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Sobre os caminhos institucionais para o combate ao trabalho escravo contemporâneo no âmbito dos Municípios

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V. Desapropriação.

O Município pode, a exemplo das demais pessoas jurídicas de direito público, desapropriar bens de particulares, por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social. Isso decorre da inteligência conjunta do artigo 5º, XXIV, da CRFB e do artigo 5º da Lei 4.132/62 c.c. artigo 2º, caput, do Decreto-lei 3.365/41. A par disso, existe a hipótese específica de desapropriação do solo urbano não edificado, subutilizado ou não-utilizado (artigo 182, §4º, III, da CRFB).

Compreende-se que há interesse social para a desapropriação quando o Estado está diante de interesses sociais em sentido estrito, i.e., aqueles diretamente atinentes às camadas mais pobres da população e à massa do povo em geral, concernentes à melhoria das condições devida, à mais eqüitativa distribuição da riqueza e à atenuação das desigualdades em sociedade; essa é a definição clássica de Seabra Fagundes, reproduzida por Zanella di Pietro (op.cit., 2000: 157-158). É forçoso reconhecer que, nas hipóteses de ocupação e ativação de fábricas e confecções com recurso ostensivo ao trabalho escravo e/ou subumano, o estabelecimento não está atendendo ao interesse social; ao contrário, está aprofundando a pobreza dos imigrantes desvalidos, consolidando um processo de apropriação desumana da mais-valia e degradando a qualidade de vida das camadas populacionais sujeitas a tais desmandos (que, no Município de São Paulo, não é inexpressiva: assim, p. ex., o Consulado da Bolívia estima em 60 mil o número de imigrantes bolivianos em São Paulo, entre legais e ilegais).

É certo, ademais, que a propriedade assim utilizada não atende à sua função social (artigo 5º, XXIII, da CRFB), como tampouco a atende a empresa ali instalada ― sendo obrigatório, à luz da Lei 10.406, de 10.01.2002 (Novo Código Civil), que todos os contratos por ela celebrados (inclusive os de trabalho) atendam à sua função social, a teor do artigo 421 do NCC. Noutras palavras, se nem o imóvel ocupado e tampouco os contratos de trabalho firmados pela empresa atendem razoavelmente às suas funções sociais, uma vez que o primeiro abriga atividade criminosa e os últimos não servem à distribuição e circulação de riqueza, mas à sua concentração, parece plausível concluir que o Município pode proceder à desapropriação do estabelecimento por interesse social, para condicionar o uso da propriedade ao bem-estar social, ut artigo 1º da Lei 4.132/62.

Diga-se, a propósito, que se considera de interesse social o aproveitamento de todo bem explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho (digno) e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico, na dicção do artigo 2º, I, da Lei 4.132/62. Diga-se, também, que entre as funções sociais das cidades está o trabalho, sendo garantia do munícipe o direito a cidades sustentáveis ("le droit à la ville"), entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento básico, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho (digno) e ao lazer, para as presentes e futuras gerações ― artigo 2º, I, do Estatuto da Cidade. Significa dizer que a utilização da propriedade urbana para abrigar empresas baseadas no trabalho forçado ou subumano implica em descumprir as próprias funções sociais da cidade e da propriedade urbana, o que autoriza, à mercê da própria Lei 10.257/2001, a desapropriação por ato administrativo municipal ― condicionada, ainda aqui, à flagrância do trabalho escravo e/ou subumano e ao trânsito em julgado da sentença condenatória na esfera trabalhista, cível e/ou criminal (artigo 5º, LV e LVII, da CRFB).

Os fundamentos jurídicos aqui vazados permitem dispensar, no âmbito municipal, a aprovação da PEC n. 438/2001, que visa à desapropriação de terras em que forem flagrados trabalhadores em regime de escravidão. Nada obstante, para melhor encaminhar essa modalidade de desapropriação por interesse social, conviria editar lei municipal disciplinando a matéria, nos lindes da legislação federal pertinente (notadamente, Lei 4.132/62 e Decreto-lei 3.365/41). Iniludível que tal legislação sofreria inúmeros questionamentos acerca de sua constitucionalidade; releva notar, porém, que o Superior Tribunal de Justiça já teve ocasião de decidir, acerca de lei municipal sancionadora do emprego ilegítimo do solo urbano, que

o uso do solo urbano submete-se aos princípios gerais disciplinadores da função social da propriedade, evidenciando a defesa do meio ambiente e do bem estar comum da sociedade. Consoante preceito constitucional, a União, os Estados e os Municípios têm competência concorrente para legislar sobre o estabelecimento de limitações urbanísticas no que diz respeito às restrições do uso da propriedade em benefício do interesse coletivo, em defesa do meio ambiente para preservação da saúde pública e, até, do lazer (Recurso Ordinário Constitucional em Mandado de Segurança, Proc. n. 8.766/PR, rel. Min. Peçanha Martins, in Revista do Superior Tribunal de Justiça 121/160 ― g.n.).

