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Sobre os caminhos institucionais para o combate ao trabalho escravo contemporâneo no âmbito dos Municípios

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O trabalho forçado ou obrigatório não é um problema recente. Remonta aos primórdios das civilizações humanas ― e, em sua versão contemporânea (após a condenação universal às formas históricas de escravidão), tampouco é uma questão deste século. Já em 1926 ― no início século passado ―, a Convenção relativa à Escravidão priorizava a adoção de medidas úteis para evitar que o trabalho forçado ou obrigatório produzisse condições análogas à escravidão. Corroborando suas disposições, advieram a Convenção sobre o Trabalho Forçado, de 1930, e a Convenção suplementar relativa à Abolição da Escravidão, de 1956; essa última visou à abolição completa da escravidão por dívidas e da servidão. Finalmente, a 40ª sessão da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotou, no dia 25 de junho, a Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado, que impôs aos Estados-membros o compromisso de envidar esforços institucionais no sentido de suprimir o trabalho forçado ou obrigatório e a ele não recorrer, seja como forma de medida de coerção ou de educação política ou como sanção contra opiniões e ideologias, seja como método de mobilização e utilização de mão-de-obra para o desenvolvimento econômico, seja como medida de trabalho, seja como punição por participação em greves ou seja, ainda, como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa. Bem mais recentemente, a Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (18.06.1998) declarou, em seu artigo 2º, que todos os membros da OIT tem o compromisso de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e em conformidade com a Constituição da Organização, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, dentre os quais a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório.

À vista desse quadro, não há se negar que o Estado brasileiro, signatário da maior parte dessas convenções, tem um compromisso internacional com o combate e a abolição do trabalho forçado ou obrigatório e, muito especialmente, do trabalho em condição análoga a de escravos (manifestação mais grave daquele fenômeno, que configura o crime capitulado no artigo 149 do Código Penal brasileiro). E esse compromisso obviamente não se cinge à União, uma vez que também os Estados, os Municípios e o Distrito Federal compõem a República Federativa do Brasil (artigo 18, caput, da CRFB). Assim entendido, é certo que Estados, Municípios e Distrito Federal também detêm o compromisso público de implementar políticas públicas de inibição e eliminação das formas de trabalho escravo contemporâneo ― notadamente aqueles nos quais as estatísticas sociais revelam ser esse um problema recorrente. Não é outra, aliás, a inteligência do artigo 4º, II, da Constituição Federal.

Considerando-se, porém, que compete privativamente à União legislar sobre direito civil, direito penal e direito do trabalho (as três searas jurídicas mais diretamente imbricadas com o tema), indaga-se qual a área de atuação reservada, nesse particular, aos demais entes da Federação e, bem assim, qual o âmbito possível de suas políticas públicas.

No caso dos Municípios, interessa avaliar o caso do Município de São Paulo, que tende a se reproduzir noutras metrópoles do país, em que o trabalho rural é exíguo. Nas grandes cidades, com efeito, o trabalho escravo contemporâneo tem se manifestado nos centros urbanos― e não nas zonas rurais, como ocorre, e.g., no Estado do Pará ou no interior do Estado de São Paulo.

