I. Introdução.
Em 11 de dezembro de 2003, foi promulgada a Lei n. 10.803/2003 (D.O.U. 12.12.2003), que "altera o art. 149 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 ¾ Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo". Com as alterações e os acréscimos da indigitada lei, o artigo 149 do Código Penal brasileiro passou a ter a seguinte redação:
"Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena ¾ reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
"§1º. Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
"§2º. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem".
É certo que o novel diploma introduziu inovações importantes para o tratamento jurídico-penal do trabalho escravo no Brasil, como anotaram alguns autores [1]. A rigor, qualquer especialização do tipo penal seria bem-vinda, diante da lacônica redação original do artigo 149 do CP [2]. Ademais, os números alarmantes da escravidão contemporânea no Brasil ¾ à marca aproximada de 25 mil trabalhadores em 2003 [3] ¾ exigiam medidas legislativas ingentes no sentido de recrudescer os dispositivos de repressão e aperfeiçoar os mecanismos de prevenção. A Lei 10.803/2003 ateve-se, infelizmente, apenas à primeira providência; mas, de todo modo, ao menos nisso avançou.
Nada obstante, superada a euforia de sua promulgação, conclui-se, pelo exame mais detido, que o novo texto legal peca por omissões, senão por impropriedade. É o que se demonstrará a seguir.
II. Das inovações em relação à Parte Especial de 07.12.1940.
No preceito primário do artigo 149, o legislador cuidou de especificar as condutas que configuram o crime de redução a condição análoga à de escravo (o plágio), imprimindo concreção conceitual ao que antes não passava de uma noção. Com efeito, os autores divergiam sensivelmente na exegese do preceito original, dada a imprecisão de seu texto. Para alguns, apenas se consumava o crime quando o sujeito ativo anulava totalmente a liberdade humana da vítima reduzindo-o à condição de coisa, "como o escravo da velha Roma", e exercendo sobre ela completo senhorio e domínio [4]. Outros, antecipando a grave mazela social que as estatísticas atuais denunciam, já identificavam o delito na conduta de tratar indivíduo, em uma fazenda, como se escravo fosse, impedindo-o de deixá-la e privando-o de salários [5] (o que não significa exercer "completo senhorio e domínio" sobre a pessoa, desde que haja relativa liberdade nos lindes da própria fazenda, sem disciplina de cárcere). Magalhães Noronha admitia a configuração do crime mesmo em uma vida de conforto e ócio [6], como na venda de uma filha à pessoa que mantivesse harém clandestino (escravidão sexual). O tipo serviria ainda à subsunção penal da conduta consistente em comprar e vender pessoa humana, à míngua de norma penal específica (que, prevista no Anteprojeto de Código Penal de Nelson Hungria ¾ artigo 156, par. único [7] ¾ , acabou não vingando, como todo o resto). Outros ainda vinculavam o delito à prestação de trabalhos forçados, como na escravidão negra do Brasil Colônia e do Brasil Império [8]. Enfim, tratava-se de tipo penal aberto, cabendo ao intérprete da lei determinar, segundo suas impressões e seu substrato cultural, o que fosse "condição análoga à de escravo". De toda feita, o preceito era geralmente útil ao combate da escravidão contemporânea, desde que a sua exegese e aplicação coubessem a bons juízes e promotores [9].
Com a Lei 10.803/2003, o legislador recompôs esse estado de direito, convolando em tipo penal fechado a fattispecie do artigo 149 do Código Penal, para cerrar a noção em um conceito bem específico ¾ e, em nossa opinião, "fechando-o" até demais (infra, tópico III). Com a vigência da lei, a redução da pessoa a condição análoga à de escravo passa a exigir, de quatro, uma das seguintes condutas (modos de execução): a. sujeição da vítima a trabalhos forçados; b. sujeição da vítima a jornada exaustiva; c. sujeição da vítima a condições degradantes de trabalho; d. restrição, por qualquer meio, da locomoção da vítima em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Passa-se a ter, portanto, um crime de forma vinculada alternativa [10](antes era crime de forma livre [11]), o que pode representar, para alguns condenados, abolitio criminis de viés, passível de retroação (artigo 5º, XL, 2ª parte, da CRFB). E, a par disso, a doutrina tende a continuar exigindo ¾ como não poderia deixar de ser ¾ "que (...) a vítima seja colocada numa situação de absoluta submissão aos desejos do agente", pois "aí passa a experimentar uma condição semelhante à do escravo histórico, que não tinha personalidade, que era uma coisa e como tal trabalho, objeto de contrato de alienação ou de empréstimo, desrespeitado no seu direito de ir e de vir, no direito de ter sua integridade física e moral intocados, enfim, sem qualquer possibilidade de se autodeterminar" [12]. Noutras palavras, a discussão acaba sendo reconduzida ao estado anterior: o que é, concretamente, redução a condição análoga à de escravo? A definição entreabre-se, outra vez, às múltiplas convicções dos operadores jurídicos ¾ com a diferença de que, agora, uma situação de mitigação inegável do status libertatis (e.g., o caso da jovem "vendida" a luxuoso harém clandestino) não será plágio se não se verificarem algum dos quatro modos de execução recém-tipificados, como também não será plágio a realização de uma ou mais dessas condutas, "sem que, com qualquer dessas condutas resulte a redução do status libertatis da vítima, com sua conversão ao estado análogo ao de escravo" [13].
