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Brasil x apartheid social.

As ações afirmativas como meio para superação das desigualdades raciais e de gênero

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13/05/2005 às 00:00
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3. As Desigualdades Raciais e de Gênero

            O Brasil é um país que possui, segundo estimativas do IBGE (Censo Demográfico 2000), cerca de 179 milhões de habitantes, sendo que de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/IBGE mais de 45,3% da população nacional é constituída por negros e pardos, ou por afro-brasileiros, sendo a menor concentração nas áreas metropolitanas (26,9%).

            Em uma sociedade racialmente excludente como a nossa, na qual as desigualdades raciais são mascaradas pelo mito da democracia racial, a formulação e implementação de políticas sociais exclusivamente universalistas, por não atacarem os mecanismos geradores dessas desigualdades, vêm operando antes como forma de atualização delas, que como instrumentos que concorram para dirimi-las. É que tais políticas aumentam, de forma escandalosa, o fosso que separa aqueles considerados como cidadãos, daqueles percebidos como não-cidadãos. (32)

            3.1. As Desigualdades no Mercado de Trabalho

            Devido às transformações econômicas do mundo capitalista o perfil do trabalhador está sendo modificado e redefinido, seguindo as contratações, agora, critérios de produtividade e competição, ou seja, passou-se a ser exigido dos trabalhadores atributos e habilidades que lhes permitam responder às exigências do mercado econômico. Nesse aspecto, a educação básica se tornou o requisito indispensável para a inserção dos trabalhadores nos novos processos produtivos, o que acaba por reduzir as chances de trabalho tanto para os mais jovens quanto para os mais velhos.

            O desemprego assola o país, a última pesquisa realizada pelo IBGE referente ao mês de abril/2004, demonstra que os índices de desemprego na indústria diminuíram se comparados a abril/2003, porém, constitui-se um pequeno aumento se analisarmos a realidade sócio-econômica do país, pois ainda há um grande número de desempregados.

            Toda essa problemática se agrava quando tratamos de questões de raça e gênero, pois, a situação dos desempregados afro-brasileiros e das mulheres é mais preocupante. Por exemplo, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que é um instrumento de análise desenvolvido pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em quase todos os países, as mulheres trabalham mais horas do que os homens, correspondendo às mulheres 53% do total de horas trabalhadas nos países em desenvolvimento e 51% nos países industrializados. (33)

            E essa conjectura piora ainda mais quando pesquisamos dados do desemprego das mulheres afro-brasileiras (DIEESE/SEADE – PED), pois são números alarmantes de desigualdades raciais e de gênero, constantemente promovidas dentro de nosso país.

            O DIEESE através das Pesquisas de Emprego e Desemprego (PED) realizadas nos anos de 2001/2002, nas regiões metropolitanas, demonstra esta desigualdade tanto nas taxas de desemprego quanto nos índices de rendimento médio dos empregados negros e brancos, mulheres e homens.

            A Organização Internacional do Trabalho (OIT) através da Convenção 111, que trata da discriminação em questões de trabalho e profissão traz preceitos para a diminuição dessas desigualdades, porém, o que nos aflige é a questão da plena aplicabilidade desta Convenção. Encontramos no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e na ONG Criola, entidades que lutam para solucionar estes problemas.

            A defasagem da renda percebida entre brancos e negros, mulheres e homens nas empresas no ano de 2000, retirada da obra de Jurema Werneck "Desigualdade Racial em Números – coletânea de indicadores das desigualdades raciais e de gênero no Brasil" demonstra as alegações acima efetuadas, ou seja, nos cargos de diretoria, o salário médio dos homens brancos era de R$19.268,00, dos homens negros era de R$16.677,00, enquanto que das mulheres brancas era de R$11.617,00, observando que não há registro de mulheres afro-brasileiras em cargos de diretoria. Já os cargos gerenciais, podem ser considerados como uma exceção à regra, pois nestes as mulheres negras ganhavam, em média, R$6.457,00, enquanto que as brancas percebiam R$6.415,00. E obviamente, nas funções administrativas e de produção, a remuneração das mulheres afro-brasileiras é invariavelmente bem menor, que a das mulheres brancas, e muito mais inferior que a dos homens, sejam eles negros ou brancos, que percebem ainda mais que os negros, em qualquer cargo ou função.

            E para tentar minimizar estas desigualdades raciais e de gênero a CF/88 autorizou a adoção das chamadas Discriminações Positivas. Nos próximos tópicos analisaremos tal autorização contida na Carta Magna e a aplicação das Ações Afirmativas de Gênero e Raça como forma de superação destas desigualdades.


