Atlas da violência no Brasil - 2018

13/06/2018 às 18:30
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O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, lançaram neste mês de junho, sob a coordenação do pesquisador Daniel Cerqueira, o Atlas da Violência 2018, “analisando inúmeros indicadores para melhor compreender o processo de acentuada violência no país.”

A pesquisa inicia com uma comparação com o número de homicídios registrados no mundo entre os anos de 2000 e 2013, a partir de dados fornecidos pela Organização das Nações Unidas – ONU e a Organização Mundial da Saúde – OMS.

Observou-se que os países da América do Sul apresentam entre si “taxas similares, variando aproximadamente na mesma margem”, sendo que o Brasil e a Colômbia lideram os números, ao passo que o Uruguai, o Chile e a Argentina possuem taxas abaixo da média mundial.

Segundo a investigação, existe uma “concentração do problema dos homicídios nos países latino-americanos, sendo que o Brasil, lamentavelmente, entra sempre na lista das nações mais violentas do planeta.”

Em seguida, os pesquisadores debruçam-se sobre os números brasileiros, coletados a partir do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS). A partir da análise dos dados coletados – com gráficos e tabelas – chega-se à conclusão que o País superou o patamar de 30 mortes por 100.000 habitantes (taxa igual a 30,3), revelando um elevado aumento em relação à pesquisa anterior.

Este crescimento não se deu de maneira homogênea, mas de forma diferençada entre as regiões: “nos últimos quatro anos, enquanto houve uma virtual estabilidade nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, observa-se um crescimento nas demais regiões e, de forma mais acentuada, na região Norte”, sendo que todos os Estados com crescimento superior a 80% nas taxas de homicídios pertenciam ao Norte e ao Nordeste.

A tragédia revela-se ainda mais assustadora quando o homicídio representa como causa de mortalidade da juventude masculina (homens entre 15 a 19 anos) 56,5% do total de óbitos, “fenômeno denunciado ao longo das últimas décadas, mas que permanece sem a devida resposta em termos de políticas públicas que efetivamente venham a enfrentar o problema. Os dados de 2016 indicam o agravamento do quadro em boa parte do país: os jovens, sobretudo os homens, seguem prematuramente perdendo as suas vidas.”

Em 2016, 94,6% dos jovens assassinados eram do sexo masculino, um acréscimo de 8% em relação ao ano anterior. Os Estados do Acre e do Amapá lideraram este aumento.

A violência contra os negros está fartamente demonstrada no estudo, sendo muito acentuada “a concentração de homicídios na população negra”, uma das mais cruéis “facetas da desigualdade racial no Brasil”, conforme já havia sido descrito em outras publicações, como no Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência – ano base de 2015 – “que demonstrou que o risco de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,7 vezes maior que o de um jovem branco.”

Com efeito, as taxas de homicídio entre pretos e pardos (grupos populacionais de negros) “revelam a magnitude da desigualdade”, quando comparados com os não negros. Segundo os investigadores, os números são tão discrepantes que é “como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos.” Os Estados de Sergipe e do Rio Grande do Norte lideram entre os que têm as maiores taxas. Sete dos Estados pesquisados, por exemplo, registraram taxas de homicídios entre não negros de apenas um dígito, “o que, para o caso brasileiro, é extremamente raro.”

Vejam, por exemplo: “Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras.” (grifei).

O estudo conclui, com absoluto acerto e incontestável correção, “que a desigualdade racial no Brasil se expressa de modo cristalino no que se refere à violência letal e às políticas de segurança. Os negros, especialmente os homens jovens negros, são o perfil mais frequente do homicídio no Brasil, sendo muito mais vulneráveis à violência do que os jovens não negros”, razão pela qual “políticas eficientes de prevenção da violência devem ser desenhadas e focalizadas, garantindo o efetivo direito à vida e à segurança da população negra no Brasil.”

Na pesquisa há um tópico dedicado às mortes decorrentes de intervenções policiais. Neste item, os pesquisadores advertem que os dados registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) sobre intervenções legais e operações de guerra “permanecem – como demonstrado nas edições anteriores – com subnotificação significativa quando comparados aos dados policiais”, sendo que a diferença entre as duas fontes supera 67,5%.

Assim, enquanto o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) registrou 1.374 casos de pessoas mortas em funções de intervenções policiais, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, feito com base nos registros policiais, apontou, no mínimo, 4.222 vítimas (ano de 2016).

Esta discrepância de dados, evidentemente, é lamentável, pois “o uso da força pelos agentes estatais é um tema central para a democracia brasileira, já que frequentemente as polícias brasileiras têm sido acusadas de violações de direitos e de serem violentas, o que reforça a necessidade de registros fidedignos para mensuração do fenômeno.”

Nota-se que “os negros são as principais vítimas da ação letal das polícias e no perfil predominante da população prisional do Brasil.” Neste sentido, os pesquisadores observam que o Anuário Brasileiro de Segurança Pública identificou que 76,2% das vítimas de atuação da polícia são negras.