No tocante ao preceito secundário (pena), a Lei 10.803/2003 agravou ligeiramente a situação anteriormente dada. Antes, cominava-se apenas a pena reclusiva de dois a oito anos, sem multa. Agora, há multa cumulativa, que deverá ser calculada na forma dos artigos 49, caput e §§ 1º e 2º, e 60, caput e §1º do CP, ut artigo 58, caput, do mesmo diploma. A par disso, o novo preceito secundário ressalva, expressamente, a pena correspondente à violência. Assim, entendendo-se que o crime pode ser executado mediante violência, ameaça ou fraude (que são meio de execução, e não modo, esse sim vinculado), é certo que o delito de plágio absorve os crimes-meio cujos conteúdos sejam a ameaça (e.g., artigo 147 do CP) e a fraude (e.g., artigo 175, I, do CP), por força do princípio hermenêutico da consunção; por outro lado, à mercê da nova redação, aquele delito não absorve crimes-meio cujos conteúdos sejam a violência, ao contrário do que antes se entendia [14]. Assim, com a nova lei, todo e qualquer ato de violência empregado para reduzir o sujeito passivo a condição análoga à de um escravo passa a ter relevância penal necessária, perdendo a qualidade contextual de antefactum impunível [15]. Bem ao contrário, a norma preordena o concurso material, consoante artigo 69 do CP, com acréscimo das penas correspondentes ao ato de violência, se formalmente típico (o que alcança, em tese, desde as vias de fato do artigo 21 da Lei de Contravenções Penais até as lesões corporais gravíssimas, o estupro, o atentado violento ao puder e outros ilícitos [16]).
Enfim, a Lei 10.803/2003 introduziu três hipóteses de plágio por assimilação (artigo 149, §1º, I e II) e duas causas de aumento de pena (artigo 149, §2º, II), antes inexistentes. As figuras típicas assimiladas ao caput exigem, todas, o dolo específico (elemento subjetivo do injusto), a saber, o fim de reter as vítimas no local de trabalho. Só haverá assimilação se houver, pelo sujeito ativo, essa especial intenção que deve motivar as condutas típicas (o cerceamento do uso de meios de transporte pelos trabalhadores, a vigilância ostensiva do local de trabalho ou a posse dos documentos e/ou objetos pessoais dos trabalhadores). Já a causa de aumento de pena tem aplicação se o crime de plágio é cometido contra criança ou adolescente (sendo crianças as pessoas com até doze anos incompletos eadolescentes as pessoas de doze a dezoito anos, ut artigo 2º da Lei 8.069/90) ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (plágio preconceituoso ou discriminatório). Nesse derradeiro caso, há também um elemento subjetivo especial, a saber, o "especial fim de discriminar o ofendido por razão da raça, cor, etnia, religião ou origem" [17], como já ocorre com a injúria preconceituosa ou discriminatória (artigo 140, §3º, do CP, ut Lei 9.459/97). Ainda aqui, segundo pensamos, a forma majorada absorve o crime do artigo 20 da Lei 7.716/89 (crime de prática de discriminação, inafiançável e imprescritível, ut artigo 5º, XLII, da CRFB, e Lei 7.716/89), porque os elementos desse último são constitutivos da condição majorante do artigo 149, §2º, II, que agrega a um ilícito mais grave. De outro modo, dar-se-ia bis in idem em detrimento do réu.