4. A Constituição Federal de 1988 e suas Discriminações Positivas

            A Constituição Federal de 1988 traz várias exceções ao princípio da isonomia, inclusive tendo preconizado o Supremo Tribunal Federal que "a igualdade perante a lei que a Constituição Federal assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, não compreende a União e as demais pessoas de direito público, em cujo favor pode a lei conceder privilégios impostos pelo interesse público sem lesão a garantia constitucional". (34)

            Dessa forma, fica claro, o reconhecimento dos Tribunais brasileiros à autorização – por vezes implícita – do princípio da isonomia ao Estado, para que esse se utilize do tratamento desigual, isto quando necessário e de forma justificada.

            Neste aspecto, o grande problema é a de saber quando se deve estabelecer estas distinções.

            Celso A. Bandeira de Mello, em sua obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade traz uma solução a esta questão: "o reconhecimento das diferenças que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões: a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação (fator de discrímen); b) a segunda reporta-se a correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados". (35)

            Já, J. J. Gomes Canotilho acredita que haverá observância da igualdade "quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária (...) existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (I) fundamento sério; (II) não tiver um sentido legítimo; (III) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável". (36)

            Assim, em nosso ordenamento jurídico, pode haver discriminação desde que com o intuito de alcançar a igualdade entre os seres humanos, porém observando os seguintes elementos: a) o fator de discriminação, em questão, não pode atingir, de forma alguma, um só indivíduo; b) deve-se observar a distinção entre as pessoas e as situações objeto de discriminação, sendo vedado à lei discriminar com base em elementos exteriores; c) tem que existir um nexo lógico entre o fator de discriminação e a discriminação efetuada pelo regime jurídico; d) esse nexo deve ser relacionado à função dos interesses constitucionalmente protegidos, visando sempre o bem público.

            Mas, uma efetiva analise sobre a violação do princípio da isonomia, somente poderá ser feita quando do estudo criterioso dos casos concretos. (37)

            A realidade é que o Brasil vive um descompasso total em relação a este assunto, primeiro, porque não admite a existência de discriminações invocando sempre o princípio da isonomia, e segundo, porque por outro lado há a discriminação quando se oferece tratamento diferenciado, como ocorre com a mulher, o pobre, o negro e o deficiente físico.

            Exemplificaremos, assim, algumas das várias exceções trazidas pela Constituição Federal:

            1.As imunidades parlamentares (art. 53, parágrafo 7º, da CF);

            2.As prerrogativas de foro ratione muneris em benefício de determinados agentes políticos;

            3.A exclusividade do exercício de determinados cargos públicos somente a brasileiros natos (art. 12, parágrafo 3º, CF);

            4.Obrigatoriedade, vedação à eleitores, e condições especiais de elegibilidade (art. 14 CF);

            5.Isenção do serviço militar às mulheres e ao clero (art. 143, parágrafo 2º, CF);

            6.Proteção à maternidade e a gestante (art. 201, inciso II, CF);

            7.Condições para concessão de aposentadoria entre homens e mulheres (art. 201, parágrafo 7º, inciso I e II, e parágrafo 8º);

            8.Proteção ao trabalho do menor e as condições do deficiente físico (art. 227 CF);

            9.Licença gestante (art. 7º, XVIII, CF); e outros.

            E como uma tentativa de superação desses problemas de desigualdade racial e de gênero, trazemos as Ações Afirmativas, que obviamente, não são soluções definitivas para os problemas, mas podem, paulatinamente, superar as desigualdades sofridas por essas minorias discriminadas.

            4.1. As Ações Afirmativas como Hipóteses de Diminuição das Desigualdades

            Joaquim B. Barbosa Gomes, em sua obra Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade, traz que "toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semi-governamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material, se em conseqüência de sua aplicação resultarem efeitos nocivos de incidência desproporcional sobre certas categorias de pessoas". (38)

            Para esse mesmo autor as Ações Afirmativas "consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física". (39)

            Já, Ronald Dworkin observa que o objetivo é implementar Ações Afirmativas que, com o passar do tempo, torne o critério passível de discriminação menos relevante: "Muitas vezes se diz que os programas de ação afirmativa têm como objetivo alcançar uma sociedade racialmente consciente, dividida em grupos raciais e étnicos, cada um deles, como grupo, com direito a uma parcela proporcional de recursos, carreiras ou oportunidades. Essa é uma análise incorreta. A sociedade norte-americana, hoje, é uma sociedade racialmente consciente; essa é a conseqüência inevitável e evidente de uma história de escravidão, repressão e preconceito. (...) Os programas de ação afirmativa usam critérios racialmente explícitos porque seu objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças nessas profissões. Mas almejam a longo prazo reduzir o grau em que a sociedade norte-americana, como um todo, é racialmente consciente."(DWORKIN, 2000: 439).

