IV. À guisa de conclusão.
Em vista das omissões profligadas, e pelos fundamentos expostos, é razoável sustentar que o artigo 149 do Código Penal ainda está a merecer, a despeito da recente promulgação da Lei 10.803/2003, uma redação mais abrangente e adequada à magnitude do problema, à sua gravidade e à sua disseminação pelas plagas brasileiras, como também ao conteúdo que o direito internacional público reservou à noção de "escravidão" e situações análogas. Mais que isso, é forçoso convir que, se antes de 12.11.2003 essa modificação era conveniente mas não necessária, agora, com o engessamento operado pela lei recente, tornou-se por tudo ingente.
Por assim concluir, poder-se-ia formular, à conta de sugestão, uma nova redação para os preceitos primários e secundários, nos seguintes termos:
"Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, assim entendido o estado da pessoa sobre a qual se exerce, total ou parcialmente, subordinação indigna ou atributos inerentes ao direito de propriedade, notadamente:
"I – a submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva;
"II – a submissão a condições degradantes de trabalho, como a inexistência de acomodações indevassáveis para homens, mulheres e crianças, a inexistência de instalações sanitárias adequadas, com precárias condições de saúde e higiene, a falta de água potável, a alimentação parca, a ausência de equipamentos de proteção individual ou coletiva e o meio ambiente de trabalho nocivo ou agressivo;
"III – a restrição, por qualquer meio, da locomoção em razão de dívida contraída com o empregador, o tomador de serviços ou seus prepostos;
"IV – o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
"V – a vigilância ostensiva no local de trabalho ou posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
"VI – a inadimplência contumaz de salários associada à falta de registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social e a toda forma de coação física ou moral;
"VII – o aliciamento para o trabalho associado à locomoção de uma localidade para outra do território nacional, ou para o exterior, ou do exterior para o território nacional;
"VIII - o cerceamento da liberdade ambulatória;
"IX - qualquer outro modo violento, degradante ou fraudulento de sujeição pessoal na forma do caput.
"Pena ¾ reclusão, de três a quinze anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
"Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
"I – contra criança ou adolescente;
"II – contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos;
"III - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem".
Dessa sugestão, porém, não é importante que se a encampe, total ou parcialmente, nos termos postos. Importante é que, balizando-se pelas razões de constitucionalidade e de justiça aqui oferecidas, o tipo penal do plágio, tão relevante para a salvaguarda da normalidade das relações de trabalho e da ordem socioeconômica no tempo presente, receba do legislador ¾ e, à sua falta, do intérprete ¾ uma fórmula mais apta à geração dos efeitos de prevenção penal negativa e sobretudo de prevenção penal positiva, conferindo ao valor liberdade posição emblemática no panteão dos bens jurídico-penais, digna de seu papel na auto-realização do homem e menos apegada ao que foi a figura histórica da escravidão, de triste memória, que tende a se reciclar no mundo globalizado.
V. Bibliografia.
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TELES, Ney Moura Teles.Direito Penal: parte especial.São Paulo: Atlas, 2004. v. II.
Notas
1 Cfr., por todos, Ney Moura Teles, Direito Penal: parte especial, São Paulo, Atlas, 2004, v. II, p.302 (separata): "A redação original do art. 149 levava a enormes dificuldades para a verificação da tipicidade do fato, exigindo-se, então, que o agente realizasse condutas que, em seu conjunto, impusessem à vítima a modificação de seu estado de liberdade, alterando seu estado de liberdade natural de ser humano livre, de modo que se assemelhasse ao estado de fato de um verdadeiro escravo, sem o poder de decidir sobre seus destinos. (...) Com a nova redação do art. 149, dada pela Lei n° 10.803, de 11 de dezembro de 2003, as dificuldades ficam minimizadas, senão que desaparecem".
2 "Reduzir alguém a condição análoga à de escravo: Pena ¾ reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos".