III. Da escravidão contemporânea no Brasil. Omissões da Lei 10.803/2003.
Já pelos argumentos destrinçados no tópico anterior, conclui-se que, se a nova redação do artigo 149 do CP representou avanço na repressão da escravidão contemporânea no Brasil, não andou bem na redução conceitual empreendida. Por um lado, olvida diversas condutas que, no Brasil, tem sido iterativamente associadas a quadros de escravidão contemporânea. Daí as omissões. Por outro, ao transformar o delito em crime de forma vinculada alternativa, obstou a devida subsunção das outras condutas que, a rigor, conduzem à condição análoga à de escravo, e das demais que possam vir a ser engendradas pelo gênio criativo do capitalista delinqüente.
Os grupos de repressão à escravidão contemporânea têm identificado, nos últimos anos, diversos elementos indiciários da redução de pessoas a condição análoga à de escravos, notadamente nas zonas rurais. Merece particular atenção denúncia-crime conjunta do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho, oferecida à Justiça Federal de Rondônia (3ª Vara de Porto Velho) [18], em que foram discriminados diversos elementos que tendem a caracterizar, hodiernamente, a escravidão no campo. Ei-los:
1. falta de pagamento de salários;
2. alojamento em condições subumanas (e.g., barracos de lona);
3. inexistência de acomodações indevassáveis para homens, mulheres e crianças (convivência promíscua);
4. inexistência de instalações sanitárias adequadas, com precárias condições de saúde e higiene (e.g., falta de material de primeiros socorros ou de fossas sépticas);
5. falta de água potável e alimentação parca;
6. aliciamento de trabalhadores de uma para outra localidade do território nacional (que, isoladamente, configura o crime do artigo 207, caput, do CP, com pena cominada de um a três anos e multa);
7. aliciamento de trabalhadores de fora para dentro ou de dentro para fora do país (e.g., bolivianos e outros hispano-americanos mantidos em condições análogas à de escravo em fábricas têxteis clandestinas nos grandes centros urbanos);
8. truck-system (os populares "barracões", que têm representado o renascimento da servidão por dívidas);
9. inexistência de refeitório adequado para os trabalhadores e/ou de cozinha adequada para o preparo de alimentos;
10. ausência de equipamentos de proteção individual e/ou coletiva;
11. meio ambiente de trabalho nocivo (selva, chão batido, animais peçonhentos, umidade etc.);
12. coação física ou moral (vis relativa ou absoluta);
13. cerceamento da liberdade ambulatória (o direito de ir e vir é limitado pelas distâncias, pela precariedade de acesso ou pela vigilância pessoal);
14. falta de assistência média;
15. vigilância armada e/ou presença de armas na fazenda;
16. ausência de registro em CTPS.
Essas condições traduzem, com efeito, a situação de um trabalhador em regime de semi-escravidão, pois tornam a sua condição análoga à de um escravo, naquilo que era a idéia fundamental do instituto jurídico da escravidão (que ainda tinha assento, entre nós, no recém-revogado Código Comercial de 1850): a pessoa como res, despossuída, privada de direitos mínimos (inclusos os fundamentais) e moral ou fisicamente acuada. Tomando aquele documento (a denúncia) como contribuição doutrinária, vínhamos considerando, para fins de exercício da jurisdição trabalhista, que a presença desses elementos indiciários, na totalidade ou em maioria, seriam bastantes para a caracterização da escravidão contemporânea (e, por conseguinte, do delito de plágio in tese, dando ensejo à notitia criminis compulsória do artigo 40 do Código de Processo Penal [19], além de todas as repercussões trabalhistas típicas). Agora, com a edição da Lei 10.803/2003, essa ordem de consideração torna-se mais custosa, senão desautorizada, porque apenas as condições indiciárias dos itens 2, 3, 4, 5, 7, 9, 10 e 14 supra ¾ pouco mais da metade ¾ foram contempladas (a maioria por exegese da expressão "condições degradantes de trabalho", que é elemento normativo do tipo), e em numerus clausus. Visto por essa ângulo, a nova legislação antes dificulta que facilita a subsunção penal do neo-escravismo e o combate à impunidade no campo.
Deve-se ter em mente que a escravidão contemporânea ¾ ou ao menos o seu boom ¾ é produto lateral da chamada "globalização" da economia. Nas regiões e nos Estados brasileiros onde a agricultura está inserida mais fortemente numa economia de mercado, buscando competitividade junto aos consumidores do país e do exterior, os índices de trabalho escravo tendem a ser maiores: "relações de trabalho arcaicas e desumanas persistem e até são incrementadas em nosso modelo de desenvolvimento" [20], fundado no neoliberalismo econômico, na acumulação de divisas pelo superávit da balança comercial e na livre concorrência. Citem-se, como exemplo, os recursos que o Governo Federal injetou no processo de reflorestamento da região amazônica, à época dos governos militares pós-64, para fins industriais: o objetivo inconfesso do investimento fora o de deter o crescimento das ligas camponesas, que encarnavam a "ideologia do inimigo" (a ideologia socialista-marxista), sinalizando favoravelmente à burguesia conservadora e anti-reformista com incentivos fiscais e grandes obras de infra-estrutura. Ali, onde a empresa brasileira foi estimulada a se tornar competitiva, é onde agora grassa o trabalho escravo [21].