E em relação aos homicídios contra as mulheres? Certamente, “os dados apresentados no relatório devem contribuir para destacar e denunciar a morte de mulheres, assim como a necessidade do aprimoramento dos mecanismos de enfrentamento”, especialmente no ano que foi tristemente marcado pelo assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, no dia 14 de março. Uma mulher negra, mãe e moradora da favela da Maré.

Pela pesquisa, em 2016, foram assassinadas no País 4.645 mulheres, o que representa cerca de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Em dez anos, este número aumentou em 6,4%. Destaca-se, negativamente, óbvio!, o Estado de Roraima, cuja taxa de homicídios contra as mulheres foi superior à taxa de todo o Brasil.

Ademais, “considerando-se os dados de 2016, a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que entre as não negras (3,1) – a diferença é de 71%. Em relação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que entre as não negras houve queda de 8%.”

Aqui, os Estados de Goiás e Pará lideram o topo do ranking das maiores taxas quando se trata de homicídio de mulheres negras, sendo que estes Estados não estão entre aqueles com maiores taxas de homicídios de mulheres brancas. Relativamente às mulheres não negras, o Estado de Roraima lidera, cujo índice é “muito superior a qualquer outra taxa, em qualquer outro estado”, fato que confirma os relatórios Human Rights Watch (2017) “que apontaram o estado de Roraima como o mais letal para mulheres e meninas no Brasil, e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi, 2017), que descreveu Roraima como a UF que teve o maior número de vítimas indígenas assassinadas.”

O uso de armas de fogo também foi objeto da pesquisa. Com efeito, “entre 1980 e 2016, cerca de 910 mil pessoas foram mortas com o uso de armas de fogo.” O ano de 1980, segundo os pesquisadores, marca “uma verdadeira corrida armamentista no país só interrompida em 2003, por conta do Estatuto do Desarmamento.” Eles concluíram, com base nos dados coletados, que o “crescimento dos homicídios no país ao longo dessas três décadas e meia foi basicamente devido às mortes com o uso das armas de fogo, ao passo que as mortes por outros meios permaneceram constantes desde o início dos anos 1990.” O Estado de Sergipe lidera a lista daqueles que apresentam mais homicídios por armas de fogo (85,9% do total).

Para eles, sem dúvidas, “não fosse o Estatuto do Desarmamento que impôs um controle responsável das armas de fogo, a taxa de homicídios seria ainda maior que a observada.”

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A pesquisa também fez um levantamento sobre os casos de crimes contra a dignidade sexual, especialmente o estupro, mostrando que, em 2016, foram registrados pela polícia brasileira vergonhosos 49.497 casos de estupro, segundo informações do 11º. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Já no Sistema Único de Saúde, foram registrados 22.918 casos de estupro (quase metade, portanto, daquele fornecido pela Polícia).

Notam os pesquisadores que ambas as bases de informações são subnotificadas e, portanto, não podem dar uma ideia precisa do gravíssimo problema. Eles atentam, com absoluta razão, que “o tabu engendrado pela ideologia patriarcal faz com que as vítimas, em sua grande maioria, não reportem a qualquer autoridade o crime sofrido.” Comparando-nos com os Estados Unidos, os autores lembram que naquele País apenas 15% do total dos estupros são informados à Polícia. Assim, concluem que “caso a nossa taxa de subnotificação fosse igual à americana, ou, mais crível, girasse em torno de 90%, estaríamos falando de uma prevalência de estupro no Brasil entre 300 mil a 500 mil a cada ano.” Note-se, outrossim, que aqui também as mulheres negras são as vítimas mais numerosas. Além disso, o estudo concluiu que na maioria das vezes (54,9%) em que a ofendida conhece o seu agressor, ela já havia sido vítima antes.

Outro dado também impressionantemente assustador revela que a violência de gênero vem acompanhada da “vulnerabilidade por deficiências física e/ou psicológica.” Assim, “cerca de 10,3% das vítimas de estupro possuíam alguma deficiência, sendo 31,1% desses casos contra indivíduos que apresentam deficiência mental e 29,6% contra indivíduos com transtorno mental. Além disso, 12,2% do total de casos de estupros coletivos foram contra vítimas com alguma deficiência.”

Em relação ao estupro de crianças, “é estarrecedor notar que quase 30% dos casos de estupro contra crianças são perpetrados por familiares próximos, como pais, irmãos e padrastos.”

Eis um resumo do trabalho realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP. A pesquisa é muito longa e os números são os mais variados. É uma investigação que deve ser levada em consideração quando se tratar de violência no Brasil, especialmente em um período eleitoral. Ela mostra, à saciedade, a nossa estúpida desigualdade racial, gênese de vários dos problemas brasileiros. Também demonstra que a liberalização do uso das armas de fogo será desastrosa para a nossa sociedade: as mortes multiplicar-se-ão!

É preciso que estejamos atentos para que os oportunistas não se aproveitem da insegurança na qual vivemos no cotidiano e possam pautar as suas bandeiras totalitárias e fascistas. Estudos como esse devem servir de base para que a sociedade discuta com racionalidade uma questão tão séria como a violência, sem demagogia e sem tergiversações.

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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