1.7. Efeito do conflito entre os critérios: a antinomia de segundo grau
Os critérios de solução das antinomias jurídicas podem apresentar conflitos. Estes conflitos são evidenciados quando uma mesma antinomia jurídica poderia, teoricamente, ser solucionada não por um critério somente, mas sim por dois critérios. Um exemplo clarividente é o caso de uma norma constitucional anterior entrar em conflito com uma norma ordinária posterior. A antinomia sendo solucionada pelo critério hierárquico encaminharia como norma ab-rogadora a constitucional, já o critério cronológico apresentaria como resposta a norma ordinária, pois esta é posterior. Norberto Bobbio (1999) define que o efeito deste conflito de critérios é o surgimento das chamadas antinomias de segundo grau:
"Não se podem aplicar ao mesmo tempo dois critérios: os dois critérios são incompatíveis. Aqui temos uma incompatibilidade de segundo grau: não se trata mais da incompatibilidade de que falamos até agora, entre normas, mas da incompatibilidade entre os critérios válidos para a solução da incompatibilidade entre as normas. Ao lado do conflito entre as normas, que dá lugar ao problema das antinomias, há o conflito dos critérios para a solução das antinomias, que dá lugar a uma antinomia de segundo grau". [55]
Os conflitos entre critérios podem apresentar as seguintes formas:
- Hierárquico conflitando com o cronológico: quando uma norma anterior-superior é antagônica a uma norma posterior-inferior;
- De Especialidade conflitando com o cronológico: quando uma norma anterior-especial é antagônica a uma norma posterior-geral;
- Hierárquico conflitando com o de especialidade: quando uma norma superior-geral é antagônica a uma norma inferior-especial.O critério da interpretação pela sua natureza suplementar, ou seja, só será aplicado quando nenhum dos outros solucionar a antinomia jurídica, não entra em conflito.
No primeiro caso, temos que a aplicação do critério hierárquico como caminho revelará a norma superior como solução e usando o critério cronológico teremos a norma posterior. Está instaurado o conflito entre os critérios solucionadores. A resposta a esta antinomia de segundo grau é simples, o critério hierárquico prevalecerá em detrimento ao critério cronológico. Isto se deve a dois elementos, o primeiro da relevância fundamental do princípio da ordem hierárquica para o sistema jurídico, tal relevância baseia-se na unidade das normas como já vimos, o segundo elemento é que o critério cronológico é solucionador para caso de antinomia entre normas do mesmo nível hierárquico ou no mesmo plano. Tal procedimento constitui a regra lex posterior inferior non derogat priori superiori.
No segundo critério há uma ressalva entre os doutrinadores. A norma anterior-especial prevaleceria sobre a posterior-geral se usássemos o critério da especialidade e caso o uso do critério cronológico, a norma posterior-geral seria a escolhida. A ressalva doutrinária nasce quando a regra estabelecida, lex posterior generalis non derogat priori speciali, não é absoluta como solução para este conflito. Em determinados casos a regra estabelecida poderá ser usada de maneira inversa.
No último caso também temos alguma controvérsia entre qual deverá ser a solução adequada. Adotando o critério hierárquico, chegaremos a norma superior-geral como solução e adotando o critério de especialidade a norma inferior-especial. A controvérsia é bem tratada por Bobbio (1999):
"A gravidade do conflito deriva do fato de que estão em jogo dois valores fundamentais de todo ordenamento jurídico, o do respeito da ordem, que exige o respeito da hierarquia e, portanto, do critério da superioridade, e o da justiça, que exige a adaptação gradual do Direito às necessidades sócias e, portanto, respeito do critério da especialidade". [56]
Não tendo como se estabelecer uma regra, propriamente dita, a solução será sempre buscar a Justiça ao caso concreto, conforme leciona Maria Helena Diniz (2001):
"Num caso extremo de falta de um critério que possa resolver a antinomia de segundo grau, o critério dos critérios para solucionar o conflito normativo seria o princípio supremo da justiça: entre duas normas incompatíveis dever-se-á escolher a mais justa. Isso é assim porque os referidos critérios não são axiomas, visto que gravitam na interpretação ao lado de considerações valorativas, fazendo com que a lei seja aplicada de acordo com a consciência jurídica popular e com os objetivos sociais. Portanto, excepcionalmente, o valor justum deve lograr entre duas normas incompatíveis". [57]
Notas
1 SIMON, Henrique Smidt. Sófocles e a Democracia em "Antígona". Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=3855>. Acesso em: 17 de maio de 2004.
2 GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução: Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 111-113.
3 DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 5-6.
4 FRIEDE, Reis. Ciência do direito, norma, interpretação e hermenêutica jurídica. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 127.
5 GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao estudo do direito. 27.ed.rev. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 11-12.
6 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 105-106.
7 HOUAISS, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 236.
8 IbIdem 10.
9 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. V. I. p. 211.
10 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução: Maria Celeste C. J. Santos. 10.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. p. 38.
11 BRASIL. Constituição, código penal, código de processo penal. Organização de texto e índice por Luiz Flávio Gomes. 2.ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 1.
12 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 49.
13 WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 64.
14 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 14-15.
15 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 113.
16 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 115.
17 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 15.
18 MACHADO, João Baptista Âmbito de eficácia e âmbito de competência das leis: limites das leis e conflitos de leis. Coimbra – Portugal: Livraria Almedina, 1998. p. 213.
19 GUSMÃO, Paulo Dourado. Ob. cit. p. 214.
20 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 29.
21 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 14.
22 SENADO FEDERAL. Subsecretaria de informações. Disponível em: < http://www.dgp.eb.mil.br/dip/LEI- 005774%20de%2023-12-1971.htm>. Acesso em: 28 de outubro de 2.004.
23 HOUAISS, Antonio. Ob. cit. p. 236
24 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 237-238.
25 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 639.
26 ZUGNO, Renato. À interpretação sistemática à luz de princípios. Disponível em <http://www.clicdireito.com.br/clicdir/jurib.asp?codigo=4>. Acesso em: 23 de agosto de 2.004.
27 IbIdem, p.27.
28 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 42.
29 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 118.
30 RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao código de trânsito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 769.
31 BRASIL. Constituição, código penal, código de processo penal. Ob. cit. p. 257.
32 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p.2728.
33 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Subchefia para assuntos jurídicos. Lei n.º 6.830, de 22 de setembro de 1.980. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6830.htm >. Acesso em: 28 de outubro de 2.004.
34 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Subchefia para assuntos jurídicos. Decreto n.º 678, de 6 e novembro de 1.992. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 28 de outubro de 2.004.
35 BRASIL. Constituição, código penal, código de processo penal. Ob. cit. p.105.
36 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 30.
37 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 216.
38 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 89, 96 e 97.
39 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 89.
40 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 238.
41 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 37 e 93.
42 GOMES, Luiz Flávio. Existe um turbilhão de leis mal elaboradas e desconexas. Disponível em: <http://www.speretta.adv.br/pagina_indice.asp?iditem=450>. Acesso em: 28 de outubro de 2.004.
43 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 37.
44 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 34.
45 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 49-50.
46 FRIEDE, Reis. Ob. cit. p. 126.
47 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 96.
48 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 237-239.
49 MACHADO, João Baptista. Ob. cit. p. 217-218.
50 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 100.
51 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 53, 58 e 60.
52 MACEDO, Maury R. de. A Lei e o arbítrio à luz da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 7 e 231.
53 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 101.
54 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p. 55-56.
55 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 107.
56 BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 109.
57 DINIZ, Maria Helena. Ob. cit. p.52.