A história da colonização é bastante conhecida. A historiografia do século XIX e da primeira metade do século passado, de um modo geral, cria que uma análise consistente da sociedade brasileira passaria necessariamente por uma avaliação do processo português de colonização, ou melhor, que o processo de colonização português era o principal responsável ("hic jacet lepus") pelos contornos sociais do Brasil. Todavia, apenas alguns poucos pontos são relevantes para a compreensão da construção da cidadania brasileira, muito embora esse processo seja complexo. O primeiro ponto é com relação a natureza da colonização, nas palavras de José Murilo de Carvalho "o futuro país nasceu da conquista de povos seminômades" (2002, p. 18), o segundo, refere-se a conotação comercial atribuída a conquista. Os efeitos imediatos do primeiro ponto são a dominação e o extermínio, e do segundo foi a confusão do público com o privado, já a colonização foi uma empresa do governo colonial associado a particulares.
Nessa dinâmica perversa do sistema colonial, a escravidão foi, sem dúvida, o fator mais negativo, junto com a grande propriedade privada, para o desenvolvimento da cidadania. Uma análise pormenorizada da escravidão é de suma importância para a compreensão da precariedade da cidadania hodierna, já que a mentalidade escravista foi um modus operandi bastante difundido, os libertos, uma vez livres, possuíam escravos, e mesmo os quilombolas os possuíam, cerca de 78% dos libertos da Bahia possuíam escravos.
A escravidão era um privilégio privado,
Nos confins da língua latina e do direito romano, a palavra privus (particular) deu origem a duas variantes, privatus (privado) e privus-lex ou privilegium (lei para um particular, privilégio). Essas variantes fundem-se de novo num só significado no contexto do escravismo moderno, no qual o direito – o privilégio – de possuir escravos incide diretamente sobre a concepção da vida privada. Como na Colônia, a vida privada brasileira confunde-se, no Império, com a vida familiar. Resta que, no decorrer do processo de organização política e jurídica nacional, a vida privada escravista desdobra-se numa ordem privada prenhe de contradições com a ordem pública. Manifesta-se a dualidade que atravessa todo o Império: o escravo é um tipo de propriedade particular cuja posse e gestão demanda, reiteradamente, o aval da autoridade pública (ALENCASTRO, in NOVAIS, vol II: 16)
A escravidão tinha contornos econômicos e foi, por muitos anos, um regime lucrativo, o qual, tinha uma outra dimensão, a da intolerância e da incompreensão da diferença:
A história dos povos repete, seguidamente, a lição nunca aprendida de que os grupos humanos não hostilizam e não dominam o "outro povo" porque ele é diferente. Na verdade, tornam-no diferente para fazê-lo inimigo. Para vencê-lo e subjugá-lo em nome da razão de ele ser perversamente diferente e precisar ser tornado igual: "civilizado". Para dominá-lo e obter dele os proveitos materiais do domínio e, sobre a matriz dos princípios que consagram a desigualdade que justifica o domínio, buscar fazer do outro: o índio, o negro, o cigano, o asiático, um outro eu: o índio cristianizado, o negro educado, o cigano sedentarizado, o asiático civilizado. Todos os que são a minoria dos diferentes ou a maioria dos dominados, revestidos do verniz civilizatório daquilo que, às vezes, se simplifica enunciando que equivale a penetrar na cultura ocidental, o lugar social adequado à identidade mais legítima.
O artifício do domínio – aquilo que é real sob os disfarces dos "encontros de povos e culturas diferentes" – é o trabalho de tornar o outro mais igual a mim para colocá-lo melhor a meu serviço. Ao escravo trazido nas caravelas se batizava no porto de chegada. A consciência ingênua acreditava com isso salvá-lo. Mas o senhor que atribuía ao negro servo um nome de branco, cristão, em troca do nome tribal do lugar de origem, sabia que a água do batismo era apenas uma porta líquida de entrada na redução necessária das diferenças que tornam eficazes os usos da desigualdade. É importante que o escravo fale a língua do senhor para compreendê-lo e saber obedecer. É preciso que possua a mesma fé, para que no mesmo templo faça e refaça as mesmas promessas de obediência e submissão aos poderes ocultos da ordem social consagrada. Promessas que o senhor paga com a festa e o servo com o trabalho.
