O Brasil vem se consolidando entre os maiores mercados consumidores de medicamentos do mundo: o envelhecimento populacional e o crescimento do varejo farmacêutico são importantes fatores para explicar essa ascensão. Com ela, aumentaram também a preocupação com o uso racional, o combate ao uso indiscriminado e o esforço em encarar a farmácia comercial pela faceta de prestadora de serviços de saúde.
As leis n° 8080/1990 e n° 8142/1990 (ambas lançaram as bases para a implementação do SUS), juntamente às disposições constitucionais, conduziram à promulgação de várias espécies normativas ao longo dos anos, sendo dignas de destaque a Portaria GM n° 3916/1998 (Política Nacional de Medicamentos), a Portaria 344/1998, a RDC 44/2009 (Boas Práticas em Farmácias) e a Lei n° 13021/2014 (Regulação das Atividades Farmacêuticas). Normas sanitárias, portanto, que buscam resguardar, de modo geral, a saúde da população.
Em meio às preocupações e regulamentações, medicamentos de certas classes foram sofrendo maior restrição de compra de acordo com o seu potencial de dano à coletividade. Foi o caso dos chamados medicamentos sujeitos a controle especial, popularmente chamados de “medicamentos controlados”, que são produtos farmacêuticos cujo risco associado só pode ser assumido se justificado pelos potenciais benefícios.
Assim, em momentos distintos, surgiram a Portaria 344/98 e a RDC 20/2011, que são os instrumentos normativos que disciplinam aspectos atinentes à prescrição e à comercialização desses tipos de medicamentos: o efeito mais visível é a sua aquisição exclusivamente mediante prescrições específicas – uma tentativa de barrar o uso inadvertido, haja visto que já foi relativamente comum a aquisição desses medicamentos sem prescrição, fato agravado pelo interesse na venda desses produtos por parte do varejo farmacêutico.
A Portaria traz uma série de fármacos controlados (classificadas em listas alfanuméricas) de várias naturezas: entorpecentes, psicotrópicos, anorexígenos, retinoicos, antirretrovirais, anabolizantes e precursores dessas substâncias. Já a RDC cuida dos antimicrobianos em geral, sob várias formas farmacêuticas, contidos em uma lista própria.
O controle desses medicamentos, assim como as ações sanitárias (no que tange à fiscalização e normatização de produtos e serviços de saúde), ficam a cargo do Poder Público e são exercidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério da Saúde e criada pela Lei 9782/1999. A ANVISA tem como objetivo fundamental promover a proteção da saúde da população dispondo, para tal, de autorização para elaborar e implementar atos específicos e inerentes à sua área de atuação.
Prezando também, entre outros aspectos, pelo direito e proteção à saúde nas relações consumeristas entre fornecedores e consumidores, foi criado o Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8078/1990): é o instrumento, oriundo do Estado, para a defesa do consumidor, conforme preconizado no artigo 5°, XXXII da Constituição Federal. Um marco na garantia de diversos direitos à parte dita hipossuficiente nas relações de consumo, o CDC (como também é conhecida a Lei 8078/1990) é ferramenta fundamental no combate a práticas e preços abusivos, no resguardo do consumidor ante o poderio econômico e no alcance de condições para obtenção de justiça.
Mediante algumas condições, produtos adquiridos podem ser devolvidos. Em uma farmácia, o raciocínio acima é perfeitamente possível de ser aplicado quando o produto em questão é um medicamento. Porém, quando esse medicamento é sujeito a controle especial, modifica-se o cenário. Mudança de terapia ou a morte do usuário são razões recorrentes para o consumidor solicitar a troca; porém, de maneira fundamentada, a farmácia nega-se a efetuá-la, contrariando o CDC e baseando-se nas mencionadas Portaria e RDC, normas sanitárias específicas que a proíbem a troca.
Nesse ponto de encontro dessas espécies normativas, o cliente não recebe outro produto nem é restituído monetariamente, formando-se, para ele, situação claramente incômoda que o faz questionar: “e o Código de Defesa do Consumidor, para que serve neste caso?”. Como compatibilizar normas que prezam pelo bem-estar, mas que divergem em pontos específicos?
O que soa como direito óbvio do consumidor (a devolução), no caso do medicamento sujeito a controle especial, deve ser compatibilizado com outros direitos preexistentes como o direito à vida, à segurança, à saúde etc. Princípios esses registrados no próprio CDC, na CF e na legislação sanitária específica.
A troca de medicamentos “controlados”, por seu turno, só é possível quando estes apresentarem desvio de qualidade advindos do processo de fabricação (alterações organolépticas, quantidade inferior à descrita na embalagem, avarias, entre outros), como descrito nos artigos 20 da RDC n° 20/2011 e 44 da Portaria n° 344/1998.
A bula dos medicamentos tem de trazer todas as reações adversas detectadas nos testes pré-comercialização com humanos, mas reações relativas à substância principal do produto (princípio ativo). Porém, exposto a fatores como luz excessiva, calor e umidade, o princípio ativo pode gerar outras substâncias indesejadas, menos eficazes ou mesmo tóxicas - cujos efeitos nocivos podem não ser previstos.
A questão central é a conservação do medicamento “controlado”: as farmácias devem garantir as condições ideais para tal, conforme exigido pela RDC n° 44/2009 da ANVISA, garantia esta que se exaure quando o medicamento sai desses estabelecimentos. O risco em aceitar o medicamento devolvido, portanto, está na possibilidade de ele ser colocado novamente à venda: não se sabe a quais intempéries o medicamento possa ter sido exposto antes da devolução, o que pode acarretar reações adversas relativamente perigosas para quaisquer pessoas que venham a adquirir o medicamento devolvido.
Percebe-se, portanto, a geração um risco em potencial para toda uma coletividade por conta do atendimento do interesse individual. O próprio CDC afirma, no artigo 6°, inciso I, que “a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos” é um dos direitos básicos do consumidor, o que reforça ainda mais o impedimento ao ato de a farmácia aceitar a devolução e reintegrar o medicamento “controlado” ao estoque.
Desta forma, será possível privilegiar uma Portaria e uma RDC frente à Lei 8078/1990, contrariando os termos de força normativa, em nome de questões de saúde pública e da proteção da coletividade. O confronto do direito de troca conferido ao consumidor e do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular tornará perceptível que o direito de um indivíduo pode ser relativizado para que não ponha em risco a integridade física de uma população.
Dito isto, qual o destino do medicamento que não pôde ser devolvido? Segundo o artigo 90 da Portaria 344/98, deverá ser direcionado à Vigilância Sanitária local pelo consumidor. Porém, quais as garantias que esse medicamento não será indevidamente descartado, doado ou comercializado ilegalmente? Assim, quem garante que a recusa na devolução (fundamentada legalmente) não gerará justamente o efeito não-desejado, dando continuidade ao risco sanitário ou potencializando-o?
Tendo em vista esse problema adicional, seria interessante pensar em outras formas de lidar com esses medicamentos que não podem ser devolvidos à farmácia? Por exemplo, a instituição de algum tipo de compensação ao consumidor para que ele entregue o medicamento sujeito a controle especial numa unidade da Vigilância Sanitária, atendendo a requisitos como presença da nota fiscal e da via da receita médica. Assim, o Estado, que é o maior interessado em proteger a coletividade, exerceria essa proteção em todas as etapas do processo, sem deixar esta última etapa desguarnecida.
REFERÊNCIAS
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