O noticiário assim o demonstra. Reportagens recentes de periódicos paulistas revelam que, no Município de São Paulo, bolivianos costumam ser arregimentados para trabalhar em pequenas confecções das 06h00 às 23h00 ou das 07h00 às 24h00, com remuneração entre R$ 200,00 e R$ 400,00 por mês (o último valor dificilmente é alcançado), correspondente a algo entre R$ 0,50 e R$ 1,00 por peça. Amiúde, porém, não há pagamentos certos; há casos documentados de migrantes que recebiam apenas "vales" ao talante do empregador (i.e., "de vez em quando"). Eles são geralmente acomodados em cubículos de 2m x 1,5m, nos próprios locais de trabalho, onde também ficam a sua família, a máquina de costura e toda a roupa produzida, depois entregue a coreanos de têm lojas de roupas a preços populares. A alimentação é parca e desbalanceada; raramente consomem carne ou ovos. Isso ocorre notadamente nos bairros do Belém, Brás, Canindé, Vila Maria, Bom Retiro, Mooca, Pari e até em Guarulhos (já fora do Município de São Paulo, mas na Região Metropolitana). Há estimativas de que atualmente existam de 30 a 50 mil bolivianos irregulares em São Paulo (oficialmente, a Polícia Federal contabiliza 18.408 bolivianos na cidade) ― e muitos preferem a clandestinidade, pois não vêem vantagens na regularização, inclusive em função dos altos custos (cerca de R$ 200,00 em documentos). Esses centros de trabalho em condições subumanas têm sido desbaratados pela Polícia Federal (como ocorreu no dia 13.02.2003, em que sessenta bolivianos foram libertados no Brás), mas essas intervenções não são bem-vistas pelas "vítimas", uma vez que os bolivianos resgatados, geralmente em situação irregular, acabam sendo deportados do país. Na verdade, a denúncia dos clandestinos à Polícia Federal acaba servindo como instrumento de coerção moral em favor dos empregadores, com vistas a assegurar o controle e a fidelidade dos trabalhadores ― a par da própria coerção física, de que também se tem notícia.

São cerca de 18 mil oficinas de costura na Grande São Paulo, usualmente com práticas semelhantes. Há casos de bolivianos que chegam a adquirir certa capacidade financeira e adquirem suas próprias máquinas, reproduzindo o processo socioeconômico de subjugação de seus próprios conterrâneos. E todas as etapas desse ciclo vicioso são sustentadas por uma densa rede de interesses e relações, que inclui a odiosa figura do "gato" (intermediador) ― não raro atuando em território boliviano, onde são prometidos empregos a bons salários no Brasil ― e anúncios em castelhano, nas praças públicas (e.g., na Praça Kantuta, no Pari, onde há uma feira de comida e artigos bolivianos) ou nos veículos que circulam à noite nos arredores dos bairros onde esse tipo de trabalho tem maior incidência. Também é comum que os bolivianos paguem pela intermediação do "gato" (US$ 70 ou mais), uma vez que o sentimento comum é de que as deletérias condições de trabalho no Brasil são ainda preferíveis ao desemprego ou às condições salariais na Bolívia. É quando, paradoxalmente, o anseio por uma vida mais digna solapa a dignidade da pessoa humana.

Há outros paradigmas de escravidão contemporânea na cidade de São Paulo. Os próprios bolivianos também são cooptados para o trabalho na construção civil, enquanto as bolivianas o são para o trabalho doméstico (as atividades de costura absorvem cerca de 44% dos bolivianos ativos em São Paulo) ― em ambos os casos, porém, sem garantias trabalhistas. Ademais, pode-se reconhecer, num corte estatístico mais amplo, que são vitimizados por essas formas de trabalho subumano não apenas os bolivianos, mas todos os imigrantes latino-americanos em geral (o jornal britânico "The Guardian" fez recente menção a paraguaios e peruanos, lado a lado com os bolivianos ― sendo certo que no Paraguai e no Peru dá-se o mesmo processo de cooptação). Nada obstante, é certo que o caso dos bolivianos explorados por coreanos (ou, mais recentemente, por outros bolivianos) é provavelmente o mais expressivo e alarmante, a merecer a atenção imediata das autoridades públicas municipais, em face das insidiosas violações de direitos humanos que se perpetram diuturnamente nas pequenas confecções, nas lavanderias e em outros estabelecimentos do gênero. De resto, também é indiscutível que toda e qualquer medida institucional voltada à proteção dos direitos humanos dos trabalhadores migrantes bolivianos pode e deve favorecer, direta ou indiretamente, os demais migrantes latino-americanos em São Paulo.

