Desde o início do atual mandato presidencial, vem sendo propalado que estava em gestação uma proposta de reforma da estrutura sindical. Em função destes anúncios, sucessivas versões de um enorme anteprojeto, foram divulgadas durante muitos meses, até que num momento de pompa e circunstância, o governo federal anunciou que faria a entrega solene do resultado de tal elaboração. O episódio é retratado na Folha de São Paulo de 3 de março: "Depois de levarem um "bolo" do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e de esperarem por quase duas horas pelo presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), os ministros Ricardo Berzoini (Trabalho) e Aldo Rebelo (Articulação Política) entregaram ontem formalmente ao Congresso a reforma sindical."
Em função desta notícia tão divulgada, acenderam-se os debates sobre os pontos principais do Anteprojeto Berzoini. Todos falam da "reforma sindical" entregue sem que nada daquilo que está sendo discutido tenha sido entregue a Severino Cavalcanti. Todo o alfarrábio elaborado no FNT, tão divulgado e discutido por tantos, não passa de uma carta de intenções em que o governo, promete, que, num futuro (quiçá distante), se aprovada sua Proposta de Emenda Constitucional, irá propor ao Congresso aquela extensa nova regulamentação.
A operação de propaganda do governo federal estimula o aceso debate sobre o que ainda não foi proposto, de modo que fique esquecida a discussão sobre a quase anódina Proposta de Emenda que já está em marcha na Câmara sob o número 369/2005. A análise de tal documento, contudo, demonstra que, a única mudança substancial sugerida no mesmo é a supressão do texto constitucional, da unicidade sindical e da organização por categoria, sendo que o restante é claramente desimportante. No entanto, incumbe a analisar a PEC como um todo, esmiuçando os pontos ali delineados:
1- Extinção da unicidade sindical e da organização por categoria
A PEC propõe que sejam retiradas da Constituição Federal estas exigências, ficando por conta do legislador ordinário a regulação da matéria. Eventualmente aprovada a proposta, continua valendo o atual modelo celetista, até que uma nova legislação infraconstitucional sobre o tema venha a ser aprovada.
A aprovação da PEC não implica em revogar o modelo atual mas, somente, apeá-lo do patamar constitucional em que está hoje arrimado, ficando, dali para a frente esteado unicamente na legislação ordinária. Anote-se que dizer que é assegurada a liberdade sindical não é incompatível com a atual norma celetista que exige a organização por categoria. O entendimento contrário, seria aplicável, também, ao anteprojeto Berzoini que propõe a organização por ramo.
2- Restauração da carta sindical
A PEC propõe a volta do modelo varguista em que o Estado é que atribuiria personalidade aos sindicatos, através de um ato de vontade política denominado, então, de carta sindical e, ressuscitado na atual proposta com vestes mais discretas ("o Estado atribuirá personalidade sindical às entidades").
3- Prerrogativas da Representação sindical
A PEC propõe que as prerrogativas de representação dos sindicatos sejam atribuídas às entidades sindicais, o que poderia ser efetuado através de legislação ordinária. Ao demais, as entidades sindicais, hoje existentes, já dispõem de poderes de representação. Muito embora sabido que a atual redação do inciso III do artigo 8º da CF causou dificuldades aos sindicatos para exercer a substituição processual durante dezessete anos, nem por isto, a PEC dá-se ao luxo de aperfeiçoar um pouco a redação do dispositivo para aliviar as controvérsias de interpretação que até hoje ainda fervem por todos os lados.
4- Aperfeiçoamento da contribuição coletiva constitucional
O artigo 8º, IV da CF-88 instituiu contribuição para os sindicatos, alçada ao nível da carta política. Os abusos na fixação destas incidências fizeram com que a PEC proponha que a lei estabelecerá um limite no valor a ser cobrado. Nada impediria, contudo, que ao invés de PEC, já se propusesse uma lei neste sentido. O outro ponto do aperfeiçoamento é muito interessante mas, paradoxal, já que universaliza a cobrança da contribuição para com todos os beneficiados pela negociação, em posição contrária à do governo federal que, recentemente, baixou portaria ministerial proibindo (como se a lei lhe desse tal poder) a cobrança contra os não-associados. O governo propõe ao Congresso que insira na Constituição aquilo que está sendo por ele mesmo proibido.