Ademais, a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade entreabrem outro caminho institucional, menos impactante, para esse mesmo efeito administrativo. Em vista do teor do artigo 182, §4º, II e III, da CRFB e do artigo 4º, IV, "a", c.c. artigos 7º e 8º da Lei 10.257/2001, poderá o Município alterar o Plano Diretor e incluir, entre as hipóteses legais de subutilização do solo urbano por aproveitamento inadequado, a do emprego habitual de mão-de-obra em condição análoga a de escravos e/ou em condições subumanas.

Neste caso, insta-se a empresa a regularizar seus empregados, sob pena de responder por alíquotas progressivamente maiores no tempo (IPTU progressivo, ut artigo 7º do Estatuto da Cidade) e, adiante, pela desapropriação do estabelecimento com pagamento em títulos da dívida pública, decorridos cinco anos da cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de utilização adequada (artigo 8º, caput e §§1º e 2º, do Estatuto da Cidade). A medida, insista-se, atenderia ao espírito da Lei 10.257/2001, uma vez que o seu próprio regramento inclui, entre as funções sociais da cidade, a de ofertar trabalho digno, que é um dos aspectos do direito à cidade sustentável.

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VI. Programa municipal de coordenação.

Obviamente, todas essas plataformas haverão de ser implementadas num processo coordenado de ação política, executiva e legislativa. Do contrário, sem coordenação e complementaridade, não surtirão os mesmos efeitos. Para comprometê-las e implicá-las, convém editar lei municipal abrangente, dispondo as linhas gerais e as diretrizes de um Programa Municipal de Inibição e Eliminação do Trabalho Migrante em Condições Análogas a de Escravo ou sob Condições Subumanas. Não há dúvidas quanto à constitucionalidade de uma lei assim editada, nos limites daquelas plataformas, diante do que dispõem o artigo 23, I (guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas ― três conceitos que evocam, cada qual a seu modo, o desiderato de prevalência dos direitos humanos) e X (combate às causas da pobreza e aos fatores de marginalização, com a promoção da integração social), o artigo 24, I e §§ 1º a 3º c.c. artigo 30, II (competência para legislar sobre direito tributário, econômico e urbanístico ― competência suplementar legislativa que, a teor da melhor doutrina, não favorece apenas os Estados, mas também os Municípios) e artigo 30, I (competência para legislar sobre assuntos de interesse local) e VIII (planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano).

Fala-se em inibição e eliminação, porque um tal programa deverá conter cronogramas que prevejam, a curto e médio prazos, a inibição e estagnação das estatísticas de cooptação de latino-americanos para o trabalho escravo ou subumano (hoje ascendentes) e, a longo prazo, a sua completa eliminação. Tratar de mera inibição, sem o objetivo mais ambicioso da eliminação, é violar obliquamente a norma dos artigos 1º, III, 2º, I, III e IV, e 4º, I, da CRFB, já que significaria transigir, em alguma medida, com o trabalho escravo contemporâneo. Por outro lado, a eliminação provavelmente não será obtida em duas ou três gestões municipais, o que valeria à lei que a ela se restringisse o epíteto de demagógica.

A mesma lei deverá, ainda, prever a criação de um Grupo de Trabalho democraticamente constituído (representantes do Poder Executivo e do Poder Legislativo Municipal, membros dos Ministérios Públicos Estadual, Federal e do Trabalho, membros do Poder Judiciário Federal, Estadual e do Trabalho, auditores-fiscais do Trabalho e representantes da sociedade civil), com atribuições administrativas de coordenação técnico-científica, mediação, consulta e pesquisa. A ele caberá, por exemplo, propor ao Poder Público textos legislativos e medidas executivas concretas de inibição e combate ao trabalho escravo e subumano, conforme os cronogramas e as diretrizes do Programa Municipal e de acordo com a legislação vigente (federal, estadual, municipal); caberá também selecionar entidades idôneas para os convênios administrativos, opinar nos processos de reabilitação administrativa, aferir as necessidades locais de trabalho mediante estudo e verificação da conjuntura e condições socioeconômicas para fins de desapropriação (artigo 2º, §2º, da Lei 4.132/62), emitir pareceres quanto à caracterização do trabalho em condição análoga a de escravos para fins administrativos e fiscais, funcionar como órgão consultivo da Administração Municipal etc.

Com tais expedientes, o Município contribuirá sobremodo para a realização da dignidade da pessoa humana no âmbito de seu território, favorecerá a tranqüilidade pública (uma vez que a imigração clandestina e a violência nas relações de trabalho preordenam competição predatória com a mão-de-obra desqualificada dos próprios munícipes e sugerem novos quadros de violência ― por imitação, por oposição ou por discriminação) e encaminhará o reconhecimento público de que a Administração está comprometida com a guarda dos valores constitucionais maiores, nos termos do artigo 23, I, da Constituição Federal. A vontade política, nessa matéria em especial, tende a sinalizar a verdadeira sintonia do agente político (administrador, legislador ou juiz) com o mais sublime sentimento que deve inspirar tantos quantos se dedicam ao bem público, que é o sentimento de humanidade. Porque, com toda certeza, corações empedernidos não realizam o bem comum.

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Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Sobre os caminhos institucionais para o combate ao trabalho escravo contemporâneo no âmbito dos Municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 682, 14 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6728. Acesso em: 6 mai. 2024.

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