 2012. ISSN: 19522348.

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes – Teoria Geral do Direito Policial. 5.ª ed. Manuais Universitários: Coimbra: Almedina, 2017. ISBN 9789724070179.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel – Curso de Direito Constitucional. [e-book] 4.ª ed.São Paulo: Saraiva, 2015. ISBN 978850263492-3.

ZEPPELIUS, Reinhold - Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. ISBN 9723107619.


Notas

[1] A liberdade deve ser entendida como um "bem público" (Beccaria, 1998; p. 65). Nesse turno, Bobbio atrela essa idéia ao contrato social de Rousseau, onde houve a transposição do Estado natureza para o Estado legal, com abdicação de liberdades em prol do bem coletivo (BOBBIO, Norberto, 2002; p. 28).

[2] “A perspectiva histórica (evidentemente não apenas no que diz com a trajetória evolutiva dos direitos fundamentais) assume relevo não apenas como mecanismo hermenêutico, mas, principalmente, pela circunstância de que a história dos direitos fundamentais é também uma história que desemboca no surgimento do moderno Estado Constitucional, cuja essência e razão de ser residem justamente no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem. Neste contexto, há que dar razão aos que ponderam que a história dos direitos fundamentais, de certa forma (e em parte, poderíamos acrescentar), é também a história da limitação do poder".(SARLET, Ingo Wolfgang;MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel –2015; p. 38).

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Sobre o autor
Diego Gomes Alves

Bacharel em Direito. Ex-aluno da Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx). Servidor público federal efetivo há 15 anos, tendo laborado no Ministério Público da União, no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e na Câmara dos Deputados. Professor universitário de Direito Penal. Pós-Graduado em Direito Público. Mestre em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa. Doutorando pela mesma entidade. Coautor dos livros "Lei nº 8.112/90 comentada em exercícios" (2014) e “Desafios do Direito Penal Luso-brasileiro” (2019).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Diego Gomes. A necessidade de uma ciência do direito policial para efetivação de uma atividade policial constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5474, 27 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66842. Acesso em: 22 dez. 2024.

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