3- O Juiz e o Direito Penal
O Juiz exerce uma das mais difíceis funções: julgar seus semelhantes. Sob seus ombros, permanentemente, recai a responsabilidade de ter importantes questões das vidas de outras pessoas submetidas a sua análise. É na sua consciência pesam o erro e o acerto. Neste mister, cumpre-lhe vivificar a norma, introduzir na sua aplicação o componente axiológico.
Deveras, de há muito se sabe que na norma positivada não se condensa todo o direito, e "o intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula decrépita, e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita. Esta é estática, e a função interpretativa, a dinâmica do Direito." (8)
Nesta ordem de idéias, mediante a interpretação e a aplicação do direito ao caso concreto, o juiz faz a ponte entre a dimensão normativa, abstrata e que representa a cristalização de um momento histórico, e a realidade social do momento em que a norma é aplicada. A legitimidade do exercício do poder estatal sub especie jurisdicionis está intimamente relacionada a esta capacidade de adaptação e flexibilização do conteúdo normativo in abstrato em relação a caso concreto, porque é dela que depende a institucionalização do Direito. (9)
Mas se o juiz não é um autômato, então se questiona: até que limite pode ir neste processo de adaptação?: Este limite é diverso em termos de direito penal?
Lênio Streck, após referir à norma constitucional como base da atuação da legislação, da administração e do judiciário, o que conduz à necessidade de construção de mecanismo efetivos de justiça social, pugna, invocando a Ferrajoli, por uma "filtragem" constitucional, reinterpretando-se a legislação à luz da Constituição e repelindo-se sujeição a uma lei de "tipo acrítico e incondicional." (10)
É notório que a lei positivada apresenta erros e equívocos. Já advertia Carlos Maximiliano que "a lei não brota do cérebro de seu elaborador, completa, perfeita, como um ato de vontade independente, espontâneo. Em primeiro lugar, a própria vontade humana é condicionada, determinada; livre na aparência apenas. O indivíduo inclina-se, num ou noutro sentido, de acordo com o seu temperamento, produto do meio, da hereditariedade e da educação. Crê exprimir o que pensa; mas este próprio pensamento é socializado, é condicionado pelas relações sociais e exprime uma comunidade de propósitos." (11)
Especificamente em relação ao processo legislativo, lembra que:
"A vontade do não será a da maioria dos que tomam parte na votação da norma positiva; porque bem poucos se informam, com antecedência dos termos do projeto em debate; portanto, não podem querer o que não conhecem. Quando muito, desejam o principal: por exemplo, abaixar ou elevar um imposto, cominar ou abolir uma pena. As vezes, nem isso; no momento dos sufrágios, perguntam do que se trata, ou acompanham, indiferentes, os leaders, que por sua vez prestigiam o voto de determinados membros da Comissão Permanente que emitiu parecer sobre o projeto." (12)
Não é de causar surpresa, portanto, que a lei apresente falhas, tanto mais quando produzida de forma atabalhoada, e a maior destas falhas, sem dúvida, é a inconstitucionalidade, seja ela formal ou material.
E se a lei padece deste vício é certo que o magistrado deve negar-lhe aplicação. Mas note-se, a lei presume-se constitucional e a fim de declarar inconstitucionalidade não podemos alvitrar teses cerebrinas e forçadas. Significa dizer que a inconstitucionalidade manifesta é que pode ser declarada e fazer ter-se por inválida a lei, seja no caso concreto, seja abstratamente considerada.
Neste passo, tomando em linha de conta a finalidade fundamental do Direito Penal, que materializa a máxima coerção do Estado, não me parece correta a perspectiva que pretende fazer do Direito Penal um instrumento de transformação social, ao menos não como sua finalidade maior.
Não resta dúvida de que o modelo de Estado hoje caminha para um Estado "intervencionista-promovedor-transformador" em contraponto a uma "faceta hobbesiana-ordenadora", sendo sua Constituição marcada pela "característica dirigente-vinculativa." (13)
Mas a transposição deste novo paradigma hemenêutico para cada ramo do Drieito deve observar as característica e finalidades de cada um.
Há toda uma série de mecanismos para condicionar o comportamento de cada indivíduo a um parâmetro que possibilite a vida em sociedade. Estes mecanismos podem ser oficiais ou não oficiais, políticos, religiosos, culturais, jurídicos etc...
O Direito Penal é o último e o mais grave mecanismo oficial. Se ele vem a ser invocado, é porque os demais falharam e é por isso que ele não pode ser visto como mecanismo de transformação. Na verdade, ele é a alternativa aos mecanismos de transformação social, devendo ser secundário, subsidiário.
O seu fundamento não é outro que não a intimidação. É a espada de Dâmocles pendendo permanentemente sobre a cabeça do cidadão a lembrar-lhe os malefícios que advirão se sua conduta violar os preceitos (certos ou errados) estabelecidos. Sem esta característica, do Direito Penal é inócuo, sem funcionalidade.
Então, o Direito Penal não irá solucionar o problema da criminalidade, tampouco os enormes problemas sociais que estão por traz de boa parte dela. Ele apenas pode controlar, minimizar esta criminalidade pela intimidação; é a máxima coerção.
Na medida em que restringe o aspecto de punibilidade e a punição em si, o Direito Penal é garantista, não só para a sociedade, mas também para o acusado. Mas tomar-se uma perspectiva garantista para concentrar nas mão do magistrado o poder de legislar e julgar é algo grave. Não podemos tomar realidades bem diversas como parâmetros e abraçar soluções que nada dizem com a situação da sociedade brasileira atual.
Por outras palavras, doutrinas, institutos e soluções de países economica e socialmente diversos não podem ser tomadas como panacéia para a criminalidade brasileira, e se formos tomar por parâmetro exemplos estrangeiros, a nossa realidade recomenda mais a "lei e ordem" do que o "abolicionismo garantista".