Assim, aos filhos dos índios abriam escolas e sobre os seus corpos punham roupas de algodão. E se louvava deixarem de comer carne humana, enquanto as cifras geométricas do morticínio dos índios eram civilizadamente escondidas dos assuntos da "vida nacional". Aos índios se "reduzia", se "aldeava", se "civilizava". Não para serem iguais aos brancos, sendo índios, mas para serem desiguais sem tantas diferenças e assim servirem melhor, mortos ou subjugados, aos interesses dos negócios dos brancos. (...) (BRANDÃO: 1986, p. 7-9)
Os escravos eram considerados instrumentum vocali, não eram humanos, eram instrumentos, não poderiam ser considerados pessoas e, conseqüentemente, sujeitos de direitos. Dessa forma não tinham direitos de integridade física, à liberdade ou a qualquer outro direito civil básico, em contraponto não se pode dizer que os senhores de escravos eram cidadãos, já que lhes faltava a noção de isonomia jurídica (tanto no sentido real, quanto no eqüitativo), eles absorviam parte das funções do Estado, principalmente as judiciárias, de tal sorte que o poder do Estado terminava nas porteiras das grandes propriedades de terra.
Mary Del Priore no capítulo Ritos da Vida Privada da obra História da Vida Privada no Brasil Vol I traz um excerto de uma correspondência de um senhor de terras e seu pai discutindo as melhoras de estratégias de relação com poder judiciário da capitania, notadamente corrupto e moroso:
Falo em ministros para que V. M. não se descuide de me mandar alguma coisa com que os presentear e mimar para os ter propina. Pois quem não dá, não vence demandas; e não é mau negócio despender com ministros anualmente 100 mil-reis
e a autora pondera que,
[...] Em questões de justiça e poder, o público e o privado também se imbricavam, pois, salvo nas cidades onde a administração judiciária ficava concentrada, o mandonismo local e as várias formas de justiça privada imperavam. (DEL PRIORI, in NOVAIS, vol I: p. 288)
As mulheres também não possuíam direitos de cidadania e ficavam sob a tutela de seus pais, maridos ou parentes próximos do sexo masculino, reproduzindo com algumas poucas imperfeições, o status familiae do direito romano antigo.
A conseqüência de tudo isso, era que não existia de verdade um poder que pudesse ser chamado de público, isto é, que pudesse ser garantia de todos de igualdade perante a lei, que pudesse ser garantia dos direitos civis. (CARVALHO, 2002: 22).
Esses fatores fizeram com que a escravidão não fosse questionada de forma ampla até o fim da Guerra do Paraguai, a abolição final só começou a ser discutida no Parlamento em 1884. Apesar de leis internacionais de proibição do tráfico já existirem desde 1831, o Brasil foi o último país ocidental de tradição cristã a erradicar a escravidão e o fez somente quando não era tão significativo o número de escravos, na época da independência, eram 30% da população, quando da abolição da escravatura não chegavam a 15%.
Segundo José Murilo de Carvalho (2002: 46) cerca de 4 milhões de escravos entraram em território nacional até 1850, distribuídos por toda parte, concentrando-se nos séculos XVI e XVII no Nordeste, no XVIII, na região das Minas Gerais e, no XIX, nas regiões produtoras de café, o que fez com que a escravidão fosse mais difundida no Brasil do que nos Estados Unidos.
Estima-se que o Rio de Janeiro foi a cidade que mais possuiu escravos depois de Roma. A escravidão era uma instituição social sólida e, por isso, não existiam tentativas de aboli-la, quando um escravo ou um grupo de escravos se amotinavam, lutavam pela sua própria manumissão e não pela extinção da escravidão enquanto instituição.