3 Cfr. carta aberta da Comissão Pastoral da Terra (Coordenação da Campanha contra o Trabalho Escravo) ao Governo Federal, de 10.05.2003, in http://www.dominicanos.org.br/jp/escravo.htm (acesso em 02/2004). Há, porém, projeções mais alarmantes: "Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam estimativas de que o Brasil tem, atualmente, cerca de 15 mil trabalhadores escravos [em 2002]. Nos últimos três anos, os números aumentaram em dez vezes. Em 2000 era de 465 o número conhecido de pessoas utilizadas no regime de escravidão. Segundo o setor de documentação da CPT, de janeiro até o início do mês de novembro deste ano, 4.312 casos foram registrados. No âmbito urbano, os dados também são assustadores. Registros da Pastoral do Migrante de São Paulo são de que moram 350 mil pessoas de forma clandestina na cidade e, destas, 120 mil desenvolvem atividades análogas à escravidão. No exterior também há casos de brasileiros trabalhando como escravos. É o caso do Suriname, onde cerca de 40 mil paraenses e maranhenses vivem de forma subumana, trabalhando 12 horas por dia e sem nenhum direito" (Evanize Sydow, "Decuplicam casos de trabalho escravo no Brasil nos últimos três anos" ¾ g.n.). Cfr. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (sítio), in http://www.social.org.br/relatorio2002/relatorio012.htm (acesso em 02/2004).
4 Paulo José da Costa Jr., Direito Penal: curso completo, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p.303.
5 A. J. da Costa e Silva, "Plágio", in Justitia (órgão da Procuradoria-Geral de Justiça/Associação Paulista do Ministério Público) n. 39, p.11.
6 E. Magalhães Noronha, Direito Penal, São Paulo, Saraiva, 1969, v. 2, p.165. In verbis: "Não é preciso também a inflição de maus tratos ou sofrimento ao sujeito passivo. Mesmo a vida de confôrto e ócio pode concretizar o delito: v.g., a venda de uma filha ao harém de um sultão".
7 "Na mesma pena incorre quem realiza contrato de compra e venda de pessoa humana". A rigor, tratar-se-ia de "contrato" nulo de pleno direito, por ter objeto ilícito ¾ ou, mais adequadamente, contrato inexistente, por ausência de objeto (o ser humano é, por definição natural e positiva, sujeito de direitos).
8 Cfr. a referência a essa idéia em E. Magalhães Noronha, op.cit., p.164: "Já se falou que o delito se cifra na sujeição total de um homem a outro. Quase sempre o fim será a prestação de trabalhos".
9 Reconheceu-se delito de plágio, e.g., na prática do truck-system (endividamento de trabalhadores em armazéns da própria fazenda) aliada à sujeição de trabalhadores rurais a serviços pesados e extraordinários (RT 484/280).
10 "São crimes de forma vinculada aqueles em que a lei descreve a atividade de modo particularizado. Ex.: art. 284. Nesse caso, o legislador, após definir de maneira genérica a conduta, especifica a atividade (incisos da disposição). (...) A formulação vinculada ou casuística pode ser: a) cumulativa; b) alternativa. (...) O crime é de forma vinculada alternativa quando o tipo prevê mais de um núcleo, empregando a disjuntiva "ou", como acontece nos arts. 150, caput, 160, 161, 164 etc." (Damásio E. de Jesus, Direito Penal: parte geral, 25ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, 1º v., pp.212-213). In casu, o legislador rompeu com a tradição do Código, utilizando a disjuntiva "quer".
11 Cfr., sobre a redação original: "Nossa lei não se preocupa com os meios de que o agente lança mão. Pode dar-se pelo seqüestro, mas nada impede que a consecução da submissão do sujeito passivo se faça por violência, ameaça ou fraude" (E. Magalhães Noronha, op.cit., p.164).
12 Ney Moura Teles, op.cit., p.302.
13 Idem, ibidem.
14 "O delito em questão pode concorrer com outros: rapto, estupro, lesão corporal, etc. Não, porém, com os delitos precedentes, que por êle são absorvidos" (E. Magalhães Noronha, op.cit., p.166). Cfr. ainda Ney Moura Teles, op.cit., p.303 (anterior à separata): "O constrangimento ilegal, a ameaça, o seqüestro e o cárcere privado podem ser crimes-meio ou partes, ou fases do crime-fim que é a redução à condição análoga à de escravo, o qual, por isso, absorve aquelas infrações, respondendo o agente tão-somente por este. O plágio é o mais grave dos crimes contra a liberdade pessoa, absorvendo, por isso, os demais". A redação foi mantida na separata, no que merece reparo: a partir da Lei 10.803/2003, a violência empregada no constrangimento ilegal, p. ex., será autonomamente apenada, sem absorção.