Assim, para estabelecer um programa de ação institucional, é mister decompor esse problema socioeconômico em suas principais elementares sociológicas. São elas:

(a) o latino-americano médio cooptado para o trabalho em condições subumanas é do sexo masculino, solteiro, jovem (entre 18 e 25 anos) e pouco qualificado, que imigra ilegalmente para o Brasil;

(b) a vítima geralmente não se reconhece como trabalhador em situação subumana ou em condição análoga à de escravo;

(c) a vítima deplora as ações policiais e vê o Estado ― não o empregador ―, representado na figura do policial federal, como o seu real agressor;

(d) há intermediação organizada, com captação financeira (os "serviços" de intermediação e inserção do migrante ilegal são cobrados, como fazem os "coiotes" mexicanos na divisa com os Estados Unidos da América);

(e) há desinformação espontânea, à qual se justapõe desinformação induzida (e.g., propaganda de rádio que noticia, na Bolívia, a possibilidade de bons empregos, faculdade paga e bom dinheiro no Brasil ― o que a rigor é verdadeiro, mas inacessível ao boliviano migrante);

(f) a situação irregular do trabalhador estrangeiro é um fator imperioso nas decisões individuais de se sujeitar indefinidamente ao jugo do empregador;

(g) os beneficiários desses serviços são pequenos e médios empresários, titulares de confecções domésticas, lavanderias, tinturarias e outras empresas do gênero, embora no elo final da cadeia econômica possam figurar empresas de grande porte, adquirentes dos produtos ou contratantes dos serviços.

Feita essa decomposição, impende atentar para o rol de competências materiais e legislativas do Município (artigos 23 e 30 da Constituição Federal), para as disposições do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001) e da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 8.666, de 21.06.1993) e ainda, "in casu", para o teor da Lei Orgânica do Município de São Paulo (04.04.1990), para adiante concluir e sugerir, a partir de uma interpretação sistemática da referida legislação ― e no que concerne às políticas públicas de inibição e eliminação do trabalho urbano em condição análoga a de escravos e/ou subumanas no âmbito municipal (com especial atenção para o marco legislativo) ―, as seguintes plataformas de ação.


I. Campanhas de informação para o migrante latino-americano.

Uma vez que os Municípios têm competência comum para "combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos" (artigo 23, X, da Constituição Federal), e sendo a desinformação, como visto supra, um dos fatores conducentes à marginalização e à escravização do trabalhador migrante boliviano e latino-americano em geral, é constitucionalmente legítimo o empenho de verbas públicas, com base em rubrica pertinente na lei orçamentária anual (artigo 165, III, da CRFB), para a realização de uma campanha pública de informação ao trabalhador migrante, a ser veiculada em jornais populares, rádios e canais de televisão aberta, na Região Metropolitana de São Paulo e ― recomenda-se ― nas principais cidades estrangeiras exportadoras de mão-de-obra (no caso da Bolívia, estudos indicam as cidades de La Paz, Sucre, Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba).

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A aludida campanha deve priorizar os seguintes objetivos: (a) alertar o migrante sobre os perigos da captação irregular de mão-de-obra migrante (salientando o risco de escravização e de sujeição a condições subumanas de trabalho, bem como a possibilidade de deportação e expulsão); (b) instruir o migrante sobre os seus direitos trabalhistas, à luz da Consolidação das Leis do Trabalho, e sobre as condições de regularização de sua condição no país, à luz dos acordos de Livre Movimento do MERCOSUL, do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80) e da legislação correlata; (c) orientar o migrante a procurar as autoridades constituídas ― Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Delegacia Regional do Trabalho, Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar ―, com menção a endereços e telefones, em caso de suspeita de redução a condição análoga a de escravos e/ou sujeição a condições subumanas de trabalho (em detrimento próprio ou de terceiros); (d) melhorar a imagem das polícias militar, civil e federal aos olhos do migrante latino, com vistas a reduzir a rejeição que impede a denúncia e contribui para a escravização do trabalhador; (e) disponibilizar linha telefônica para denúncias anônimas (0800).