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            Essas políticas discriminatórias positivas surgiram, inicialmente, nos Estados Unidos da América e tinham o intuito de enfrentar o desemprego das minorias étnicas. Mas, estas políticas também vêm sendo implementadas em outros países além dos EUA, como, por exemplo, na Índia que após tornar-se independente em 1947, adotou um sistema baseado em cotas destinando aos chamados "intocáveis", em média "22.5% das vagas na administração e no ensino públicos." (40). E na Malásia a etnia bimiputra recebeu tratamento diferenciado para que conseguisse promover seu desenvolvimento econômico. (41)

            Na verdade, esse tipo de política utiliza fatores que antes eram vistos como propensos à discriminação negativa para promover a igualdade material.

            É importante observar que as políticas de Ação Afirmativa, ainda que não se constituam como intervenções governamentais suficientemente potentes para eliminar as desigualdades historicamente acumuladas, elas desempenham o significativo papel de corrigi-las na atualidade, ao promoverem as igualdades de oportunidade e de tratamento, o que certamente concorre para uma democracia de resultados, além de trazerem efeitos imediatos e conseqüentes. (42)

            As Ações Afirmativas podem ser promovidas tanto pelo Estado como por entes particulares.

            Em nosso Direito Pátrio, como já visto, encontramos dispositivos que não só possibilitam a adoção das discriminações inversas por parte do Estado e de particulares, mas também, criam verdadeiros preceitos para sua prática sob pena de inconstitucionalidade por omissão.

            Obviamente, que a implementação destas formas de discriminação positivas devem ser bem elaboradas e utilizadas com o máximo de rigor, pois, conforme verificaremos mais adiante, é sabido que devido a inúmeros outros problemas constantes em nosso país a implementação destas ações pode se tornar não uma solução, mas sim um problema ainda maior, a ser resolvido pelo Estado e pela sociedade.

            No Brasil, entre as políticas de Ações Afirmativas que se tem tentado implementar – principalmente, em nível infraconstitucional – destacam-se duas formas: a Ação Afirmativa de Gênero e a Ação Afirmativa de Raça.

            4.2. As Ações Afirmativas de Gênero

            Entre as muitas disposições sobre o princípio da isonomia, a Constituição Federal de 1988, determinou em seu artigo 5º, inciso I, a igualdade de direito e obrigações entre homens e mulheres.

            E para garantir essa igualdade algumas Ações Afirmativas têm sido efetuadas, seja por meio da proteção do mercado de trabalho da mulher, seja pela instituição de uma família onde o sexo não determina as relações de poder.

            Com relação, a instituição de uma família onde o poder encontra-se nas mãos de ambos os cônjuges sem que haja distinção pelo sexo, verifica-se a implementação do Novo Código Civil (2002) que traz tal regra de forma expressa, e tem como finalidade igualar as oportunidades que são decorrentes do passado patriarcal da família brasileira.

            Já, internacionalmente o Brasil celebrou em 1984, a Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, datada de 1979, que afirma em seu texto que o fato de existir políticas públicas compensatórias pela discriminação de gênero não significa que haja uma discriminação negativa.

            Entre todos os problemas de discriminação sofridos pela mulher, os que, ainda hoje, trazem preocupação dizem respeito às relações de trabalho, como já foi descrito anteriormente, e a representação política.

            No Brasil, no que se refere às relações de trabalho, o art. 7º, inciso XX da CF/88, determina a adoção de incentivos para a proteção do mercado de trabalho da mulher, porém, até o presente momento, não foram efetivadas as regulamentações infraconstitucionais necessárias.

