Tutelas de urgência no direito ambiental do trabalho: preservação da vida dos trabalhadores

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Casos práticos.

A partir de agora, oportuno analisar algumas decisões judiciais acerca das interdições administrativas efetivadas por auditores-fiscais do trabalho no exercício do poder de polícia.

Inicialmente, serão trazidas a lume decisões judiciais que suspenderam os efeitos de medidas aplicadas pela Inspeção do Trabalho. Quase todas elas trazem, em comum, a ideia de que a interdição iria ou poderia provocar a perda do emprego dos trabalhadores. Dentre vários exemplos possíveis, citamos o caso dos inúmeros mandados de segurança propostos pela empresa Infinity, em 2011, visando anular termos de interdição realizados pelo Grupo Móvel de Fiscalização, pelas condições de risco encontradas nas frentes de trabalho de corte da cana. A decisão, do Presidente do Tribunal Superior do Trabalho à época, suspendeu a interdição ministerial sob o fundamento de que “haveria nefasta consequência também para os trabalhadores o restabelecimento da eficácia do termo de interdição, uma vez que perderiam seus empregos” (RC nº. 4313-96.2011.5.00.0000).

No Estado do Mato Grosso do Sul, seis interdições dos auditores federais que foram suspensas pela Justiça do Trabalho da região de Dourados/MS, sob a alegação de que as autoridades federais não fizeram referência a nenhum acidente de trabalho pretérito registrado nos estabelecimentos fiscalizados, e que se a empresa fosse fechada por conta daquelas interdições haveria um mal social de grandes proporções já que a empresa contratava oitenta (80) empregados (Processo nº MS-0024759-80.2014.5.24.0022).[12] Em outro caso, também em Dourados/MS, foi dito ainda que “A paralisação da empresa sem oportunização do razoável tempo para regularização põe em risco a manutenção dos contratos comerciais e trabalhistas, e o potencial risco para a sobrevivência das mais de 170 famílias e economia do município (periculum in mora)” (MS 24.063-10.2015.5.24.0022).

Em outro processo, neste mesmo Estado, a decisão afirmou que:

“(...) a requerente (estava) empenhada em cumprir a determinação da GRTE/MS. Ademais, a paralisação completa da atividade da empresa gerará prejuízos imensuráveis à saúde financeira da empresa, com reflexo direto em seus empregados, uma vez que impedida de atender aos pedidos de compradores, não perceberá renda e não terá condições de pagar salários, tendo alertado a requerente, inclusive, do risco de inevitável demissão de todos os seus 64 empregados” (Processo nº 702-37.2014.5.24.0106).

Em 2014, na Bahia, em processo visando ao levantamento de interdição de máquinas numa fábrica de bolas, a Presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região desconsiderou os riscos apontados pelos auditores nos relatórios técnicos e fixou o entendimento de que:

paralisar a produção empresarial pode sim, causar grave lesão à ordem e à economia públicas com a possibilidade de despedida em massa de trabalhadores. Portanto, não vejo como modificar a decisão impugnada. Assim, pelos motivos acima expostos INDEFIRO o pedido de Suspensão da Liminar concedida pelo Juiz da 3ª Vara do Trabalho de Itabuna. (Processo nº 0000132-09.2014.5.05.0000).

O Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, em todos os anos entre 2008 e 2012, com o mesmo fundamento, liberou a operação da maquinaria que provocou centenas de esmagamentos e mutilação de membros de trabalhadores (Mandado de Segurança nº 0000647-63.2010.5.05.0621; Mandado de Segurança n. 0081600-82.2008.5.05.0621). Em um processo sobre a interdição de alguns equipamentos de uma fábrica de calçados, no sudoeste da Bahia, nacionalmente conhecida pela amputação de membros de dezenas de trabalhadores por ausência de dispositivos mínimos de proteção, decidiu o TRT:

 São relevantes os fundamentos do pedido e palpáveis os prejuízos que poderão advir do ato impugnado, caso seja mantido nos moldes definidos pela ilustre autoridade apontada como coatora, conforme o decisum de fls. 117/123 está a indicar, até porque a defesa do bem jurídico sobre o qual incide a medida protetiva ali adotada não deve ser erigida em desfavor da própria continuidade de um empreendimento que congrega milhares de empregos diretos numa região tradicionalmente carente de atividade econômica como a de Itapetinga, neste Estado. (grifos nossos).