Dessarte, combater adequadamente o neo-escravismo no Brasil, inclusive mediante um competente arcabouço penal, é imperativo ético e jurídico improrrogável no limiar do século XXI. Significa, a um tempo, oferecer máxima guarida aos direitos de primeira geração (a liberdade individual e seus consectários), de segunda geração (os direitos trabalhistas típicos ínsitos à Consolidação das Leis do Trabalho e à legislação correlata) e ¾ como se constata supra ¾ inclusive os de terceira geração (direitos de solidariedade e seus consectários, coibindo, nos efeitos, um dos aspectos mais nefastos do capitalismo tardio na era da economia globalizada). Para esse mister, conviria reformular a redação atual do artigo 149 do Código Penal, aperfeiçoando-a, a despeito de certo prejuízo ao sentimento de estabilidade jurídica. Se não, vejamos.
Em geral, os delitos de escravidão na legislação comparada realmente são descritos mediante tipos penais abertos. Assim é, p. ex., na Itália (artigo 600 do regio decreto de 19.10.1930, n. 1398 ¾ codice penale) e em Portugal (artigo 159º do decreto-lei 48/95 ¾ código penal), embora com penas bem mais expressivas (cinco a quinze anos, em ambos os casos). Com isso, garante-se ao operador jurídico certa margem hermenêutica para a subsunção de condutas novas que, a seu modo, conduzam a pessoa humana à condição análoga à de escravo; mas, em contrapartida, dá-se ensejo a um grau de discricionariedade judiciária [22] nem sempre aconselhável. No Brasil, com a edição da Lei 10.803/2003, optou-se pela especificação dos modos de execução do delito.
A opção não é má, pois previne os arroubos de paleorrepressão ou a inação jurisprudencial que usualmente acompanhavam tipos penais excessivamente abertos, subministrando ao intérprete elementos mais palpáveis para o processo intelectivo de subsunção penal. Nada obstante, teria sido mais salutar, na enumeração das condutas, atentar não apenas para a casuística nacional, mas sobretudo para os textos jurídicos de direito internacional público que informam a matéria. Assim, e.g., a Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, da Organização das Nações Unidas (Genebra, 1956); a Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado, da Organização Internacional do Trabalho (Genebra, 1957); e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (Roma, 1998). Desse modo, legislar-se-ia também para o futuro, e não apenas com vistas às chagas já abertas no tecido social brasileiro. Valiosa, p. ex., a definição do artigo 7º, 2.c, do Estatuto de Roma (Decreto n. 4.388, de 25.09.2002), sugerindo contornos seguros à figura da escravidão: "o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças". Na redação atual do artigo 149 do CP, dificilmente se obteria subsunção válida da conduta, visada por Hungria [23], da compra e venda de pessoas, se não se verificarem claramente os modos de execução recém-positivados (ou se não houver provas). Outra contribuição valiosa consta do artigo 1º da Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado (OIT), em face do qual se pode definir o trabalho forçado ou obrigatório pelo móvel psicológico da conduta (a partir dos fins políticos que a convenção vedou aos Estados-membros), o que traria, na espécie, estreita afinação entre a lei penal e a teoria final da ação e resolveria, nessa esteira, os incontáveis conflitos aparentes entre a norma do artigo 149 e outras normas penais tuitivas da liberdade ou da organização do trabalho [24]. Confiram-se também os subsídios fornecidos pela Convenção de Genebra de 1956 (Decreto Legislativo n. 66/56, Decreto n. 58.563/66 do Poder Executivo Federal): "a escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade" (artigo 1º). O documento ainda permite delimitar, como figuras análogas à escravidão, (a) as condutas de capturar, adquirir ou ceder indivíduos com o propósito de reduzi-los à escravidão ou a condição análoga, ou (b) todo ato de aquisição de pessoas com o propósito de vendê-las ou trocá-las, ou ainda (c) todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de uma pessoa sob prévio domínio (artigo 2º c.c. artigo 5º).