            No que diz respeito à participação política da mulher, o Brasil, estipulou em 1996, por meio do art. 11, §3o, da lei n.º 9.100, que os partidos políticos deveriam, no registro dos seus candidatos, reservar no mínimo 20% das vagas a mulheres. Mas, essa lei foi revogada pela Lei n.º 9.504/97, que, ao invés de adotar uma Ação Afirmativa, baseando-se no critério das ações positivas de gênero feminino, preferiu instituir uma espécie de quota neutra, isto é, 30% (trinta por cento) dos candidatos registrados pelo partido político devem pertencer a um dos sexos (masculino ou feminino). Mas mesmo dessa forma, essa medida ainda se torna uma Ação Afirmativa tendente a promover a integração da mulher no cenário das eleições.

            Na realidade, o Direito e a sociedade brasileira mudaram muito, porém, ainda há um longo trajeto a ser percorrido para que se alcance a igualdade prática e real, pois, ainda hoje, o homem é o detentor do poder dentro e fora do lar, já que é ele, na maioria dos casos, o titular das ações dos clubes; é em nome dele que os imóveis encontram-se registrados; da mesma forma que os automóveis da família; é o homem o titular dos planos de saúde, sendo a mulher e os filhos os seus dependentes. E esta situação deve-se exclusivamente aos costumes de longos anos, e não será modificada por dispositivos legais, embora assim quisesse o legislador, e sonhassem todas as mulheres. (43)

            Portanto, até mesmo na educação faz-se fundamental e necessário as discussões sobre a igualdade de gênero e o combate às discriminações, pois, a partir daí as pessoas, tanto homens quanto mulheres, passam a ser cidadãos que respeitam e querem ser respeitados, e sabem de suas responsabilidades, deveres e principalmente de seus direitos. (44)

            Portanto, hoje, é inegável contribuição feminina na vida social, e também, que muito ainda precisa ser feito para que a mulher seja dignamente tratada como pessoa e como profissional. Porém, já caminhamos, ainda que pouco. Mas perdemos muito, ainda estamos perdendo, e poderemos perder mais, por esse reconhecimento parcial da cidadania feminina.

            A igualdade real e plena será alcançada assim que entendermos que homens e mulheres são seres diversos, mas com capacidades semelhantes. (45)

            4.3. As Ações Afirmativas de Raça

            Em nosso país, no que diz respeito às Ações Afirmativas de Raça deve-se salientar que elas se refletem principalmente sobre os negros, e para um melhor entendimento da situação faz-se necessária uma análise da história, isto porque, a sociedade brasileira tem uma considerável dívida para com os negros, devido ao seu descaso e injustiça.

            Portanto, historicamente percebemos que o drama dos negros começou em sua terra natal, na África, onde as tribos disputavam entre si a permanência e a conquista de áreas. A partir do início do mercantilismo os derrotados nestas disputas transformavam-se em peças – em objetos que podiam ser vendidos pelas demais tribos, ou por seus colonizadores –, ou seja, passariam a se transformar na mão-de-obra do imperialismo europeu.

            No Brasil, a história dos negros encontra sua origem em nossa colonização. E, a partir dela iniciou-se contra os mesmos um processo acentuado de desigualação social, pois, após a edição da Lei Áurea, não houve a publicação de nenhuma outra lei ou projeto que permitisse a inserção do negro ex-escravo na sociedade, diferentemente do que aconteceu com os demais imigrantes europeus do final do século XIX. Essa falta de implementação à liberdade do negro ex-escravo fez com que as gerações futuras ficassem expostas a um legado de exclusão social.

            Em outros países, como os EUA, a África do Sul, e alguns Estados europeus – que também tiveram um passado escravista – há experiências sociais que viabilizaram aos ex-escravos e a seus descendentes uma maior chance de igualdade em direitos e oportunidades.

            Assim, o tema em questão é o racismo e a desigualdade social.

            O racismo antinegro existente no Brasil, embora dissimulado pelo mito da democracia racial, exclui os afro-brasileiros da sociedade inclusiva, do direito a ter direitos, pois a intolerância racial ignora os afro-brasileiros, relegando-os a uma cidadania amedrontada.(ABREU, 1999: 40) (46)

            Ou seja, o problema que no passado se chamava "escravidão", hoje se chama "desigualdade".

            Até antes do governo de Fernando Henrique Cardoso, iniciado em 1995, a única forma de proteção aos negros brasileiros contra o racismo e a discriminação era através da edição de leis penais.

            Portanto, em nossa pátria desde a extinção da escravidão, a comunidade afro-brasileira nunca foi contemplada com políticas públicas de caráter compensatório.

            Observando toda a evolução histórica da sociedade brasileira percebemos que a falta de oportunidades aos negros ex-escravos influenciou na estratificação social, mas, sobretudo, na concentração racial da riqueza.