Em 2012, na Bahia, o Tribunal Regional do Trabalho suspendeu a interdição do maquinário irregular que expunha trabalhadores a risco em uma multinacional fabricante de pneus. Assim justificou: “tendo em vista que a presente medida visa garantir a continuidade da empresa, que congrega centenas de trabalhadores diretos e indiretos, é patente a urgência da medida, sob pena de ensejar dano irreparável ou de difícil reparação a toda uma coletividade” (Processo 00000122-42.2012.5.05.0191)

Todavia, ao contrário do que afirmam essas decisões, não há qualquer contradição entre a paralisação das atividades interditadas para regularização, e posterior retomada das atividades produtivas. Elas criam um falso dilema entre não sobreviver (pela rescisão do contrato de trabalho) ou morrer no exercício do contrato de trabalho (com a manutenção do labor em atividade perigosa), quando, em verdade, apenas a segunda hipótese está colocada nas interdições. Essa retórica torna o trabalhador refém da sua condição de dominação e opressão, já que requerer melhores condições de trabalho, por essa perspectiva, implica a perda do emprego.

Contudo, a proteção dos trabalhadores em nada ameaça a existência dos empregos. Como demonstrou Filgueiras (2012, 2014A, 2014B), com base nos resultados do universo das fiscalizações no Brasil, as empresas são interditadas, regularizam suas condições de segurança no trabalho, e voltam a operar.

Em Pernambuco, a interdição de uma grande empresa de telemarketing foi suspensa pelo Poder Judiciário, ainda que sem qualquer comprovação da correção das irregularidades. Em nota, o TRT informou que "a juíza responsável pelo julgamento do mandado de segurança, Camila Augusta Cabral de Vasconcellos, deferiu parcialmente o pedido da Contax, para suspender a interdição determinada pelo MTE, por considerar a medida de interdição excessiva, em face das tentativas da empresa em se adequar às exigências legais tratadas no relatório de interdição" (Processo n. RO-0000077-52.2015.5.06.0014)[13].

"Na hipótese em apreço, constata-se tratar de interdição de 80% dos maquinários da empresa impetrante, o que acarreta a parada de toda a sua produção, gerando prejuízos irreparáveis para a empresa, mas também insegurança econômica para seus empregados, que totalizam em média 670, de modo que também refletirá no âmbito social como um todo pela geração de desemprego em massa."

Em outro processo judicial, em Sergipe, no ano de 2013, após a interdição de máquinas e equipamentos irregulares e perigosos da empresa Duchacorona Ltda, a Justiça do Trabalho suspendeu a interdição efetivada pela Fiscalização do Trabalho, permitindo o retorno da operação do maquinário. Foi salientado na aludida decisão que a interdição (que abrangeu cerca de 80% dos maquinários da empresa impetrante), “acarreta a parada de toda a sua produção, gerando prejuízos irreparáveis para a empresa, mas também insegurança econômica para seus empregados, que totalizam em média 670, de modo que também refletirá no âmbito social como um todo pela geração de desemprego em massa.”  

Após a medida judicial que determinou a retomada das atividades empresariais perigosas, um acidente amputou o dedo de um trabalhador justamente em uma máquina que teve a interdição suspensa por meio da referida decisão judicial (Processo nº 0000426-75.2013.5.20.0001).[14] Após o acidente, houve nova inspeção no setor produtivo da empresa, onde foi constatado que as máquinas cujas interdições foram suspensas continuavam não atendendo aos requisitos de segurança previstos na NR-12.

Na contramão do arcabouço constitucional e infraconstitucional de proteção da vida e saúde do trabalhador, posicionamentos como o ora em destaque conferem prevalência à premissa de que o sacrifício ocupacional deve recair sobre o trabalhador, e não sobre a atividade empresarial.  Noutro falar, consagram (ainda que de forma inconsciente) a seguinte ideia: a saúde do trabalhador não é um resultado final a ser atingido, mas mera obrigação de meio, que pode ser objeto de tentativa de acerto (ou erro) por parte das empresas.

Sob o ponto de vista técnico e jurídico, o caminho a ser seguido deveria ser a imediata correção das irregularidades pela empesa, ou que ao menos paralisasse suas atividades até a certeza da ausência de risco iminente à integridade física dos trabalhadores e, concomitantemente, o respeito à legislação de segurança e saúde no trabalho.