5- Desconto da contribuição em folha de pagamento
Atualmente, a CF já contem tal permissão e a PEC sugere, somente que se faça uma Emenda para dar à carta política a mesma redação que ela já apresenta.
6- Obrigatoriedade da participação sindical nas negociações coletivas
Esta já é a regra hoje inscrita no artigo 8º, V da CF e a PEC sugere, apenas, a mudança de sindicatos para, entidades sindicais. Tal ampliação somente pode servir para encaixar em tal regra, entidades que, no futuro, venham a ser transformadas em entidades sindicais, tais como, as centrais sindicais. Caso seja esta a intenção do governo federal não se compreende porque, no artigo 97, parágrafo único da sua carta de intenções, ou seja, o Anteprojeto Berzoini, as centrais sindicais são excluídas da contratação coletiva.
7- Representação sindical por empresa
A atual redação do artigo 11 da CF vigora há muito tempo sem que se tenha conseguido aprovar uma legislação regulamentadora garantindo e viabilizando a concretização da rega de um representante dos trabalhadores por empresa. A PEC só modifica a redação atual para falar em representação sindical por empresa, sem falar em quantidade e forma que ficarão para o futuro. Tendo em vista que as classes dominantes impedem esta regulamentação há dezessete anos, parece meio irrelevante tal modificação.
8- Direitos Coletivos do servidor público
Há dezessete anos que a Constituição Federal garante aos servidores públicos, no artigo 37, VI e VII, o direito a organizar sindicatos (e, portanto, à negociação coletiva) e o recurso à greve. O direito à negociação coletiva ficou como letra morta porque o inciso X do mesmo artigo 37 diz que só por lei é que podem ser concedidos aumentos salariais. O direito de greve continua aguardando regulamentação na lei ordinária para poder ser concretizado. A PEC reúne os dois direitos no inciso VII do artigo 37 mas, não altera o inciso X, razão pela qual, ainda que aprovada, não poderá haver contratação coletiva de servidor público. Quanto à greve, mantem os servidores na mesma situação de aguardar (quiçá por outros dezessete anos) a regulamentação de tal direito.
9- Mudanças na Justiça do Trabalho (inclusive, quanto ao poder normativo)
Nesse ponto, a PEC, apresentada em março de 2005, sugere que os incisos III e IX do artigo 114 da CF venham a ter a redação que já tem desde 08 de dezembro de 2004 quando foi promulgada a Emenda Constitucional nº 45. Quanto à abolição do poder normativo da Justiça do Trabalho, é chocante assistir diariamente a discursos sem fim de laudação a tal medida, sob o fundamento de que a Justiça do Trabalho não deveria ter o poder de julgar as greves como abusivas, sem perceber que com a redação da PEC ela continuará com este poder.
10- Em conclusão
Fervilham as polêmicas sobre a "reforma sindical" e os debatedores limitam-se a destrinchar o manuscrito que está na gaveta do Ministro, como se tal anteprojeto já houvesse sido entregue ao Parlamento. A maioria dos interlocutores discursa como não houvesse se dado conta de que só esta incongruente PEC é que foi entregue a Severino Cavalcanti e, muito embora seja a dita cuja que esteja marchando pela Câmara, a mesma nem sequer está sendo objeto de grandes discussões. Fica parecendo que o tal anteprojeto foi acenado provocativamente aos quatro ventos para que no mesmo fique concentrada a polêmica enquanto a PEC caminha sutil e discretamente pelos domínios do Congresso Nacional.