            Tudo isto porque no nosso país, como já narramos, os negros e os pardos perfazem cerca de 45,3% da população, ou seja, quase 70 (setenta) milhões de pessoas, o que quer dizer que o Brasil possui a maior população negra fora da África, sendo a segunda maior população negra do mundo, somente inferior à população da Nigéria (Continente Africano).

            E apesar dessa grande miscigenação do povo brasileiro, nosso país possui uma das piores distribuições de renda do planeta, como já foi narrado. (47)

            Até algum tempo atrás, a maioria dos países – inclusive o Brasil – não assumia que em sua nação pudesse haver racismo e discriminação, por isso, acreditamos que o maior progresso das nações no combate à discriminação foi assumirem sua existência. E o marco desta assunção ocorreu em Durban (África do Sul), no final de agosto de 2001, na Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância. (48)

            A discriminação racial é um fato presente, pois, por exemplo, porque os trabalhadores "negros" percebem salários inferiores aos dos trabalhadores "brancos"? Ou ainda pior, porque as "mulheres negras" recebem salários inferiores aos das "mulheres brancas", e muito mais inferiores aos dos "homens brancos"? O que poderia explicar esta distinção? A resposta é uma só, a utilização de critérios discriminatórios baseados na cor dos indivíduos.

            Como já descrito, em nosso país, o legislador utiliza-se apenas da legislação penal para atenuar essas discriminações, não alcançando, como podemos perceber pela análise desse estudo – e pela análise de nosso cotidiano – o sucesso desejado.

            Podemos afirmar que existem pelo menos duas causas para a ineficácia da legislação brasileira antidiscriminatória, a primeira é o "mito" da democracia racial, que na verdade nunca existiu, e apenas serviu para que não se condenassem as práticas discriminatórias; a segunda é a nossa cultura da impunidade, sobre esta acredito, que não precisemos fazer nenhum comentário, pois estamos cansados de conhecê-la.

            A situação legal somente se alterou com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, onde houve o reconhecimento expresso e concreto da existência do racismo em nosso país. Até 05 de outubro de 1988 a única legislação antidiscriminatória existente era a Lei no 1.390, de 1951, "Lei Afonso Arinos", que considerava as manifestações de racismo como meras contravenções penais, que deveriam ser sancionadas com penas de multa.

            Mas, o Brasil ainda tem muito a fazer para poder oferecer aos negros brasileiros pleno acesso aos direitos humanos fundamentais.

            Hoje, há uma intensa movimentação da comunidade negra no Brasil, lutando pela implementação das Ações Afirmativas e de mecanismos para diminuir as desigualdades sociais e raciais, tais como o Sistema de Cotas. (49)

            Em nosso país, começamos a viver sob a experiência de implementação de Ações Afirmativas para os afro-brasileiros, como, por exemplo, é o caso da criação de cotas nas Universidades Públicas Estaduais do Rio de Janeiro (UERJ e UENF) e da Bahia (UFBA).

            Nesta área, existem algumas dificuldades, principalmente para definir quem seria "negro" para fins de tratamento compensatório, e até que ponto, a instituição de cotas seria eficaz no sentido de diminuir a exclusão sem que houvesse um incremento do próprio processo discriminatório.

            4.5. A Complexidade da Implantação do Sistema de Cotas no Brasil

            O sistema de cotas, mínimas e obrigatórias, que devem ser reservadas aos grupos minoritários é a forma mais radical, mais polêmica e mais difundida de Ação Afirmativa.

            Há dois problemas criados pela implementação do Sistema de Cotas: o primeiro, é que ele determina, necessariamente, a exclusão dos membros que não pertencem aos grupos minoritários; e o segundo, é saber se esta implementação não afronta o princípio da igualdade formal. (50)

            A situação contém um paradoxo, pois, para implementar-se o princípio da igualdade material é necessário aplicar um critério de justiça distributiva, que reverta – na prática – os efeitos da discriminação. Para isso, a solução encontrada é a redução das chances de acesso à maioria da população, pelo simples fato de pertencerem a ela. Analisando por este aspecto, há uma aparente violação do princípio da igualdade formal, porém, somente com a análise do caso concreto e observando a ponderação dos princípios, é que poderemos decidir sobre essa violação.