II. Celebração de convênios administrativos.

Na expressão de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, 2000: 284), convênios administrativos são formas de ajuste entre o Poder Público e entidades públicas ou privadas para a realização de interesses comuns, mediante mútua colaboração.

Diferentemente dos contratos administrativos, em que os interesses são opostos e contraditórios (o alienador público quer vender pelo melhor preço, o comprador privado pretende adquirir pelo menor valor), nos convênios os interesses são convergentes, pois os entes conveniados têm objetivos institucionais comuns e vão persegui-los mediante mútua colaboração.

No caso em testilha, o Centro Pastoral dos Latino-Americanos tem desempenhado função social importante na tarefa de orientar, catalogar e socorrer o trabalhador migrante latino-americano na cidade de São Paulo. Boa parte dos dados estatísticos disponíveis provém de seus levantamentos. É salutar, assim, que uma política pública de efetivo combate ao trabalho escravo migrante incluía em seus propósitos a celebração de convênios entre o Poder Executivo Municipal e organizações não-governamentais de reconhecida atuação neste campo, como é o Centro Pastoral dos Latino-Americanos e outras de mesmo porte e seriedade, com vistas à catalogação estatística dos migrantes legais e ilegais, à orientação habitual dos trabalhadores migrantes em São Paulo (inserida em eventos festivos ou de confraternização, hábeis a atrair maior número de clandestinos), ao assessoramento jurídico e ao socorro financeiro ― inclusive para fins de regularização da situação do migrante clandestino, com pagamento de multas e taxas ― sob compromisso escrito de ulterior ressarcimento ―, uma vez que a legalização tende a ser, neste contexto sociológico, o principal elemento de emancipação social do trabalhador migrante (como visto supra).

Observe-se, a propósito, que os convênios administrativos estão regulados pelo artigo 116 da Lei 8.666/93, dispensando a licitação, já que não se trata de contratos (artigo 2º, caput, "a contrario sensu") ― o que significa, para o Município, economia de despesas e eliminação de burocracia. Diga-se, enfim, que a celebração dos convênios administrativos também tem previsão constitucional (artigo 241 da CRFB, na redação da Emenda Constitucional n. 19/98), mas não admite, nessa modalidade, delegação de serviços públicos, servindo apenas para o fomento de atividade privada de interesse público.


III. Orientação específica à Guarda Civil Metropolitana para o atendimento de casos de trabalho em condição análoga a de escravos e/ou sob condições subumanas.

As próprias academias de formação de guardas municipais poderão ministrar cursos de reciclagem e incluir, para os cursos regulares dos futuros integrantes da corporação, tópicos específicos sobre a precarização das relações de trabalho no âmbito do Município.

Embora não caiba às guardas civis a apuração ou a repressão do trabalho irregular, das violações de direitos humanos ou dos crimes de plágio (artigo 149 do CP), não se deve estimular nas bases corporativas uma cultura de omissão, apenas porque a sua tarefa constitucional é a proteção dos bens, serviços e instalações dos Municípios (artigo 144, §8º, da CRFB). Tratando-se de agentes públicos que devem contribuir para o atendimento pleno das competências dos artigos 23 e 30 da Constituição Federal, cumpre-lhes orientar a pessoa lesada, com o esclarecimento preciso de seus direitos e o encaminhamento aos órgãos competentes, e nos casos mais graves (e.g., trabalho em condição análoga a de escravos, com cativeiro sob coerção física e servidão por dívidas) garantir a imediata libertação das vítimas, inclusive com prisão em flagrante dos responsáveis, que serão conduzidos à Delegacia de Polícia mais próxima. A esse respeito, interessa registrar que a prisão em flagrante está autorizada a todo cidadão (não apenas às polícias) ― o que inclui, "a fortiori", os integrantes das guardas municipais ―, a teor do artigo 301 do Código de Processo Penal.