Mais relevante que a enumeração em si mesma, porém, é a sua função hermenêutica. Era de toda necessidade que a enumeração do artigo 149 do CP fosse exemplificativa, de modo a prevenir a paralisia hermenêutica. Mas, ao revés, optou-se por uma enumeração exaustiva, que obsta aplicações flexíveis, ante a proibição da analogia in malam partem que deflui da norma do artigo 5º, XXXIX, 1ª parte, da CRFB. Impede-se, com isso, a interpretação histórico-evolutiva, que permitiria ao Poder Judiciário acompanhar e reprimir os novos modos de execução ditados pela modificação das condições socioeconômicas e pela genialidade criminal (veja-se, e.g., a atuação dos "gatos" brasileiros, que mercanciam força de trabalho no campo e arregimentam hipossuficientes econômicos para as novas formas de servidão [25]). Resolver esse impasse seria relativamente simples: bastaria recorrer aos termos legais de interpretação analógica.
Com efeito, já vai de muitos anos acórdão do Supremo Tribunal Federal (Pleno) em que se reconhecia que "devemos repelir a analogia, porque, se o Direito Penal é um direito liberal, não admite de modo algum esses perigos à liberdade do homem e do cidadão. Mas uma coisa é repelir a analogia, e outra admitir interpretação analógica. A analogia é a aplicação, a um caso concreto, de uma lei, cuja vontade não era captar este fato que aparece no horizonte da realidade quotidiana. Ao invés, a interpretação analógica é uma forma de interpretação extensiva, como dizia Bobbio; é simplesmente um raciocínio jurídico [e não uma integração de lacuna], uma aplicação imanente do Direito, que às vezes se encontra, de modo taxativo, exigida pelos códigos, até empregando a palavra analogia" [26]. É o que se dá, p. ex., com as normas penais incriminadoras do artigo 121, §2º, do CP (homicídio qualificado): as expressões "ou por outro motivo torpe", "ou outro meio insidioso ou cruel", "ou [outro meio] de que possa resultar perigo comum" e "ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido" admitem expressamente a aplicação analógica da norma incriminadora a todos os casos que possam ser compreendidos por semelhança, à mercê dos casos enumerados em correspondência direta (respectivamente: paga ou promessa de recompensa; emprego de veneno, fogo, asfixia ou tortura; emprego de fogo ou explosivo; à traição, de emboscada ou mediante dissimulação). Na dicção de Damásio de Jesus, "é a própria norma penal incriminadora que permite o emprego da analogia. É, pois, da vontade da lei abranger os casos semelhantes" [27], mas não como forma de suprir lacunas da lei penal (pois, nesse caso, haveria inconstitucionalidade), e sim como forma de melhor interpretá-la, quanto ao seu sentido e alcance. Dessarte, para dirimir o problema bastaria ter acrescido, à parte final do caput, a expressão "ou por qualquer outro modo violento, degradante ou fraudulento", ali entendida a violência absoluta (física) ou relativa (moral).
Entre as causas de aumento de pena do artigo 149, §2º, do CP, caberia ter incluído, ao lado da criança e do adolescente, a pessoa do idoso, atendendo ao espírito da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que incluiu a pessoa idosa em diversos preceitos agravantes do Código Penal (e.g., artigos 121, 4º, 133, III, 140, 3º, 141, IV, 148, 1º, 159, 1º, 183, III etc., ut artigo 110 do Estatuto). Por idoso há que se entender a pessoa com mais sessenta anos, em conformidade com o artigo 1º c.c. artigo 110 da Lei 10.741/2003.
Enfim, adequando o preceito secundário à legislação de outros países de tradição jurídica romano-germânica (notadamente, Itália e Portugal), era ainda de toda conveniência modificar os limites máximo e mínimo da pena privativa de liberdade cominada no artigo 149, fixando-os entre três e quinze anos. Com o limite mínimo de três anos (inferior ao mínimo de cinco anos adotado pelos diplomas peninsulares), retirar-se-ia dos réus processados e condenados pela prática de crime dessa gravidade o benefício do sursis (suspensão condicional da pena, ut artigo 77, caput, do CP), à exceção do etário (artigo 77, §2º). E com o limite máximo de quinze anos, sinalizar-se-ia à sociedade que a salvaguarda jurídica da liberdade, sob tais dimensões, é mais relevante que a tutela jurídica do patrimônio (uma vez que as penas máximas cominadas para o roubo simples e para a extorsão simples são de dez anos), equivalendo àquela reservada para a liberdade quando associada ao patrimônio (vide artigo 159 do CP, com pena máxima de quinze anos).