O sistema da tripartição de poderes pode ter falhas, mas é uma das maiores garantias do cidadão. Quando o magistrado toma posições e convicções pessoais para deixar de aplicar a lei, comete equívoco equivalente ao que ocorre quando faz o extremo oposto, ou seja, quando aplica a legislação literalmente e de forma acrítica, porque nas duas ocasiões perde de perspectiva o equilíbrio.
A lei fornece limites dentro dos quais é lícita a adaptação e maleabilidade. Dentro destes limites manifesta-se a carga axiológico no decidir. Mas quando as convicções pessoais constroem inconstitucionalidades, e este limite é extrapolado, condensa o julgador a figura do legislador e do julgador e abre-se espaço para a arbitrariedade, para a tirania dos juizes, tão nefasta como qualquer outra.
Diante deste contexto, verifica-se que interpretar o Direito Penal à luz da Constituição é atentar para o fato inexorável de que o acusado também é cidadão, e nenhum direito além dos previsto em lei lhe poderá ser tolhido, mas é também observar a legalidade e não olvidar que a inconstitucionalidade que pode ser declarada e a interpretação que pode ser conferida a um preceito é aquela que se conforma aos limites do texto e não a que deflui de convicções pessoais e posições filosóficas, porque o juiz também é o guardião maior da eficácia do Direito Penal.
4- Conclusões
Infelizmente o crime sempre existirá. Não há sociedade sem regras e é uma utopia ridícula acreditar-se que existirá sociedade sem um Direito Penal ou um mecanismo de força equivalente.
O Direito penal não resolve o problema da criminalidade e não pode ser manejado a partir desta premissa, mas pode amenizá-lo.
Para tanto tem de ser eficaz, e para ser eficaz tem de intimidar, pois não é outra coisa se não um mecanismo de intimidação de condicionamento a uma determinada forma de comportamento. Não é instrumento para impor-se valores, que são (ou devem ser) de livre escolha de cada um. Por isso, tem por finalidade principal punir, e não ressocializar.
O magistrado representa a ponte entre a norma e a realidade. Não pode ser um mero repetidor de textos. Para tanto nos serviriam máquinas. Mas deve ter em mente que sua função é vivificar, adaptar, moldar a norma, não desconsiderá-la de forma absoluta. O seu poder não lhe pertence, é do Estado e se exerce de acordo com a lei. Não importam suas convicções pessoais. Quando ele põe de lado a lei para julgar com suas convicções faz valer a sua vontade, e não a vontade que, bem ou mal, os representantes do povo colmataram na lei.
Não está o magistrado adstrito a aplicar sempre e sempre a norma de modo que diante de rematada iniqüidade tivesse de fazê-lo por mera formalidade.
Pode e deve negar-lhe aplicação quando inconstitucional ou quando evidentemente não reflete a realidade. Mas note-se, tal faculdade deve ser exercida com cuidado absoluto, porque sua função e aplicar o Direito e não legislar.
O que se tem visto em algumas questões é exatamente isso. Derrogação ou ab-rogação pura e simples da lei com invocação de inconstitucionalidades inconsistentes que somente fazem multiplicar os recursos, refletindo teses que não condizem com a funcionalidade do Direito Penal na sociedade brasileira.
O acusado e o apenado são seres humanos e cidadãos. Os direitos que lhe podem ser tolhidos quem determina quais e como é a lei. Na moderna concepção de um Estado Democrático, cuja justiça seja uma meta, o Direito Penal é garantista na exata medida em que estabelece em parâmetros humanos e razoáveis a punição. Mas punição é punição, e a opção para estabelece-la pertence inicialmente ao legislador, diante da hipótese abstrata, e somente no caso concreto é atribuição do juiz. Se a punição não intimida, de nada vale e se o Direito Penal não cumpre sua função, nenhum outro mecanismo resta.
Diante de nossa realidade, é preciso sim de penas duras para certas infrações. Hoje, com as penas substitutivas e os Juizados Especiais, o delinqüente de menor periculosidade dificilmente estará preso. Quem está nesta condição é porque fez algo grave ou demonstrou propensão para o crime e que se observa é que determinadas interpretações estão comprometendo a eficácia da lei penal.
Temos de ter, desta forma, redobrada atenção para não aderirmos a teses acadêmicas destoantes de nossa realidade, que perdem a noção do concreto em detrimento de um mundo ideal, onde os delinqüentes são vítimas e são sempre "ressocializáveis". Isso não é o que as ruas de nossas cidades demonstram e somente com um Direito Penal forte e interpretado, pelo magistrado, com razoabilidade, humanidade e observância aos limites da lei é que teremos algum resultado. Solução definitiva não.
Notas
1
Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial, 7a ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, v. 1, p. 1.1952
Op. cit.,.p. 1195-1196.3
Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 7a ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 1179-1180.4
Das penas e seus Critérios de Aplicação. 2a ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2002. P. 247.5
Tribunal do Júri, Símbolos e Rituais, 3a edição, Porto Alegre, Livraria do Advogado, p. 66.6
Júlio Fabbrini Mirabete. Execução Penal, 9a edição, São Paulo, Atlas, 2000, p. 209.7
Op. et loc. cit.8
Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19a edição, Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 10.9
Institucionalização do Direito é sua aceitação pela sociedade. É na aceitação da norma que reside sua legitimidade e é na legitimidade que está o grau de eficácia.10
Tribunal do Júri cit, p. 64.11
Hermenêutica e Aplicação do Direito cit., p. 16.12
Op. cit. p. 20.13
As palavras grifadas são de Lênio Streck, Tribunal do Júri, Símbolos e Rituais cit., p. 63 e 66.