Se há inconsistência técnica no ato de interdição administrativa, não cabe aos operadores do direito defendermos a manutenção da medida acautelatória dos auditores-fiscais do trabalho. Todavia, quando tais interdições são efetivadas pela Inspeção do Trabalho, o fundamento técnico é o risco atual e iminente, comprovado por autoridades imparciais que detém know-how sobre o tema e que gozam de presunção legal de veracidade dos fatos aduzidos, conforme disposições do Direito Administrativo.

Em algumas decisões judiciais, por outro lado, as presunções futurísticas de demissões coletivas e perda de lucros ou contratos são feitas sem qualquer evidência empírica, e as interdições são levantadas sem qualquer respaldo técnico. Estas liminares fazem tábula rasa ao Princípio 15 da Declaração do Rio, na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992: “Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Estes são os dados e princípios que deveriam ser postos na balança no ato de julgar.

A Justiça do Trabalho possui um discurso contundente no que tange à proteção da saúde e segurança do trabalhador, como se vê, por exemplo, nas palavras do ex-Presidente do TST, Ministro Barros Levenhagen, no Seminário Internacional Trabalho Seguro realizado em outubro de 2015.[15] No entanto, quando se verifica a banalização de liminares suspendendo decisões administrativas lastreadas no poder de polícia da Inspeção do Trabalho, observa-se a inconsistência desta retórica.

Em muitos destes casos os argumentos da defesa não possuem sequer respaldo jurídico por parte das empresas infratoras. Aliás, quanto ao cometimento dos ilícitos, muitas vezes as empresas infratoras confessam a materialidade das ilicitudes, apresentando, porém, evasivas laterais sobre uma suposta incapacidade econômica de permanência da atividade empresarial em caso de adequação do meio ambiente laboral, alegação esta sequer provada do ponto de vista processual. Tanto é que as empresas que foram objeto das interdições acima citadas continuaram funcionando normalmente – e quando migram para outras localidades assim o fazem por outras razões.

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O trabalho constitui-se num meio de vida, na forma de sobrevivência encontrada pela quase totalidade da população para sua reprodução social. Não pode ser encarado como um destino trágico, exercido num ambiente onde vidas podem ser ceifadas ou num locus propício ao esfacelamento do corpo. O Judiciário pode estar incentivando, com estas posturas a degradação ambiental e humana, e a concorrência desleal, sem conseguir sequer salvar empregos.

Não se argumenta, aqui, que este é o pensamento majoritário do Poder Judiciário Trabalhista, até mesmo porque, por enquanto, nosso levantamento não é conclusivo nesse sentido. Mas, no mínimo, é um entendimento frequente, persistente e espalhado pelo Brasil.

Vale registrar alguns posicionamentos diversos. Um desses casos ocorreu no Mato Grosso do Sul, em 2014, quando o pedido formulado liminarmente pela empresa interditada, em ação mandamental, foi negado pelo Poder Judiciário. De acordo com o magistrado: “o direito não precisa de mártires para uma atuação mais austera. Aliás, se um ser humano for mutilado ou morto em razão de falha na segurança, não será com a chancela da minha caneta”. (Juiz do Trabalho Flávio da Costa Higa, Mandado de Segurança nº. 0024278-45.2014.5.24.0046). As medidas patronais devem ser proativas para justamente impedir a ocorrência de acidentes e, por isso, a Justiça do Trabalho negou a liminar à empresa, por considerar o fundamento apresentado irrelevante.

Outro julgado que demonstra a compreensão da perfeita lógica da atuação preventiva no resguardo da saúde do trabalhador coleta-se do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. A Desembargadora Brígida Joaquina Charão Barcelo Toschi (em decisão proferida no Mandado de Segurança n. 0021722-69.2014.5.04.0000, contra ato do Juízo da 25ª Vara do Trabalho de Porto Alegre que, nos autos do Mandado de Segurança n.º 0021585-12.2014.5.04.0025[16], havia deferido liminar para suspender ato de interdição), suspendeu a liminar concedida pelo juízo de primeiro grau para restabelecer interdição total em atividades de manutenção e instalação da Global Village Telecom S.A. (GVT) em todo o Estado do Rio Grande do Sul. Entendeu a magistrada que, embora a efetiva fiscalização tenha ocorrido em alguns poucos postes, nos locais fiscalizados restou configurado que o procedimento adotado durante a prestação dos serviços acarreta grave e iminente risco aos trabalhadores nas atividades realizadas. Foi consignado ainda na decisão em foco que não houve a prova inequívoca de que as condições fáticas relatadas pela Fiscalização do Trabalho não se reproduziam nos demais locais onde operam os trabalhadores, tampouco que somente se restringiam às localidades referidas pelo ato de interdição. Ao final do mandado, o próprio Juízo de Primeiro Grau proferiu sentença denegando a segurança pleiteada pela empresa e mantendo o ato de interdição. Eis relevante excerto da sentença[17]:

Outrossim, o ato de interdição lavrado pelo MTE possui presunção de legalidade e veracidade, não sendo possível a discussão acerca do risco grave e iminente à saúde e à integridade física dos trabalhadores pela via do mandado segurança, que detém cognição sumária limitada.

Quanto aos limites do ato de interdição, a situação fática descrita no ato de interdição e laudo técnico que o acompanha permite a verificação das condições de trabalho por amostragem. Soma-se a isso o fato da Portaria nº 40/2011 não limitar a interdição somente aos locais vistoriados pelo Auditor Fiscal.

De qualquer forma, o ato administrativo vergastado não inviabiliza que a impetrante exerça a atividade econômica que  lhe  foi  concedida  pelo  Poder  Público,  mas  apenas  proíbe  que  tais  atividades  sejam  realizadas  do  modo  como  verificado  em  regular  processo  administrativo,  com  iminente  perigo  à  vida e segurança dos trabalhadores envolvidos. 

Observa-se consonância com os princípios da prevenção e da precaução do raciocínio exposto tanto na decisão da Desembargadora como na sentença do Juízo de Primeiro Grau. Identificado o grave iminente risco à vida do trabalhador mediante a avaliação de alguns postos de trabalho, nos quais restou acentuada insegurança do próprio procedimento adotado na prestação do serviço que, por ser um procedimento-padrão da empresa, era obviamente reproduzido em todas as frentes de trabalho. Assim, a interdição das atividades de instalação e manutenção em todo o Estado foi considerada válida na decisão judicial em referência, à míngua de demonstração pela impetrante das adequações necessárias ao procedimento-padrão adotado pela empresa.

Evidenciada a lógica empresarial de buscar o afastamento judicial do embargo ou da interdição sem neutralizar os riscos ambientais identificados, cabe enfatizar outro mandado de segurança impetrado perante o mesmo Tribunal pela Brasil Telecom S.A., contra decisão de juízo de primeiro grau que indeferiu antecipação de tutela para afastar ato de interdição. A interdição foi decretada após acidentes que acarretaram a morte de empregados, e teve por finalidade proibir a utilização de escadas de mão extensíveis apoiadas no sistema cordoalha e cabos telefônicos. No acórdão do Regional[18], foi consignado:

Não há, portanto, a presença de prova inequívoca da arbitrariedade do agente público e nem verossimilhança nas alegações da inicial, a afastar a presunção de legitimidade do ato. De resto, não há interdição da prestação de serviços e sim apenas do uso de determinado sistema, segundo se apura no item 'a' das Medidas Destinadas ao Saneamento dos Riscos Apontados (fl. 23). Quanto à alegação da inicial, de que cumpridas todas as exigências para a continuidade do uso do sistema de escadas de mão flexíveis apoiadas na cordoalha, é reputada como incorreta pela defesa[...].

Não bastassem tais fundamentos, o parecer do D. Procurador Regional do Trabalho é de que não há como ser concedida a segurança pretendida, tendo em vista que a empresa impetrante poderia se ver livre da interdição imposta, caso tivesse alterado seus procedimentos de trabalho, a fim de se adequar às medidas de segurança necessárias a elidir os riscos de acidentes de trabalho de seus empregados, do que não cuidou.

E essa decisão foi mantida pelo Tribunal Superior do Trabalho (ROMS 241100-08.2006.5.04.0000),[19] que não visualizou abusividade ou ilegalidade na decisão que indeferiu a antecipação de tutela para suspender a interdição das atividades da recorrente, considerando controvérsia sobre o cumprimento das exigências indicadas pela agente fiscal para a continuidade dos serviços e consequente levantamento da interdição, o que gerou a determinação de perícia técnica pelo Juiz da Vara de origem.

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Sobre os autores
Ilan Fonseca de Souza

Procurador do Trabalho na 5ª Região (Bahia), Especialista em Processo Civil, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia.

ANDRÉ MAGALHÃES PESSOA

Procurador do Trabalho, Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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