IV. Proibição de contratar com o Poder Público Municipal, bem como de obter subsídios, isenções, anistias, subvenções ou doações junto ao mesmo.

Essa linha de restrição já é paradigmática no âmbito federal, em relação às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (inclusive por parte de pessoas jurídicas), consoante o artigo 22, III, da Lei 9.605, de 12.02.1998.

Na esfera federal, seria de toda conveniência estender essa restrição às pessoas físicas e jurídicas condenadas por crimes contra o meio ambiente do trabalho (como, e.g., a inserção ou manutenção dolosa de trabalhadores em ambientes de trabalho gravemente desequilibrados, por inobservância de normas de segurança, saúde e higiene no trabalho), ut artigos 2º e 3º, caput, da Lei 9.605/98. Proposta neste sentido já foi encaminhada à Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA) pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da Décima Quinta Região (AMATRA-XV), para fins de sugestão ao Governo Federal, no ensejo da Reforma Trabalhista que se anuncia.

Nada obsta, porém, a que o Município estabeleça, no âmbito da legislação municipal, a mesma proibição, com vistas a inibir a cooptação e manutenção de trabalhadores sob condições subumanas e/ou análogas a de escravos, sejam eles latino-americanos ou não. É clarividente que tais restrições apenas atingiriam empresas que têm pretensões de contratar com o Poder Público ou de obter junto ao mesmo subsídios, subvenções, doações, isenções ou anistias (aqui abrangidas, portanto, as duas formas de exclusão do crédito tributário do artigo 175 do Código Tributário Nacional; não, porém, as imunidades, que têm sede constitucional). Assim, é razoável estender as restrições em comento também às pessoas físicas e jurídicas que contratarem com empresas sabidamente beneficiárias de trabalho escravo ou subumano, seja adquirindo os bens e serviços assim produzidos (e.g., grandes empresas ou lojas de departamento que venham a adquirir lotes de confecções usuárias daquela forma de trabalho), seja ainda a elas se associando em negócios com terceiros.

A constitucionalidade e a legalidade de normas municipais assim endereçadas não desafiam grandes objeções.

Com efeito, se cabe ao Município instituir e arrecadar os tributos de sua competência (IPTU, ITBI e ISS) e bem assim dispor de seu patrimônio (artigo 30, I e III, da CRFB), e se a concessão e não-concessão de incentivos e benefícios fiscais e financeiros são instrumentos lídimos de política urbana (artigo 4º, IV, "c", da Lei 10.257/2001), não há óbice constitucional a que o Poder Legislativo Municipal proíba o Poder Executivo local de isentar ou anistiar os devedores tributários que tenham sido condenados, na Justiça do Trabalho ou na Justiça criminal (que hoje corresponde, nessa matéria, às Justiças estaduais), pela cooptação, utilização ou aliciamento de mão-de-obra em condições subumanas e/ou análogas a de escravos. Mesmo raciocínio aplica-se à doação e à obtenção de subsídios e de subvenções públicas.

É mister, porém, garanta-se às pessoas físicas e jurídicas o contraditório e a ampla defesa, como também a presunção de inocência (artigo 5º, LV e LVII, da CRFB), de modo que se expeça uma declaração administrativa de inidoneidade da empresa para licitar ou contratar com a Administração Pública Municipal, nos moldes do artigo 87, IV, da Lei 8.666/93 ("mutatis mutandi"), somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória trabalhista, cível ou criminal (caso do artigo 149 do CP), cancelando-se-a tão logo a pessoa obtenha a sua reabilitação perante a autoridade federal trabalhista e a autoridade municipal ― e ainda, se o caso, perante a autoridade judiciária (artigos 93 a 95 do CP, em caso de condenação criminal).

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Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Sobre os caminhos institucionais para o combate ao trabalho escravo contemporâneo no âmbito dos Municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 682, 14 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6728. Acesso em: 26 abr. 2024.

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