No entanto:
A generalização do tráfico interno, a troca de experiências de cativeiro, especialmente nas fazendas novas, onde tudo ainda estava para ser estabelecido, tendiam assim a levar os escravos a propor, de forma até então inusitada, um código geral de direitos dos cativos. Desde logo, esfacelava-se a própria essência da dominação escravista, que residia na capacidade de transformar em privilégio toda e qualquer concessão à ausência de prerrogativas inerente a um estatuto de escravo. (MATTOS DE CASTRO, in NOVAIS, vol II: 360)
Ao do que ocorreu nas colônias francesas e nos próprios Estados Unidos, no Brasil, não vingaram os argumentos de que a liberdade individual constituísse um valor fundamental garantido pelo direito natural. (...) o principal argumento que se apresentava no Brasil em favor da abolição era o que podíamos chamar de razão nacional, em oposição a razão individual do caso europeu e norte-americano. A razão nacional, foi usada por José Bonifácio, que dizia ser a escravidão obstáculo a formação de uma verdadeira nação, pois mantinha parcela da população subjugada a outra parcela, como inimigas entre si. Para ele, a escravidão impedia a integração social e política do país e a formação de forças armadas poderosas. Dizia, como o fez também Joaquim Nabuco, que a escravidão bloqueava o desenvolvimento das classes sociais e do mercado de trabalho, causava o crescimento exagerado do Estado e do número de funcionários públicos, falseava o governo representativo. (CARVALHO, 2002: 50-51)
Quando a escravidão foi definitivamente abolida enquanto instituição jurídica, os libertos não receberam nenhuma assistência, nem foram desenvolvidos programas de integração e de re-inserção social, o que fez com que muitos ex-escravos voltassem a suas antigas fazendas ou a fazendas circunvizinhas, passadas a euforia da abolição, para retomar os trabalhos por salários baixos e péssimas condições de emprego. As conseqüências disso foram duradouras para as populações negras e ainda hoje se refletem nos índices sociais de qualidade de vida que denotam o hiato social existente entre eles e os brancos. Os senhores de terra a seu turno consideravam-se acima da lei, não possibilitando a implementação da igualdade efetiva até a atualidade.
Uma poesia satírica publicada em O Monitor Campista, em 1888 (apud Hebe M. Mattos de Castro, in NOVAIS, vol II: 372) reflete a mudança de mentalidade ocorrida:
Fui ver pretos na cidade
Que quisessem se alugar.
Falei com esta humildade:
_ Negros, querem trabalhar?
Olharam de soslaio,
E um deles, feio, cambaio,
Respondeu-me arfando o peito:
_ Negro, não há mais, não:
Nós tudo hoje é cidadão
O branco que vá pro eito.
Embora o negro do poema tivesse categoricamente afirmado "nós todo hoje é cidadão" a cidadania era algo desconhecido dos negros manumitidos pela Lei Áurea e dos libertos de um modo geral. Um exemplo claro disso era a obrigatoriedade do contrato de trabalho, somente com relação ao nascido livre, esse sim "cidadão brasileiro".
A liberdade conquistada pelos negros era uma farsa, mesmo os tradicionais direitos públicos subjetivos, já presentes nas legislações francesas pós-revolucionárias, não chegaram a ser efetivamente implementados com relação aos libertos. "Uma peculiaridade dos inquéritos policiais da fase republicana é a utilização sistemática do termo cidadão como designativo de status social. Nesses inquéritos, são chamados a depor "homens", "mulheres" e "cidadãos" (que, em geral são proprietários e residentes numa fazenda do distrito)." (Hebe M. Mattos de Castro, in NOVAIS, vol II: 375-376).
Diferentemente do ocorrido nos Estados Unidos da América, depois da Guerra de Secessão, (CARVALHO, 2002: 52) congregações religiosas e o governo fizeram um esforço no sentido de educar os ex-escravos. Em 1870, havia 4324 escolas para libertos e 1 universidade, foram-lhes distribuídas terras e incentivado o seu alistamento eleitoral. Muitas dessas conquistas foram perdidas depois da intervenção militar no sul, e a luta pelos direitos de cidadania dos negros teve de ser retomada na segunda metade do século passado. No Brasil, atualmente, vêm-se discutindo políticas públicas compensatórias, chamadas de políticas de inclusão, ou ações afirmativas, que têm o escopo de amortizar, ao longo do tempo, as injustiças cometidas contra os negros.
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, JOSÉ MURILO. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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NOVAIS, Fernando A. (coord.). História da Vida Privada no Brasil. 6a. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 4. volumes.
OLIVA, Alberto. A solidão da cidadania. São Paulo: Senac, 2000.
OURILAC, Paul. Historia del Derecho. Traducción del Antero Fernández Aguirre. Puebla: México, 1952. Tomo II.
PINSKY, Jaime; PISNKY, Carla Bassanezi (orgs.). História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.