            Acreditamos que para a implementação de Ações Afirmativas, tais como o Sistema de Cotas, seja necessário observar alguns critérios: a) primeiramente, o critério para discriminação deve basear-se em uma discriminação pretérita de um grupo definido, e que, necessariamente, surta efeitos no presente, pois, caso contrário será inconstitucional; b) observar sempre se não há outras medidas que alcancem o mesmo fim, ou seja, a equiparação material, se houver, o sistema de quotas se torna dispensável; c) e por último, deve-se observar o critério discriminatório, evitando que este elimine definitivamente a possibilidade de concorrência dos membros da maioria.

            Já para Ronald Dowrkin a implementação de cotas só se justifica se temporária, destinada a corrigir uma distorção e a fazer com que o critério discriminatório, ao longo do tempo, seja dissolvido. (51)

            Acreditamos que é muito difícil dar uma resposta teórica à questão da constitucionalidade das cotas, porque isso, dependerá de fatores, tal como: o critério discriminatório escolhido, a relação entre a discriminação efetuada e o fim perseguido, a necessidade da restrição, a adequação ao escopo a que se presta e a intensidade da reserva feita.

            A iniciativa de reservar cotas para negros partiu, inicialmente, do então Ministro do Desenvolvimento Agrário (52), Raul Jungmann, que, em outubro de 2001, determinou, dentre requisitos para a seleção de empresa prestadora de serviços ao Ministério, a condição de pelo menos 20% (vinte por cento) dos seus empregados serem negros. Tal medida foi acompanhada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio de Mello, que incluiu o mesmo requisito entre os necessários para a habilitação de prestadoras de serviços ao Supremo Tribunal Federal e defendeu a sua constitucionalidade.

            Devemos salientar também que com relação as cotas destinadas aos cargos públicos e às vagas nas faculdades, encontramos diversos estudiosos contrários a elas, considerando-as inconstitucionais, sob o argumento de que o critério que deve prevalecer na seleção dos candidatos para ambas as vagas deve basear-se na aferição de competência dos mesmos, isto é, um critério que não visualiza os problemas raciais. (53)

            A Universidade de Brasília (UnB) foi uma das primeiras faculdades a discutir a institucionalidade da reserva de vagas para negros.

            Já nos EUA essas iniciativas foram além do ingresso na educação superior, pois também foram implementadas no âmbito do mercado de trabalho e nos contratos governamentais.

            No Brasil, foram ajuizadas diversas ações para anular os efeitos dessa lei, sob a alegação de inconstitucionalidade.

            Na verdade, há uma tensão de valores constitucionais igualmente relevantes, acreditamos que somente o critério da proporcionalidade poderá revelar as devidas extensões de cada princípio.

            Por exemplo, hoje esta em pauta no Senado uma lei de autoria do Governo Federal que visa aumentar a chance dos menos favorecidos – negros e pobres – no ingresso às faculdades públicas, tendo como justificativa que somente ingressam nestas faculdades alunos de classe média alta que tiveram a oportunidade de cursar o ensino médio em escolas particulares, ou seja, que tiveram mais oportunidades.

            Neste caso específico, percebe-se o erro governamental na implementação desta lei, afinal uma ação afirmativa neste contexto não poderá e não surtirá os efeitos desejados, isto porque, o problema não está no ingresso às faculdades públicas ou particulares, mas sim na péssima qualidade do ensino fundamental e médio público de nosso país. Portanto, é neste aspecto que o Governo Federal deveria se ater, em investir maciçamente e melhorar o ensino público para que os alunos deste tenham condições de competir em nível de igualdade de oportunidades com os alunos do ensino médio particular.

            A criação destas cotas, para os alunos provindos do ensino público, não resolverá o problema da educação brasileira, muito pelo contrário, já que os alunos que ingressarão nestas faculdades estaduais não possuem uma boa base educacional, não poderão acompanhar os demais alunos, que tiveram esta base de aprendizagem.

            O Governo com esta lei apenas dificultará futuras implementações de ações positivas realmente necessárias e valorativas, já que a verdade é que esta lei visa "tapar o sol com a peneira" tentando resolver um sério e grave problema brasileiro, nossa educação, com uma medida paleatória que só esta causando conflito e discussões, e que irá prejudicar tanto os alunos que deveriam ingressar nas faculdades estaduais por sua própria capacidade, quanto aqueles que ingressarem devido a este sistema de cotas.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Karina Melissa. Brasil x apartheid social.: As ações afirmativas como meio para superação das desigualdades raciais e de gênero. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 677, 13 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6711. Acesso em: 10 mai. 2024.

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