15 "Verifica-se o antefactum não punível quando uma conduta menos grave precede a uma mais grave como meio necessário ou normal de realização. A primeira é consumida pela segunda, em face do princípio id quod plerumque accidit. Para Grispigni, exige-se que haja ofensa ao mesmo bem jurídico e pertença ao mesmo sujeito. Em conseqüência da absorção, o antefato torna-se um indiferente penal" (Damásio E. de Jesus, op.cit., p.118).
16 Os dois últimos (estupro e atentado violento ao pudor) não poderiam mesmo ser absorvidos, sequer à mercê da redação original do artigo 149 do CP, porque não se encontram na linha normal de execução do crime de plágio: para reduzir alguém à condição análoga à de escravo, pode ser necessária a violência e a agressão, a depender do grau de resistência da vítima; jamais, porém, será estritamente necessário o atentado à liberdade sexual.
17 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal: parte especial, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, pp.385-386.
18 Autos n. 2003.41.00.003385-5 (Justiça Pública vs. José Carlos de Souza Barbeiro [fazendeiro] e Lídio dos Santos Braga [agricultor]).
19 Cfr. Guilherme Guimarães Feliciano, "Aspectos penais da atividade jurisdicional do juiz do trabalho", in RT 805/453-459.
20 Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé, Trabalho Escravo no Brasil, São Paulo, LTr, 2001, pp.79-81 (citando Eudoro Santana, "Órfãos da abolição: tráfico de trabalhadores e trabalho escravo").
21 Idem, ibidem.
22 Que compreendemos haver in casu, a despeito de valiosas digressões em sentido contrário. Negando a discricionariedade judiciária, cfr., por todos, Eros R. Grau, "Crítica da Discricionariedade e Restauração da Legalidade", in Carmen Lucia Antunes Rocha (coord.). Perspectivas do direito público: estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagundes, Belo Horizonte, Del Rey, 1995, passim.
23 Cfr., supra, nota n. 7.
24 "Qualquer membro da Organização do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma: a.) como medida de coerção, ou de educação política ou com sanção dirigida a pessoas que tenham ou exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua oposição ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida; b.) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico; c.) como medida de trabalho; d.) como punição por participação em greves; e.) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa".
25 Na Espanha, a conduta é objeto da norma penal do artigo 312 da ley orgânica 10/95 (código penal), in verbis: "1. Serán castigados con las penas de seis meses a tres años y multa de seis a doce meses, los que trafiquen de manera ilegal con mano de obra. 2. En la misma pena incurrirán quienes recluten personas o las determinen a abandonar su puesto de trabajo ofreciendo empleo o condiciones de trabajo engañosas o falsas, y quienes empleen a súbditos extranjeros sin permiso de trabajo en condiciones que perjudiquen, supriman o restrinjan os derechos que tuvieran reconocidos por disposiciones legales, convenios colectivos o contrato individual". Interessante observar que, se antes a preocupação das nações era evitar o ingresso de trabalhadores imigrantes para preservar o mercado de trabalho nacional (como consta, ainda hoje, dos artigos 352 a 358 da Consolidação das Leis do Trabalho), hoje a preocupação é com o resguardo dos direitos fundamentais do trabalhador, independentemente de sua nacionalidade. No Brasil, até hoje não há tipo penal específico para o marchandage ilegal, a despeito das inumeráveis fraudes e violações de direitos humanos que, por conta desse expediente, já chegaram às barras dos tribunais do trabalho.
26 RTJ 66/687-688, rel. Min. Bilac Pinto (g.n.). A transcrição, porém, é in totum de trecho da obra de Alípio Oliveira (Normas para la interpretación en El Criminalista, t. V, p. 195, in Hermenêutica no Direito Brasileiro).
27 Op.cit., p.53.